CARNAVAL É NA TERCEIRA
No exterior da Sociedade Recreativa da freguesia de S. Mateus, na Ilha Terceira, vive-se o ambiente dos grandes dias de festa. Apesar de estarmos em Fevereiro, a temperatura é amena e grupos de rapazes conversam animadamente à porta enquanto outros se sentam com as namoradas nos muros das casas defronte. Nessa noite, 4 de Fevereiro, é o tão ansiado ensaio geral da dança de carnaval da freguesia.
O salão da Sociedade Recreativa, decorado com enfiadas de lâmpadas coloridas e palmas nas paredes, está cheio como um ovo. Na primeira fila senta-se um grupo de filarmonistas que tocará a música que o grupo dançará. Por detrás, está o público, a maioria pescadores e respectivas famílias, ansiosos por verem pela primeira vez a dança da freguesia. Há mães com as filhas ao colo, hordas de populares encostados à parede e junto á porta.
O ensaio geral destina-se em princípio a que a dança seja aprovada pela freguesia mas há que contar com o envolvimento de toda aquele gente. É que na plateia estão os familiares, as costureiras dos fatos, os autores da música e do enredo. A expectativa não pode ser maior.
Um pouco mais tarde, em frente à Sociedade União Católica da Serra da Ribeirinha, rapazes atravessam excitadamente a rua em frente para entrarem numa garagem. Aí, duas senhoras visívelmente extenuadas terminam os últimos fatos carnavalescos. Apesar de já serem 23h, continuam a costurar rodeadas por elementos da dança da Ribeirinha. “Não temos feito outra coisa”, contam as mulheres, que recebem 7 mil escudos por cada fato, “ontem foi até às 3 h da manhã e hoje às 8h já estavamos aqui outra vez”.
A azáfama nestas duas freguesias da Terceira era perfeitamente justificada. Nos três dias seguintes, mais de 30 danças carnavalescas de outras tantas freguesias percorrem cerca de 31 salões da ilha. Ao todo, mais de 1000 músicos, figurantes e dançarinos estão envolvidos. O público acorre em massa às Sociedades Recreativas, calculando-se a capacidade total das salas em cerca de 20 mil lugares. Para que tudo possa acontecer, existe uma autêntica “indústria” de cultura popular: costureiras, músicos, figurantes, autores de enredos.
As danças carnavalescas dividem-se sobretudo em danças de espada, bailinhos e comédias. As danças de espada são as mais dispendiosas, envolvem grande número de dançarinos e figurantes e têem como enredo dramas históricos ou amorosos. Figuras fundamentais da dança de espada são o mestre e o ratão. Ao mestre, empunhando uma espada e um apito, compete saudar a assistência e apresentar, em quadras, o enredo. O ratão, empunhando uma velha bengala, é quem introduz de uma forma jocosa o elemento humorístico.
Foto Estradas Perdidas
Os bailinhos, são danças mais ligeiras cujos assuntos recaiem sobre temas sociais. envolvem sátiras às Câmaras da ilha, aos emigrantes, a tudo o que pertença ao universo dos muitos autores de enredos. Por fim, as comédias são pequenas rábulas com no máximo 5 ou 6 figurantes.
Hoje, as danças desenrolam-se nos salões das Sociedades Recreativas mas dantes o seu espaço privilegiado eram os adros das Igrejas e a rua em frente às casas das pessoas mais importantes. Daí chamar-se dança de rua ou de dia. O grupo saudava a povoação, criava um espaço quadrangular entre a multidão onde apresentava o enredo e no final, agradecia às pessoas presentes fazendo inclusivamente uma colecta para pagamento das despesas. Os figurantes eram sempre homens que representavam também os papéis femininos, uma vez que às mulheres não era permitido entrar.
Com a passagem para os palcos, as danças foram evoluindo. A dança mais tradicional, a dança de espada, está a ser superada em quantidade pelos bailinhos e pelas comédias. As mulheres passaram a integrar os figurantes e este ano houve pelo menos uma mestre feminina.
