estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2005-04-27

O 25 DE ABRIL E EU

Às dez horas da manhã, o meu amigo e colega Jorge, o semblante sério e compenetrado, contou-me que lá em casa estava tudo atarantado. O tio de Lisboa telefonara: tinha havido uma revolução, ou coisa parecida, e o Marcelo ia ser posto na rua. À hora de almoço, a minha mãe veio-me buscar à saída do Ciclo Preparatório de Aveiro. Dizia que tinha havido uma revolução em Lisboa e que a tropa aconselhava toda a gente a ir para casa, a fim de evitar “derramamento de sangue”. Apesar de tudo se passar a 250 quilómetros de distância, a palavra derramamento fez-nos ficar mais nervosos. E já em casa, o meu irmão mais velho sintonizava freneticamente os botões do velho Grundig do meu pai à procura da BBC.
À tarde, no estreito quarto da casa do Jorge, onde nos juntávamos habitualmente, um dos irmãos dele, o Luís, gravava tudo o que ouvia. Da telefonia saía música portuguesa, interrompida de vez em quando por um comunicado das Forças Armadas. “É o Zeca Afonso”, explicava, “e agora é o Adriano Correia de Oliveira”. À noite, não perdi o noticiário e as imagens a preto e branco de soldados nas ruas de Lisboa actuaram em mim como um poderoso excitante. De tal forma, que nos dias seguintes, depois de vir das aulas, passava as tardes à espera de mais notícias e, na nossa sala, mantinha a televisão e o rádio ligados para ouvir tudo o que fosse novidade.
Ainda uns meses antes, Américo Tomás viera inaugurar as novas instalações da escola do Ciclo Preparatório e alguns- muitos, na realidade- haviam acorrido a beijar-lhe as mãos, a face, ou simplesmente a apertar-lhe a mão. Recordo-me que como gozámos com o Gaspar, por ter corrido a beijá-lo e ter depois contado o feito com o orgulho dos grandes acontecimentos. E lembro-me que omiti sempre o facto de ter apertado a mão a Tomás, tal como anos mais tarde detestava que o meu pai aludisse ao dia em que, juntamente com outros populares, bati palmas a Spínola.
No dia em que Tomás por lá apareceu a cortar a fita, o professor de matemática enalteceu a forma como o havíamos recebido e permitiu até que um jovem voluntário da Mocidade Portuguesa distribuísse, durante a aula, folhetos da organização. Mais tarde, eu, que nunca preenchera nenhum formulário, tive de me deslocar à delegação decadente da Mocidade Portuguesa para explicar que não queria nada com aquilo.
Dias depois do 25 de Abril, já sabíamos fazer com os dois dedos o V da vitória e clamávamos frases do género “o povo unido jamais será vencido” e gritávamos: “O general Spínola pôs o careca na rua”. Ai daquele que não soubesse quem era o senhor da mona lisa. Passava o resto do dia a ser a chacota da malta lá da rua. Como no dia em que o Gaspar resolveu confessar que já lhe metia nojo a palavra fascista. “E tu queres que os fascistas sejam chamados de quê?, perguntou o Jorge ao Gaspar, em bicos de pés. Resultado: O Gaspar foi para casa a chorar.
No quarto onde nos reuníamos, em casa do Jorge, o gira-discos estava sempre ligado. Ouvíamos Focus, Chicago e Pink Floyd mas também Sérgio Godinho, Luís Cília, Fausto e José Mário Branco. Eu discutia política de cima do terceiro degrau da escada de entrada por ser o mais pequeno de todos e por assim me fazer ouvir melhor. Sempre que as minhas teses eram contestadas, lá ia eu para o terceiro degrau, encurralado e a acabar por ser alcunhado de “Barreirinhas” pelo pai do Jorge, que na sala ao lado tentava em vão ler o “Diário de Notícias”, tamanha era a chinfrineira.
O jornal que fazíamos na rua e vendíamos aos familiares passou a reflectir a politização excessiva do nosso quotidiano. Aos 13 anos, eu escrevia sobre o Cambodja, enquanto outros dissertavam sobre a exploração capitalista. Recordo-me que a primeira edição fotocopiada chegou baça por falta de tinta mas que mesmo assim nos encheu de orgulho. Na capa, dedicada ao 1º de Maio, uma foto de Lenine inflamado, discursando ao bolcheviques ombreava com a célebre foto do ghetto de Varsóvia na qual um soldado nazi apontava a espingarda a uma criança judia aterrorizada. A legenda não podia ser mais exaltada: “1º de Maio: a luta contra a repressão e a exploração capitalistas”.
