estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2007-11-16

QUANDO ALDA ABRIU A PORTA

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Senhor Cabral. Chama-se Cabral. A próxima casa a ser demolida é a do senhor com nome de descobridor. “Somos humanos”, lê-se no muro branco sujo da casa do senhor Cabral. Do lado esquerdo da parede grafitada, ergue-se um monte de tijolo partido, muito tijolo partido. Por detrás da casa de Cabral, um bloco caótico de habitações clandestinas espera pela demolição. “Eles precisam de demolir a dele para abrir caminho para as outras”.
Há dois dias que um funcionário trabalha com uma escavadora, a fazer limpeza. “Ele diz que tem ordem para só fazer limpeza até ao fim de semana”, explica uma moradora, “ele diz que o camião para recolher o entulho ainda não chegou. Será que vai demolir no fim de semana?” Os últimos moradores da Azinhaga dos Besouros em círculo no páteo da casa do senhor Cabral entreolham-se. Quando chegará a sua vez?
As histórias de miséria circulam como o zumbido das abelhas num pinhal em pleno Verão : “Deixaram na rua uma senhora com quatro filhos”, “uma senhora de 74 anos ficou na rua”. Pior só o que fizeram à “avó” Justina, são-tomense de Guadalupe: “Eu disse: Onde vou ficar? Outra senhora viu-me e perguntou: Porque a avó Justina está a chorar? Para onde vai? A avó vem para minha casa”.
O som da máquina escavadora ecoa sobre o mundo parado de casario clandestino, fios eléctricos, ruelas semi-desfeitas e montes de tijolo quebrado. Numa mesma ruela, existe uma casa habitada, a roupa dependurada, uma bicicleta e uma botija de gás na varanda. Do outro lado, tudo o que resta é uma parede azul em cima e creme em baixo com restos de colagens na parede, fotos de recortes de revista. Há cimento suspenso e ferros retorcidos caíndo sobre um monte de tijolo quebrado onde pontificam uma cadeira, o que resta de uma mesinha de cabeceira, uma camisola, um guarda-chuva desfeito. De repente, Alda Furtado, são-tomense de 31 anos, pára feita estaca em frente aos destroços: “Isso aí era a minha casa”. ‘Tava a trabalhar nas limpezas, na Gare do Oriente, cheguei aqui, ‘tava o homem da câmara a dizer: “Abra a porta para isto ir abaixo”. Alda teve de abrir. O senhor Cabral vai ter de abrir também.