Ao contrário dos corsos carnavalescos que se centram num cortejo envolvendo sobretudo adereços, disfarces e quadras satíricas, as danças carnavalescas terceirenses implicam a criação todos os anos de novas dezenas de enredos e dezenas de músicas diferentes. Grupos de criação quase institucionalizados, existem em cada freguesia. Aquele que escreveu enredos no ano anterior, é procurado para escrever enredos no ano seguinte, o mesmo se passando com os autores das músicas e os ensaiadores.
Hélio Costa, um habitante das Lajes que guia habitualmente um táxi na Praia da Vitória, escreveu onze enredos este ano. Fez um inclusivamente para o Canadá. “Já venho em Danças há 24 anos mas só comecei a fazer enredos há cinco quando não havia ninguém que me fizesse um enredo a mim”, explica. Hélio só faz enredos cómicos. Põe lá um pouco de crítica social mas, como explica, “as críticas que se ouvem nesta época a deputados, partidos e Câmaras não os afecta em nada”.
Além de escrever enredos, também participa como figurante. foi 5 anos seguidos vestido de velha. Este ano fez de lavrador e de astronauta. mas a sua especialidade são agora os enredos. “Quantas vezes vou sózinho no táxi, vem-me uma ideia, paro o carro e escrevo à pressa para a ideia não fugir”, conta.
Alguns dos enredos, sobretudo nas danças de espada, são dramas intermináveis que levam o público á lágrimas. Embora durem habitualmente no máximo 45 minutos, há deles que se estendem por quase duas horas. Uma dança de Porto Judeu, “Maria Vieira”, contando a história de uma criança vítima de tentativa de violação e assassinato por um lavrador, teve particular sucesso: mulheres, homens, novos e velhso eram vistos a enxugar lágrimas teimosas. mas muitos enredos levam a assistência à gargalhada. Desde “Um casal americano vem à Terceira” até “Uma inspecção para a tropa”.
A ilha é envolvida quase inteiramente na celebração. Algumas empresas fecham mesmo as portas e a maioria dos participantes trabalha no Sábado ou pede dispensa para poder estar livre na segunda feira”. É a melhor festa do ano. A gente até se esquece de dormir e de comer”, comentava Hélio Costa. “A segunda feira é o dia mais bonito que temos na nossa terra”, explicava emocionado Elias Ferreira, autor das músicas da Dança de Espada da Freguesia da Ribeirinha.
“A freguesia inteira vibra com o Carnaval”, comenta Maduro dias, do Gabinete da Cidade de Angra do Heroísmo, “ e gera-se uma grande quantidade de actores populares. Depois de ao fim de dois ou três anos se andar à volta da ilha a apresentar durante 3 dias um tema num palco e a receber palmas, é como um veneno que se toma e que no ano seguinte se tem de tomar outra vez.”
O fenómeno está tão enraizado que até as crianças das escolas estão a organizar as suas danças. nalgumas freguesias, sa danças partem das Sociedades Recreativas mas noutras organizam-se fora delas, em casas particulares ou em garagens e há freguesias que apresentam várias danças. A tradição começa também a extravasar os limites da própria ilha. enquanto danças de freguesias da ilha foram actuar ao Canadá e à América, danças de emigrantes do Canadá e da Califórnia vieram até à Terceira.
Para satisfazer a curiosidade do público citadino, a Câmara de Angra passou desde o Carnaval de 1988 a abrir o Teatro Angrense para que as danças possam passar também por ali. Resultado: durante três dias seguidos é quase impossível arranjar um lugar sentado. No primeiro ano tiveram de fechar o Teatro à 1h00 da manhã. O público não gostou, queria continuar a ver as danças. “Quase que ia havendo tareia”, explicam-nos.
Pedrão num café fronteiro ao Teatro Angrense em 2002 junto a um exemplar do "União"
Durante todo esse tempo, ninguém arreda pé e as pessoas têem o costume de levar farnel para não perderem o lugar. O panorama dentro do velho teatro é de pasmar. Com uma lotação de 700 pessoas sentadas, terá nesses dias cerca de 1000 pessoas. Como não há lugares marcados nem camarotes reservados, o público acotovela-se em magotes o mais democraticamente que é possível imaginar. Apesar do espectáculo se prolongar horas e horas a fio, ninguém parece perder o interesse.
