estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2006-04-21

CASINADA

A inauguração da nova sala de jogo de Lisboa juntou no Parque das Nações, quarta-feira à noite, banqueiros, empresários, artistas, jogadores inveterados e muitos curiosos de todos os estratos sociais. Separados entre as 19h00 e as 21h20 por uma tenda plastificada, cruzaram-se nas democráticas escadas rolantes do novo casino. Até tiveram direito a ficar juntos e imóveis. "Olha, isto parou outra vez", exclamou um cliente.

O Casino Lisboa abriu anteontem ao público pelas 21h20, cerca de 20 minutos depois de uma nuvem de centenas de convidados, entre o escuro aprumado dos fatos masculinos e as vestes requintadas das mulheres, ter ultrapassado a pequena distância que separava a tenda VIP transparente do ex-Pavilhão do Futuro da Expo-98. Nem os convidados nem as dezenas de pessoas que entraram dez minutos antes da hora marcada escaparam aos maus acabamentos no interior, ao pó que ainda ontem cobria paredes e às manchas nas carpetes das salas das máquinas de jogo. Problemas evidentes nas escadas rolantes com a consequente e embaraçante paragem com VIP em cima dela, ao mesmo tempo que cheirava a borracha queimada. A avaria obrigou uma equipa da empresa responsável a estar de prevenção no primeiro andar.Os primeiros a entrar foram os convidados, idos de uma grande tenda transparente equipada com ar condicionado e onde se cruzaram figuras díspares da vida pública portuguesa. À hora da abertura, a tenda era maioritariamente habitada por pessoas que habitualmente surgem em revistas como a Lux ou a Caras e que faziam fila para se fotografar numa espécie de palanque com o logótipo do casino por trás.Do lado de lá da fita vermelha, colocada entre a passagem dos convidados e o público, as pessoas que aguardavam pela hora de entrada iam comentando as roupas, os jeitos e trejeitos dos outros, os da tenda exclusiva e elegante. "Olha, já estão a entrar", dizia uma homem de meia idade, impecavelmente vestido. "Ya, ya, topa-me aquela magrinha", comentava outro. "O quê? Aquele palito? Está um bocado sozinha, viste-a chegar?" O amigo encolhia os ombros: "Não, estou aqui desde as 16h30 mas não deu para ver tudo."Os convidados inegavelmente mais bem vestidos e elegantes eram motivo dos mais díspares comentários. "Eu tenho aí três ou quatro conhecidos", dizia um homem, "mas agora, uh, agora não me conhecem. Olha aquele, aquele foi administrador da empresa onde eu trabalhava... não me liga nenhuma. Três milhões, só precisava de três milhões, a ver se eu passava cartão a algum." Outro homem não escondia um misto de inveja e desdém: "Parecem uns patetinhas que vão ali. O melhor disto tudo são aquelas miúdas de preto (funcionárias), o resto está tudo velho e acabado."Outras pessoas, entre as dezenas que se aglomeravam junto à fachada da nova sala de jogo, mostravam ansiedade, à medida que viam os outros a entrar. "A ver se botam a fita abaixo para a gente entrar!", exclamava uma mulher. Outros aproveitaram os 20 minutos de intervalo entre a entrada dos convidados e a entrada dos clientes para espreitar o mundo iluminado e azulado do lado de dentro. Um rapaz, com a mão direita a servir de pala para vislumbrar melhor, espantava-se: "Esta merda é enorme! É este quarteirão todo, uma pessoa deve perder-se lá dentro."Enfim, lá dentroFinalmente, às 21h20, o público, umas largas dezenas de pessoas, começou a entrar sem grandes atropelos e beneficiando do amplo hall que antecede a primeira e térrea sala de máquinas de jogo. Uns dirigiram-se à loja das revistas, outros aproveitaram para se dirigir directamente aos pisos superiores e outros, a maioria, começou a instalar-se nos bancos das slot-machines. Apesar das evidentes deficiências dos acabamentos e da limpeza no interior, a impressão era de contentamento. "Muito bonito. Costumava ir ao Casino Estoril mas este é muito diferente, não tenho palavras", dizia Rosa Simões, 46 anos, vinda de Loures. Alguns pararam na entrada para se inscrever no Clube Casino. "Estou a inscrever-me. Para quê? Ah, é porque dão brinde", explicou um de três jovens vindos de Odivelas. Enquanto preenchiam o pequeno formulário, não deixavam de apreciar a juventude e a beleza das funcionárias: "Olha-me só aquelas pernas..."Havia também quem fotografasse as esculturas chinesas em madeira policromada do século XIII e fosse advertido pelos funcionários de que não era permitido fazê-lo. "Mas era só uma foto à estatueta", desabafava um homem. "Está bem, mas se ele diz que não se pode, não se pode", ripostava uma mulher, antes de seguirem de braço dado em direcção às máquinas. A área a ganhar rapidamente mais frequentadores foi a das roletas, onde populares se aglomeravam a assistir às primeiras jogadas de um idoso bem disposto que ia rindo e explicando aos mirones: "Isto é fácil. Tirei um curso em Las Vegas!"Pelas 23h00, já o novo casino zarpava a todo o vapor. Pessoas de todas as idades e etnias ocupavam quase por completo as máquinas de jogo e os bares eram assaltados por gente sequiosa de beber a primeira bebida no Casino Lisboa. "Já gastei 20 euros", resmungava contrariado um visitante. "Grande coisa, já gastou 20 euros, olha que fortuna", comentava outro a rir.Apenas um bar no terceiro e derradeiro piso permaneceu fechado, o que não pareceu incomodar ninguém. "Acho este casino excelente, muito bonito, fora do vulgar", explicava a lisboeta Maria José Craveiro, "já estive em vários casinos mas a estética deste é diferente". Um amiga aproveitou para acrescentar: "E tem aqui para todas as bolsas!"Pela uma da manhã, as escadas rolantes pejadas de gente a subir e a descer, o novo casino era uma roda-viva, um mosaico inebriante de luzes a faiscar, vozes, sons. "Isto? Isto é uma mina. Os portugueses são uns parvos, os chineses é que a sabem toda!", explicava um visitante.