Nesses primeiros tempos, o 25 de Abril adquirira a magia própria das situações inesperadamente novas e diferentes vividas entre a infância e a adolescência. Personagens como Spínola, Galvão de Melo, Vasco Gonçalves ou Otelo Saraiva de Carvalho, pareciam saídos de um excitante livro de Enid Blyton. Repentinamente, substituí a leitura da banda desenhada da revista “Tintin” e das aventuras dos Cinco pela dos jornais e de livros como “A Mãe” de Máximo Gorki ou “Os Dez Dias que Abalaram o Mundo” de John Reed.
No liceu José Estêvão, em Aveiro, onde ingressei no final de 74, sucediam-se as RGA’s ( Reunião Geral de Alunos), palco para discussão de temas da vida nacional e aprovação de moções de solidariedade com greves de metalúrgicos, nas quais quase todos se dividiam em simpatizantes ou membros da UEC, MES, UDP e MRPP. As aulas eram agitadas por violentas discussões sempre que algum professor o proporcionava e tudo era pretexto para não estudarmos a matéria.
Começaram a faltar professores. Passávamos o tempo livre a deliberar sobre quem devíamos eleger como delegado de turma enquanto outros se iam inscrever nas juventudes partidárias. Umas colegas minhas passaram a usar na lapela um autocolante com os seguintes dizeres: “Eu sou comunista, porque não tu?”
Qualquer partido ou organização política instalava uma banca em pleno liceu e ali vendia autocolantes e livros programáticos. Por seu turno, as paredes de azulejo branco dos corredores foram invadidas por todo o tipo de propaganda política. Os elementos do MRPP afixavam na íntegra as edições do jornal “Luta Popular”.
Em Março de 1975, em virtude da greve estudantil, não pusemos os pés nas aulas durante dias. Nessa altura, reuníamo-nos em sucessivas RGA’s, onde nos era explicado que a greve era justa porque se tratava de ser solidário com os nossos colegas da universidade. A situação manteve-se por uns dias, até que os alunos resolveram ocupar o liceu e instalar piquetes junto ao portão. Recordo-me de ver pais de alunos, do outro lado das grades, de rosto transtornado, chamado pelos filhos.
Um dia, ouvimos dizer que o Governador Civil de Aveiro ía mandar os soldados ocupar o liceu. Vieram muitos, munidos de metralhadoras inofensivas. Alguém decidiu que, como resposta, se impunha mostrar a força do movimento estudantil. A tropa havia-se
colocado estrategicamente à entrada das escadas de acesso aos pisos superiores. Simplesmente, os dois soldados que barravam uma das passagens nada puderam fazer quando surgimos, alguns de bandeiras vermelhas ao ombro, a tentar ocupar o lance de escadas.
Foi passando um, depois outro, alguns por debaixo dos braços dos soldados, até que, em poucos minutos, as escadas ficaram ocupadas por alunos a gritar slogans e a agitar bandeiras. Do último andar, olhávamos para baixo e víamos os que tinham chegado mais tarde, sentados no chão do hall, para que os soldados não os pudessem tirar dali. As escadas ficaram cheias de alunos sentados e a gritar. Até que, vindos do outro lado do liceu, pelo corredor do segundo andar, chegaram mais soldados que bruscamente começaram a empurrar os que estavam lá em cima. Aos poucos, as escadas foram sendo desocupadas e alguém gritou: “Todos para o pátio!”
Fomos todos para o pátio interior, o chão forrado a alcatrão. Alguns continuaram a empunhar cartazes. Num último rasgo emocional, dispusemo-nos em quadrado, a cantar “Grândola Vila Morena”, a tropa sem saber muito bem o que estava ali a fazer.