Nos caóticos bastidores do teatro, cruzam-se travestis, astronautas, cartolas e familiares dos dançarinos. À medida que vão chegando, os grupos são informados de quantos têem à frente. Quando vêem que vão ter de esperar muito, preferem partir para outra freguesia.
A primeira dança a actuar no teatro é a da Ribeirinha, cujos dançarinos, vestidos de azul e com chapéus de dois bicos, representavam o “Sacrifício do Amor”, um enredo adaptado de um romance francês. “Aquele ali é o Conde, um traiçoeiro”, vai-me sussurrando ao ouvido Henrique Cardoso, o responsável pelos ensaios das danças. “Isto agora é muito triste, ela vai chorar”, explica, “é que o Conde traiçoeiro quer casar com a rapariga”.
A rádio transmite em directo para as ilhas e para a América do Norte. É frequente nestes dias entrar num táxi ou num restaurante e ouvir a transmissão das danças. “Tudo por causa desta desavergonhada”, ouve-se na telefonia. “Francisco tudo isto começou/quando ela te procurou”, responde a voz feminina. Trata-se da dança “Pai Tirano” da Sociedade Brianda Pereira, de Porto Judeu.
Ao longo da ilha, dezenas de camionetas e automóveis circulam pelas estreitas estradas transportando os grupos de freguesia em freguesia. Os músicos, dançarinos, figurantes, actuam dez, onze, doze vezes no mesmo dia em pequenos palcos de madeira e perante plateias invariavelmente apinhadas. Como não há um programa previamente estabelecido para toda esta movimentação, é usual os grupos esperarem por vezes uma hora ou mais atrás de outros dois ou três grupos que chegam à mesma freguesia para actuar. Ao fim dos três dias do Carnaval, nunca se consegue completar o circuito das freguesias da ilha. “Faz-se uma média de vinte a trinta, é difícil chegar às trinta”, explicavam elementos de um bailinho das Lajes.
O estrondo de um foguete assinala a chegada de mais uma dança a cada freguesia e há delas que colocam dísticos saudando os visitantes. “Bem vindos”, lia-se nos Biscoitos. Em frente a cada Sociedade está sempre um mar de viaturas estacionadas. Todos os Salões onde passamos estão completamente cheios, seja no Cabo da Praia,em Porto Judeu, S. Sebastião ou Ribeirinha. A cena é sempre a mesma: um pequeno palco de madeira, por vezes um cenário e a sala cheia.
Percorrendo as freguesias, passa-se por camionetas de carga de onde saiem rapazes de chapéus emplumados e fatiotas listadas. Na beira da estrada, passam populares carregados com sacos cheios. São farneis para comer durante a noite passada na Sociedade. Aí, o carnaval é ocasião para um forte convívio social. Rapazes e raparigas têem ocasião para mais livremente do que o habitual, se encontrarem nos Salões Recreativos.
Para os músicos, dançarinos e figurantes, o esforço é enorme. Ao fim de 8 freguesias, de oito Sociedades diferentes, estão visívelmente extenuados. “Começámos às duas da tarde”, explicava um músico que por volta das 0h30 acabara de actuar em S.Sebastião. “Especialmente para quem está a tocar instrumentos de sopro ou a cantar”, explicava Manuel Bernardo, que tocava saxofone na dança de S. Bartolomeu, “ é muito cansativo”. Na noite anterior tinham acabado de actuar às 4h00 da manhã na Sociedade Velha das Lajes. “E estava tudo cheio”, conta.
Quem canta tem tendência a enrouquecer. Há quem tome pastilhas, quem se proteja de cachecol ao pescoço ou quem muito simplesmente beba aguardente. Aliás, a única compensação para os dançarinos , figurantes e músicos,é a comida e as bebidas que cada freguesia reserva para eles no fim de cada dança. “Hoje”, diziam-nos em S. Sebastião, “já por aqui passaram umas quinhentas pessoas a comer”.
Na Segunda Feira à tarde, encontramos o grupo de S. Bartolomeu prestes a partir para percorrer mais uma parte da ilha. No dia anterior percorreram doze freguesias. “Sai tudo das costas dos rapazes”, explica José Ângelo, que ajudou a ensaiar a dança. Naquele momento, os dançarinos começam a entrar para a caixa aberta de uma pequena camioneta. “Vamos à conta de Deus e dos seus Santos”, ironiza Ângelo, “ e a polícia ainda chateia por irmos assim”.
