estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2007-10-12

AO "VOLANTE DO PODER (BERTRAND) JÁ NAS LIVRARIAS

CAPA

EXCERTOS DO LIVRO:

«o que é que estes gajos vêm
para cá fazer?»

O pior que podia acontecer ao cônsul Marcello Duarte Mathias
era ter de receber um ministro ou um secretário de Estado ao fim-
-de-semana. Virava-se para mim, em exaspero: «Mas o que é que estes
gajos vêm para cá fazer? Só pode ser para me estragarem o fim-de-
-semana!» Chegava ao ponto de me pedir que fosse lá eu recebê-los:
«Pedro Faria, você que conhece toda a gente, vai você lá esperá-los ao
aeroporto». Conhecedor dos costumes e exigências dos governantes
portugueses, eu encolhia os ombros: «O sotôr desculpe mas vai ter de
ir... é a si que eles querem ver». A sua fiel e competente secretária, Ana
Rosa, dizia-lhe exactamente o mesmo: «Vai ter de ir...»
Para mal dos pecados de Marcello Mathias, existia na época um
então secretário de Estado que visitava frequentemente Nova Iorque
e aproveitava para se encontrar com uma amiga. Quando o homem
aparecia, Marcello Mathias azedava, ficava pior que estragado: «Mas o
que é que este indivíduo vem para aqui fazer outra vez?» O secretário
de Estado planeava tão bem as suas visitas que conseguia colocar os
assessores numa ala do hotel e ficar noutra ala para não ter de se cruzar
com eles.
Um dia, o azar bateu-lhe à porta e tinha de ser em... mais uma visita
a Nova Iorque. O nosso amigo encontrava-se mais uma vez rumo à
Big Apple, por sinal sozinho, quando Cavaco Silva muda o ministro da
tutela e este, como primeira e radical iniciativa, remodela o gabinete.
O governante encontrava-se dentro do avião em direcção aos Estados
Unidos quando soubemos da notícia na residência oficial, no Dakota
Building. Marcello Mathias rebolava de contentamento. O facto de ter
de se deslocar ao aeroporto de Newark para comunicar ao secretário
de Estado que fora demitido enchia-o de uma satisfação genuína.
O secretário de Estado chegou, ouviu a notícia e ficou de rastos.
Tinha vindo a Nova Iorque com uma detalhada programação oficial
de quase cinco dias. Mandou cancelar tudo e antecipou o regresso por
receio de que quando chegasse a Lisboa, já não tivesse as suas coisas
no gabinete. Depois, decidiu passear três dias pela cidade: «Já que estou
despedido, vou visitar Nova Iorque».
Acompanhei-o aos museus da cidade, levei-o às Torres Gémeas
do World Trade Center, ao Empire State Building, ao teatro na Broadway.
No fim da visita, Marcello Mathias foi ao aeroporto despedir-se
do ex-governante e deparou com uma figura feminina junto do ex-secretário
de Estado. «Pedro», perguntou-me entre dentes, «o que é que
esta faz aqui outra vez?» Limitei-me a sorrir.
Uma semana mais tarde, transportei o cônsul ao clube português
de Farmingville, em Long Island, no Estado de Nova Iorque, para assistir
a um concurso de misses. Marcello Mathias encontrou lá a amiga
do ex-secretário de Estado e não esteve com meias-medidas: «Ó J., de
facto, agora vejo porque é que o D. gosta tanto de si, você tem um par
de mamas monumental!»
Marcello Mathias tinha um sentido de humor cáustico. Ao acompanhar
a assessora cultural da Embaixada de Washington num Colóquio
na Universidade de Colômbia, comentou: «Esse chapéu, minha
senhora, fica-lhe muito bem, condiz perfeitamente com a curvatura
do seu nariz! A minha mulher tem um chapéu parecido...»
Apreciador de mulheres, quando via uma figura feminina atraente,
confidenciava-me: «Pedro Faria, o meu problema é ser um bocado
baixo. Mas isto resolvia-se com uns tacões». Uma vez a esposa deslocou-
se a Portugal, mas teve o cuidado de enviar para Nova Iorque o
irmão: «Mandou-me para aqui o meu cunhado para me controlar...mal
ela sabe que ele ainda é pior que eu». Sempre que íamos e vínhamos
do aeroporto para levar ou buscar dignitário, trazia novas histórias
para contar. Costumava dizer: «Pedro Faria, está tudo sobre rodas,
consigo corre tudo sobre rodas».
Nunca me diverti tanto como nos dois anos em que Marcello Mathias
esteve em Nova Iorque. Li o Diário da Índia 1993-97, acabei de ler
o Diário de Paris 2001-2003 e tenho pena que não escrevesse um Diário
de Nova Iorque. Teria muitas peripécias para narrar.
O falecido Matos Proença, embaixador que representava Portugal
junto das Nações Unidas no tempo em que João Quintela Paixão era
o cônsul em Nova Iorque, era outra figura com um apurado sentido
de humor. Contava anedotas de rajada, umas a seguir às outras, como
se estivesse a disparar uma metralhadora. Dormitava cinco minutos
ao meu lado e voltava a contar outra. Uma vez foram fazer intriga ao
presidente Mário Soares, e disseram que o embaixador andava feito
com uma secretária. Desabafo do presidente: «Ainda bem. É preferível
que esteja feito com uma secretária do que seja maricas. Dizem
que o ministério está cheio deles».
Quando Marcello Duarte Mathias assumiu o cargo de cônsul em
Nova Iorque, já Júlio Vasconcelos era o nosso cônsul em Newark
há vários anos. Um dia, íamos esperar um ministro ao aeroporto e
Marcello Mathias perguntou-me pela saúde do debilitado Júlio Vasconcelos:
«Esse homem é de um estoicismo incrível. Está a morrer e
continua a trabalhar no consulado, a ir aos clubes. Eu no lugar dele
dava um tiro na cabeça!» Mais tarde, ironia do destino, Marcello Mathias
haveria de contrair um linfoma e de travar, com um final feliz,
o mesmo combate de Júlio Vasconcelos. Será que hoje Marcello Mathias
pensaria da mesma forma?


