estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2008-05-23

ALGARVE A PÉ

Chovera toda a santa noite. Carrapateira, a branca, acordou sob um céu pesado e invernal, uma corrente de água castanha a descer dos montes pelos paralelepípedos abaixo. Pensei: foi isto, o maldito alerta amarelo foi isto. Como a teimosia tem muita força e estava um pouco farto de ouvir falar em captura de perceves e polícia marítima, peguei na mochila, enfiei a roupa impermeável e debandei em direcção às dunas, decidido a atingir a praia da Bordeira pelo areal.
A primeira rasteira veio da própria ribeira da aldeia. A água lamacenta estendera-se num lago que me fez cirandar irritado pelo sapal e procurar contornar a pequena laguna pela estrada. Percebi rápidamente o mesmo que três jovens surfistas espanhois: O caminho em tábuas de madeira que desce para a praia, estacava abruptamente nas águas revoltosas da ribeira que cortavam as duas margens de areia como frágeis fatias de um bolo.
À saída da aldeia, já sob chuva torrencial, um alemão surgiu de uma reconstruída casa rural em pedra de xisto. “Vem para cá, não vais querer ir a pé com um temporal desses”, chamou, uma chaleira numa mão e um bocado de pão na outra. Apontei para a sua banca de abóboras com um cartão “vende-se” cruelmente fustigado pela ventania e respondi: “Também me parece que não vais conseguir vender abóboras hoje”. Sorriu, fechou a porta e eu continuei a minha caminhada insensata em direcção a Aljezur. Portugal a pé? Naquele momento, o termo apropriado seria massacre a pé. Deixara Sagres posta em sossego e sob um sol primaveril dois dias antes, homens a jogar boliche na praça central, surfistas de pernas espetadas no tablier dos jeeps, nómadas loiros beberricando cerveja junto a auto-caravanas.
Cruzara falésias brancas de calcário, o verde recortado dos carrascos competindo com o amarelo da perpétua, a das areias. Cumprimentara uma pastora do seculo XXI, observando as ovelhas à distância, o bordão dentro da viatura. Jogara calhaus rolados na Praia do Castelejo só para escutar o baque surdo nas águas, chutara pinhas, falara sozinho, cantara Jorge Palma no Miradouro da Barriga- “Eu venho do nada porque arrasei o que não quis em nome da estrada onde só quero ser feliz...
Agora, a caminhada não passava de um exercício insano, varrida por água e vento em revoadas. Parei à entrada da Bordeira, a pequena aldeia branca sob um dilúvio de chuva. Foi quando vi a senhora, num terraço. Um rio caudaloso descia lá de cima, das serranias e ameaçava invadir-lhe a casa. Corri. Refugiei-me no café da terra, uma ilha num oceano de água lamacenta e zangada, a tempo de ver Rafael Santos, o presidente da Junta de Freguesia: “Temos de tirar dali o Ti Chico, ‘tá acamado, tem de saír dali”. A dona do café, sempre a limpar a água com uma vassoura: “Aquilo ali, no meio da água, é um pedaço de alcatrão? Minha Nossa Senhora...”

2 Comments:

  • At 12:21 da tarde, Blogger Pandora said…

    Bom dia, somos três alunas de jornalismo e estamos a elaborar um dossier sobre fobias, e temos uma reportagem que incide especialmente na fobia social. Lemos o seu testemunho no site de ansiedade social (http://ansiedade.no.sapo.pt/index.htm) e gostariamos de lhe pedir um testemunho sobre o mesmo assunto. Se não tiver disponibilidade para tal, gostariamos de lhe pedir autorização para o utilizarmos no nosso dossier. se requerir anonimato, também o podemos fazer.

    aguardamos a sua resposta com a maior brevidade que lhe for disponivel. poderá responder para aritajeronimo@clix.pt

    Muito agradecidas,
    Rita Jerónimo
    Filipa Franco
    Vânia Oliveira

     
  • At 12:03 da manhã, Blogger St. J. said…

    Boa noite, somos três leitores de jornais e estamos a ler coisas que façam arrepiar, assim do género «esta noite quero ter pesadelos» e lembramo-nos de perguntar, a quem possa garantir, se dermos 5000 voltas à praça do Rossio, em Lisboa, depois da meia-noite ficamos (a saber):
    - com calos nõs pés (assumindo que usamos sapato de sola e não «téni»;
    - com tempo para ir dormir ainda uma meio horita antes de tocar o despertador das oito.

    Não diga nada se achar as perguntas impetinentes.
    Quando estivemos a escrever isto passou-nos pela cabeça que nos poderia mandar à merdunça, mas também achámos que pudesse ver nisto alguma graça.

    Seja como for, veja lá se vai a bem. Porque, a mal, é uma chatice.

    Junte a Braços um grande A.

    E gaste solas, que faz exercício.

    Quanto tiver tempo para uma bejeca, diga. Também pode ser.

    (in)Tés

     

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