A dança de S. Bartolomeu passou por algumas dificuldades nos ensaios. Há o costume na Terceira de dizer que “a porca comeu a dança” quando os dançarinos não se entendem e não conseguem levar ao fim os ensaios. “Não chegou a comer mas esteve quase”, comentava sorridente Manuel Bernardo, o saxofonista.
Mais adiante, na Sociedade Recreativa Nossa Senhora do Pilar, em Cinco Ribeiras, o director da Sociedade fecha o pano e espera que um grupo de rapazes novos de S. Mateus se prepare. O enredo da sua comédia versa o juramento da bandeira e todos estão vestidos à tropa. “É a melhor maneira de nos divertirmos, se não houver isto torna-se chato para a gente e para as outras pessoas”, explica José Agnelo. Em S. Mateus, está habituado a viver intensamente o carnaval. “É água, farinha, garraiadas, mascaradas”.
Na Serreta, uma freguesia ventosa implantada num declive do qual se avista ao longe a Graciosa, homens jogam dominó enquanto outros se juntam no bar com os seus bonés americanos. Lá dentro, na sala, mulheres , crianças e idosos esperam mais uma dança de espada. A ilha, como um todo, não parece viver para outra coisa durante aqueles três dias.
“Quem quiser saber qual o sentimento do povo, as perspectivas para as eleições, o que está mal ou bem, é ouvir durante três dias as danças de Carnaval”, comentava Maduro Dias. “O que é bom, o que é mau, o que está chocando o povo ou o que o está alegrando, aparece nestas danças. São um perfeito inventário”.
O salão da Sociedade Recreativa, decorado com enfiadas de lâmpadas coloridas e palmas nas paredes, está cheio como um ovo. Na primeira fila senta-se um grupo de filarmonistas que tocará a música que o grupo dançará. Por detrás, está o público, a maioria pescadores e respectivas famílias, ansiosos por verem pela primeira vez a dança da freguesia. Há mães com as filhas ao colo, hordas de populares encostados à parede e junto á porta.
O ensaio geral destina-se em princípio a que a dança seja aprovada pela freguesia mas há que contar com o envolvimento de toda aquele gente. É que na plateia estão os familiares, as costureiras dos fatos, os autores da música e do enredo. A expectativa não pode ser maior.
Um pouco mais tarde, em frente à Sociedade União Católica da Serra da Ribeirinha, rapazes atravessam excitadamente a rua em frente para entrarem numa garagem. Aí, duas senhoras visívelmente extenuadas terminam os últimos fatos carnavalescos. Apesar de já serem 23h, continuam a costurar rodeadas por elementos da dança da Ribeirinha. “Não temos feito outra coisa”, contam as mulheres, que recebem 7 mil escudos por cada fato, “ontem foi até às 3 h da manhã e hoje às 8h já estavamos aqui outra vez”.
A azáfama nestas duas freguesias da Terceira era perfeitamente justificada. Nos três dias seguintes, mais de 30 danças carnavalescas de outras tantas freguesias percorrem cerca de 31 salões da ilha. Ao todo, mais de 1000 músicos, figurantes e dançarinos estão envolvidos. O público acorre em massa às Sociedades Recreativas, calculando-se a capacidade total das salas em cerca de 20 mil lugares. Para que tudo possa acontecer, existe uma autêntica “indústria” de cultura popular: costureiras, músicos, figurantes, autores de enredos.
As danças carnavalescas dividem-se sobretudo em danças de espada, bailinhos e comédias. As danças de espada são as mais dispendiosas, envolvem grande número de dançarinos e figurantes e têem como enredo dramas históricos ou amorosos. Figuras fundamentais da dança de espada são o mestre e o ratão. Ao mestre, empunhando uma espada e um apito, compete saudar a assistência e apresentar, em quadras, o enredo. O ratão, empunhando uma velha bengala, é quem introduz de uma forma jocosa o elemento humorístico.
