estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2005-04-04

Voluntário

Ando com vontade de ser voluntário de ajuda aos sem abrigo mas a vontade nasceu há 13 anos atrás. Este texto é dessa época:

Rafael morreu de frio


Os mirones que à noite passam de fugida nas arcadas do Palácio da Independência, nas ruas das Portas de Santo Antão, em Lisboa, procuram não olhar muito para aquele monte de cobertores velhos e carcomidos que esconde sempre dois ou três corpos de vagabundos adormecidos. A atmosfera está tão impregnada de um intenso cheiro a urina, que os trauseuntes aceleram a passada e saltam para os paralelepípedos da rua ao lado.
Bem no canto das arcadas, ao lado de uma balança onde apenas os menos impressionáveis ganham coragem para se pesar, vivia há dois anos e meio Rafael Garcia dos Santos, natural do Faial, ex-futebolista, ex-descarregador de camionetas, homem da rua e “amigo do seu amigo”. No domingo, vítima do prolongado frio de Janeiro, o “Rafael açoriano”, 38 anos, aparentando ter 58, morreu ali mesmo, de bronco-pneumonia.
Bilhete de identidade não tinha. Na véspera de Natal, roubaram-lhe toda a documentação e o subsídio de Natal atribuído pela Segurança Social. Conta quem sabe que chegava a dormir com os sapatos proque senão até os sapatos lhe roubavam.
Anteontem, na Igreja dos Anjos, uns emocionados e saudosos companheiros de infortúnio renderam-lhe uma última homenagem, rostos curtidos pelo alcool, mãos gretadas de descarregar camionetas. “Vim agora ali das camionetas”, contava um, “tanta trabalheira para ganhar 750 escudos”. Lágrimas nos olhos, sacando dos fatos sujos, lenços oferecidos pela Misericórdia, deixavam-se ficar, abanando levemente as cabeças, fitando pela última vez um Rafael de fato, gravata e barba aparada.
José Euclides das Neves, que costumava sentar-se ao lado dele, partilhando de uma das garrafas que costumava esconder por trás da balança, ainda recorda o Rafael futebolista, que um dia, jogando no União de Leiria, defrontou a sua equipa, o Torreense. “Ele lá nos Açores já jogava futebol. Depois, veio para cá com uma irmã e foi jogar para Leiria”.
Depois, meteu-se a tropa e o Rafael açoriano, deixou o futebol. Regressado a Lisboa, meteu-se em complicações, supõe-se que pequenos furtos. Esteve preso. Quando voltou, passou a trabalhar no descarregamento de camionetas. Vivia em pensões com mulheres, que um amigo define, quase sussurrando: “Algumas de mau porte”.
Apesar de ter, ao que se sabe, uma irmã em Lisboa, Rafael nunca parece ter sido muito dado a reuniões familiares. “No Natal, acho que ela queria que ele lá fosse jantar e ele preferiu ficar com os amigos. A casa dele era a rua”, conta um amigo.
Um dia, a descarregar camionetas no Campo das Cebolas, teve um acidente que lhe arranjou um problema no joelho. Passou a trabalhar apenas quando conseguia, até que abandonou de vez o trabalho e passou a receber uma magra pensão. Mais tarde, os vendedores ambulantes “contrataram-no” como vigilante. Ele passava a avisá-los quando aparecia a polícia e recebia um tanto pela vigilância.
“Mas começou a meter-se nos copos”, conta o Euclides, “e às tantas, chegava a dormir em qualquer lado, só com um cartão por cima. Por fim, ficou por ali”. Há dois anos e meio assentou arraiais nas imundas arcadas das Portas de Santo Antão, ele, um velho colchão que de dia prendia com pedras e duas canadianas muito cobiçadas. “Coitado, andavam sempre a roubar-lhe as muletas”, lamenta alguém. Consta também que Alfredo chegava a emprestar as canadianas a outro para este ir pedir, desde que ao fim do dia lhe trouxesse uma garrafa de vinho.
Para o fim, bastava adormecer encharcado em alcool, para lhe roubarem as roupas que lhe ofereciam ou o dinheiro da pensão. “Se não guardasse o dinheiro bem escondido, apanhavam-no bêbedo e roubavam-no”.
No Refeitório dos Anjos, era raro comer. “Não tinha cartão porque a assistente da Santa Casa da Misericórdia que tratou do caso dele, não lho deu. Comia lá de vez em quando mas à socapa”, contam.
Há seis meses, Rafael regressara do Sanatório de Torres Vedras, onde ficara internado quase um ano e meio, com tuberculose. Trazia uma sonda mas a rua não era, de maneira nenhuma, o local ideal para alguém que acaba de regressar de um sanatório. “Voltou para a rua, a domir na pedra, a passar frio, a beber demasiado, acabou por piorar...”
Ultimamente, Rafael queixava-se de dores e tossia muito. “Estava desejoso de saír da rua”, recorda um elemento da associação católica de ajuda aos sem abrigo, “Comunidade Vida e Paz”, “só dizia: Tirem-me daqui. Mas sem termos ainda um Centro de acolhimento, não lhe podíamos acudir”.
Rafael Garcia dos Santos faleceu de bronco-pneumonia às 20h45 de domingo. Agora, os velhos companheiros recordam-lhe a pose humilde, a simpatia. “Davam-lhe uma sandes”, recorda Euclides, “mas se ele via que o amigo estava a passar fome, era capaz de lhe dar a sandes. Preferia ser ele a passar fome do que ver outro com fome”.

Janeiro de 1992