Em casa, o meu irmão mais velho começou a comprar pequenos livros doutrinários sobre Marx, Engels e Lenine. Um dia, apareci com um livro policial e ele classificou-o de “literatura capitalista”. Abandonou a ideia de seguir o curso universitário, ingressou no magistério primário e dedicou-se com afinco à alfabetização de adultos. Continuava, entretanto, devotado ao teatro, sem nunca largar as barbas e a roupa informal. No Verão, na piscina do Luso, aparecia de livro debaixo do braço, bloco de notas, lápis e calções de ganga, camisola interior e sandálias. Ia a Lisboa ao Congresso da UDP e uma vez foi de bicicleta a Ferrel, onde alguém disse que seria construída uma central nuclear.
A minha irmã era a teenager rebelde pós-25 de Abril. Lutava pelo direito de saír à noite sempre que o meu irmão mais velho saír e colou na parede do quarto um papel onde se lia “é proibido proibir”.
Na explicação de matemática, a Dona Assunção vociferava contra o 25 de Abril, os comunistas, a pouca-vergonha, o desrespeito pelos mais velhos, a criminalidade. “Vocês ainda são umas crianças, não podem falar assim de Salazar”. O velho ditador era a sua figura predilecta. Nós adorávamos picá-la com diatribes esquerdistas que a enfureciam de morte. No corredor junto à sala que dava acesso à explicação, a Dona Assunção afixara um cartaz do PPD, um sinal do território que agora pisava.
A mudança não foi como esperávamos. Os professores faltavam. Anos houve em que não tivemos professores para determinadas disciplinas. O primeiro-ministro Mário Soares aparecia vezes sem conta na televisão repetindo a palavra “austeridade”. Ao colocar um bife na mesa, a minha mãe lembrava o que o primeiro-ministro dissera.
A direita, essa odiada entidade que configurávamos no cabelo curto e nas roupas alinhadas e boas da classe média da cidade, começou a recuperar terreno. Nas eleições para a associação académica, no liceu, a lista afecta ao CDS e ao PPD começou a distribuir dezenas de autocolantes aos caloiros, que o 25 de Abril tinha apanhado na primária com oito ou nove anos. A lista independente de esquerda tentou ripostar com pequenos autocolantes feitos artesanalmente, mas os deles, pela primeira vez na história do liceu, eram feitos numa tipografia.
A direita ganhou, não sem antes ter despejado, no último dia de campanha, toneladas de autocolantes no átrio de entrada. Nessa altura, nós odiavámo-los, a eles e às duas Kawasakis, aos seus pullovers, cabelo curto e calça de bombanzina, reunidos em frente ao café da classe média fazendo “vês” da vitória às caravanas engalanadas da Aliança Democrática.
Com o "ano propedêutico"*, deixei de ter professores. Passei a olhar para um ecrã a preto e branco que ligava parcimoniosamente todas as manhãs. Fechava a porta da sala, sentava-me a uma mesa e tentava concentrar-me. As risadas da minha mãe e da empregada vindas da cozinha cruzavam-se com as vozes enfatuadas dos professores no pequeno ecrã debitando matéria à distância, à frente de cortinados sempre iguais. Os meus colegas, esses, desapareceram.
O FMI, os despedimentos e os salários em atraso começaram a entrar em casa através da televisão. Os cartazes políticos começaram a descolorir e os grafittis a serem apagados. Uma das últimas vezes que vi o Jorge foi num jantar de conterrâneos “desterrados” em Lisboa e que coincidiu com uma noite de 25 de Abril, aí por 83 ou 84. Depois do jantar, vagueámos pelo centro da cidade e acabámos por desaguar na celebração do Rossio. Uma pequena multidão aguardava que Barata Moura lhes cantasse “canções de Abril” à luz dos candeeiros. Lembro-me de como tudo parecia então estranho e sem sentido, de como os slogans, os cartazes e os cravos vermelhos pareciam gastos e cristalizados.
Hoje, 31 anos depois, o 25 de Abril é o segredo mais bem guardado da nossa geração. Agradeço o dia em que me foram chamar à escola a explicar que tinha havido uma revolução em Lisboa. Escrevo em liberdade na blogosfera o que me dá na gana porque o Salgueiro Maia saiu de Santarém naquele dia de Abril de 1974...

* O Ano Propedêutico, foi uma invenção que antecipou em um ano o 12º ano e colocou todos os alunos dessa geração em casa, a estudar pela televisão.

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