Foto Estradas Perdidas
Os bailinhos, são danças mais ligeiras cujos assuntos recaiem sobre temas sociais. envolvem sátiras às Câmaras da ilha, aos emigrantes, a tudo o que pertença ao universo dos muitos autores de enredos. Por fim, as comédias são pequenas rábulas com no máximo 5 ou 6 figurantes.
Hoje, as danças desenrolam-se nos salões das Sociedades Recreativas mas dantes o seu espaço privilegiado eram os adros das Igrejas e a rua em frente às casas das pessoas mais importantes. Daí chamar-se dança de rua ou de dia. O grupo saudava a povoação, criava um espaço quadrangular entre a multidão onde apresentava o enredo e no final, agradecia às pessoas presentes fazendo inclusivamente uma colecta para pagamento das despesas. Os figurantes eram sempre homens que representavam também os papéis femininos, uma vez que às mulheres não era permitido entrar.
Com a passagem para os palcos, as danças foram evoluindo. A dança mais tradicional, a dança de espada, está a ser superada em quantidade pelos bailinhos e pelas comédias. As mulheres passaram a integrar os figurantes e este ano houve pelo menos uma mestre feminina.
Ao contrário dos corsos carnavalescos que se centram num cortejo envolvendo sobretudo adereços, disfarces e quadras satíricas, as danças carnavalescas terceirenses implicam a criação todos os anos de novas dezenas de enredos e dezenas de músicas diferentes. Grupos de criação quase institucionalizados, existem em cada freguesia. Aquele que escreveu enredos no ano anterior, é procurado para escrever enredos no ano seguinte, o mesmo se passando com os autores das músicas e os ensaiadores.
Hélio Costa, um habitante das Lajes que guia habitualmente um táxi na Praia da Vitória, escreveu onze enredos este ano. Fez um inclusivamente para o Canadá. “Já venho em Danças há 24 anos mas só comecei a fazer enredos há cinco quando não havia ninguém que me fizesse um enredo a mim”, explica. Hélio só faz enredos cómicos. Põe lá um pouco de crítica social mas, como explica, “as críticas que se ouvem nesta época a deputados, partidos e Câmaras não os afecta em nada”.
Além de escrever enredos, também participa como figurante. foi 5 anos seguidos vestido de velha. Este ano fez de lavrador e de astronauta. mas a sua especialidade são agora os enredos. “Quantas vezes vou sózinho no táxi, vem-me uma ideia, paro o carro e escrevo à pressa para a ideia não fugir”, conta.
Alguns dos enredos, sobretudo nas danças de espada, são dramas intermináveis que levam o público á lágrimas. Embora durem habitualmente no máximo 45 minutos, há deles que se estendem por quase duas horas. Uma dança de Porto Judeu, “Maria Vieira”, contando a história de uma criança vítima de tentativa de violação e assassinato por um lavrador, teve particular sucesso: mulheres, homens, novos e velhso eram vistos a enxugar lágrimas teimosas. mas muitos enredos levam a assistência à gargalhada. Desde “Um casal americano vem à Terceira” até “Uma inspecção para a tropa”.
A ilha é envolvida quase inteiramente na celebração. Algumas empresas fecham mesmo as portas e a maioria dos participantes trabalha no Sábado ou pede dispensa para poder estar livre na segunda feira”. É a melhor festa do ano. A gente até se esquece de dormir e de comer”, comentava Hélio Costa. “A segunda feira é o dia mais bonito que temos na nossa terra”, explicava emocionado Elias Ferreira, autor das músicas da Dança de Espada da Freguesia da Ribeirinha.
“A freguesia inteira vibra com o Carnaval”, comenta Maduro dias, do Gabinete da Cidade de Angra do Heroísmo, “ e gera-se uma grande quantidade de actores populares. Depois de ao fim de dois ou três anos se andar à volta da ilha a apresentar durante 3 dias um tema num palco e a receber palmas, é como um veneno que se toma e que no ano seguinte se tem de tomar outra vez.”
O fenómeno está tão enraizado que até as crianças das escolas estão a organizar as suas danças. nalgumas freguesias, sa danças partem das Sociedades Recreativas mas noutras organizam-se fora delas, em casas particulares ou em garagens e há freguesias que apresentam várias danças. A tradição começa também a extravasar os limites da própria ilha. enquanto danças de freguesias da ilha foram actuar ao Canadá e à América, danças de emigrantes do Canadá e da Califórnia vieram até à Terceira.
Para satisfazer a curiosidade do público citadino, a Câmara de Angra passou desde o Carnaval de 1988 a abrir o Teatro Angrense para que as danças possam passar também por ali. Resultado: durante três dias seguidos é quase impossível arranjar um lugar sentado. No primeiro ano tiveram de fechar o Teatro à 1h00 da manhã. O público não gostou, queria continuar a ver as danças. “Quase que ia havendo tareia”, explicam-nos.
Pedrão num café fronteiro ao Teatro Angrense em 2002 junto a um exemplar do "União"
Durante todo esse tempo, ninguém arreda pé e as pessoas têem o costume de levar farnel para não perderem o lugar. O panorama dentro do velho teatro é de pasmar. Com uma lotação de 700 pessoas sentadas, terá nesses dias cerca de 1000 pessoas. Como não há lugares marcados nem camarotes reservados, o público acotovela-se em magotes o mais democraticamente que é possível imaginar. Apesar do espectáculo se prolongar horas e horas a fio, ninguém parece perder o interesse.
Nos caóticos bastidores do teatro, cruzam-se travestis, astronautas, cartolas e familiares dos dançarinos. À medida que vão chegando, os grupos são informados de quantos têem à frente. Quando vêem que vão ter de esperar muito, preferem partir para outra freguesia.
A primeira dança a actuar no teatro é a da Ribeirinha, cujos dançarinos, vestidos de azul e com chapéus de dois bicos, representavam o “Sacrifício do Amor”, um enredo adaptado de um romance francês. “Aquele ali é o Conde, um traiçoeiro”, vai-me sussurrando ao ouvido Henrique Cardoso, o responsável pelos ensaios das danças. “Isto agora é muito triste, ela vai chorar”, explica, “é que o Conde traiçoeiro quer casar com a rapariga”.
A rádio transmite em directo para as ilhas e para a América do Norte. É frequente nestes dias entrar num táxi ou num restaurante e ouvir a transmissão das danças. “Tudo por causa desta desavergonhada”, ouve-se na telefonia. “Francisco tudo isto começou/quando ela te procurou”, responde a voz feminina. Trata-se da dança “Pai Tirano” da Sociedade Brianda Pereira, de Porto Judeu.
Ao longo da ilha, dezenas de camionetas e automóveis circulam pelas estreitas estradas transportando os grupos de freguesia em freguesia. Os músicos, dançarinos, figurantes, actuam dez, onze, doze vezes no mesmo dia em pequenos palcos de madeira e perante plateias invariavelmente apinhadas. Como não há um programa previamente estabelecido para toda esta movimentação, é usual os grupos esperarem por vezes uma hora ou mais atrás de outros dois ou três grupos que chegam à mesma freguesia para actuar. Ao fim dos três dias do Carnaval, nunca se consegue completar o circuito das freguesias da ilha. “Faz-se uma média de vinte a trinta, é difícil chegar às trinta”, explicavam elementos de um bailinho das Lajes.
O estrondo de um foguete assinala a chegada de mais uma dança a cada freguesia e há delas que colocam dísticos saudando os visitantes. “Bem vindos”, lia-se nos Biscoitos. Em frente a cada Sociedade está sempre um mar de viaturas estacionadas. Todos os Salões onde passamos estão completamente cheios, seja no Cabo da Praia,em Porto Judeu, S. Sebastião ou Ribeirinha. A cena é sempre a mesma: um pequeno palco de madeira, por vezes um cenário e a sala cheia.
Percorrendo as freguesias, passa-se por camionetas de carga de onde saiem rapazes de chapéus emplumados e fatiotas listadas. Na beira da estrada, passam populares carregados com sacos cheios. São farneis para comer durante a noite passada na Sociedade. Aí, o carnaval é ocasião para um forte convívio social. Rapazes e raparigas têem ocasião para mais livremente do que o habitual, se encontrarem nos Salões Recreativos.
Para os músicos, dançarinos e figurantes, o esforço é enorme. Ao fim de 8 freguesias, de oito Sociedades diferentes, estão visívelmente extenuados. “Começámos às duas da tarde”, explicava um músico que por volta das 0h30 acabara de actuar em S.Sebastião. “Especialmente para quem está a tocar instrumentos de sopro ou a cantar”, explicava Manuel Bernardo, que tocava saxofone na dança de S. Bartolomeu, “ é muito cansativo”. Na noite anterior tinham acabado de actuar às 4h00 da manhã na Sociedade Velha das Lajes. “E estava tudo cheio”, conta.
Quem canta tem tendência a enrouquecer. Há quem tome pastilhas, quem se proteja de cachecol ao pescoço ou quem muito simplesmente beba aguardente. Aliás, a única compensação para os dançarinos , figurantes e músicos,é a comida e as bebidas que cada freguesia reserva para eles no fim de cada dança. “Hoje”, diziam-nos em S. Sebastião, “já por aqui passaram umas quinhentas pessoas a comer”.
Na Segunda Feira à tarde, encontramos o grupo de S. Bartolomeu prestes a partir para percorrer mais uma parte da ilha. No dia anterior percorreram doze freguesias. “Sai tudo das costas dos rapazes”, explica José Ângelo, que ajudou a ensaiar a dança. Naquele momento, os dançarinos começam a entrar para a caixa aberta de uma pequena camioneta. “Vamos à conta de Deus e dos seus Santos”, ironiza Ângelo, “ e a polícia ainda chateia por irmos assim”.
A dança de S. Bartolomeu passou por algumas dificuldades nos ensaios. Há o costume na Terceira de dizer que “a porca comeu a dança” quando os dançarinos não se entendem e não conseguem levar ao fim os ensaios. “Não chegou a comer mas esteve quase”, comentava sorridente Manuel Bernardo, o saxofonista.
Mais adiante, na Sociedade Recreativa Nossa Senhora do Pilar, em Cinco Ribeiras, o director da Sociedade fecha o pano e espera que um grupo de rapazes novos de S. Mateus se prepare. O enredo da sua comédia versa o juramento da bandeira e todos estão vestidos à tropa. “É a melhor maneira de nos divertirmos, se não houver isto torna-se chato para a gente e para as outras pessoas”, explica José Agnelo. Em S. Mateus, está habituado a viver intensamente o carnaval. “É água, farinha, garraiadas, mascaradas”.
Na Serreta, uma freguesia ventosa implantada num declive do qual se avista ao longe a Graciosa, homens jogam dominó enquanto outros se juntam no bar com os seus bonés americanos. Lá dentro, na sala, mulheres , crianças e idosos esperam mais uma dança de espada. A ilha, como um todo, não parece viver para outra coisa durante aqueles três dias.
“Quem quiser saber qual o sentimento do povo, as perspectivas para as eleições, o que está mal ou bem, é ouvir durante três dias as danças de Carnaval”, comentava Maduro Dias. “O que é bom, o que é mau, o que está chocando o povo ou o que o está alegrando, aparece nestas danças. São um perfeito inventário”.
1 Comments:
At 10:55 da tarde, Terceirense said…
"Na Serreta, uma freguesia ventosa implantada num declive do qual se avista ao longe a Graciosa" - Mais vale tarde do que nunca para ler o que se escreve sobre a freguesia que tem vistas lindas...
Por isso, lembrei-me de algo que escrevi há um tempo:
O Carnaval da Terceira
O Carnaval da Terceira
Está de vento em popa
Um teatro de primeira:
Música, vozes e roupa.
Homens, mulheres, crianças
Aderem neste desfile
No palco rimam as danças:
Não há nada que mais brilhe.
A saudação e o assunto,
Marcam a primeira parte,
E após este conjunto
Encerra-se a obra d'arte.
Na despedida rimada
Um abraço de amizade
A dança mais animada
Deixa-nos sempre saudade.
As palmas o tom do brinde
Para quem assim festeja
Este momento não finde
Sem um doce na bandeja.
E p'ra quem está distante,
Da sua terra natal
Já pode ver radiante
Este nosso Carnaval.
Azoriana
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