«mandem atrasar o avião!»

"Um dia, encontrava-me em Portugal quando recebi um telefonema
do gabinete do primeiro-ministro Durão Barroso a explicar-me que
precisavam de mim para receber em Nova Iorque uma senhora com
um temperamento delicado, exigente, e que já tivera alguns problemas
numa visita anterior a Washington. Para além de secretária de Estado,
confidenciaram-me, era amiga de longa data de Durão Barroso.
Embarquei para Nova Iorque um dia antes da sua chegada. Ainda ia
no carro, rumo a Manhattan, recebi o primeiro de um rol de telefonemas.
Era a embaixada de Portugal em Washington a falar-me da senhora.
Em seguida, ligou-me o então chanceler João Gouveia do consulado
de Newark: «Olha que essa senhora...» A essa chamada, seguiu-se mais
uma, da parte de Arcelina Condesso, da representação permanente de
Portugal junto da ONU: «Presta atenção à senhora...»
Por fim, ligou-me o cônsul em Nova Iorque, embaixador Cruz de
Almeida. Queria dizer-me que no dia seguinte estaria no hotel à espera
da dignitária. Com tantos recados e tamanha preocupação, até eu, habituado
a receber presidentes e primeiros-ministros, estava a ficar em
pulgas. Quem seria tal personagem?
Chamava-se Maria Margarida Corrêa de Aguiar, era então secretária
de Estado da Segurança Social e deslocava-se quatro dias a Nova
Iorque, em representação de Durão Barroso a um congresso de microcrédito,
onde estaria presente o fundador do Grameen Bank no
Bangladesh e Prémio Nobel da Paz em 2006, Muhammad Yunus.
54 pedro faria e nuno ferreira
Estava tão preocupado em que tudo corresse bem que, logo à
chegada da senhora ao aeroporto, meti os pés pelas mãos, chamei secretária
de Estado à chefe de gabinete e chefe de gabinete à secretária
de Estado.
Para piorar as coisas, quando chegou ao congresso, a realizar-se
no hotel Hilton, contando com a presença de dois mil participantes,
entre os quais um presidente e vários primeiros-ministros, Margarida
de Aguiar descobriu que a assessoria diplomática do primeiro-ministro
se esquecera de pagar a totalidade da inscrição. Ao invés de ser
recebida como representante de sua excelência o primeiro-ministro
de Portugal, poderia participar no congresso mas unicamente como
observadora.
A secretária de Estado da Segurança Social de Durão Barroso não
gostou do estatuto que lhe fora atribuído pela organização e, ao fim
de meia hora, decidiu que não iria lá mais.
Nos três dias seguintes da visita destinada à participação do governo
português no congresso do microcrédito, Maria Margarida Corrêa
de Aguiar e a chefe de gabinete preferiram visitar museus, assistir a
espectáculos na Broadway e fazer compras.
Quando o último dia chegou, mesmo o meu habitual temperamento
contemporizador e flexível estava a ser duramente posto à prova.
Ao mesmo tempo que chovia sem parar, as duas senhoras entendiam
que a empresa contratada para servir o Estado português... era
um táxi pronto a deslocar-se ao próximo museu ou armazém onde se
encontrassem. Vi-me na obrigação de explicar à então secretária de
Estado da Segurança Social que os meus serviços para com o governo
português funcionavam mediante a apresentação ou comunicação de
um programa oficial.
No último dia da visita a Nova Iorque, Maria Margarida Corrêa
de Aguiar foi convidada a almoçar na residência oficial, no Dakota
Building, pelo então cônsul Cruz de Almeida. Visitar o edifício onde
viveu John Lennon entre 1973 e 1980 é um privilégio não acessível a
todos e desfrutar da vista do apartamento 74, no sétimo piso, onde
vive o cônsul, um deleite para os olhos. Vê-se a Midtown, o Central
Park, os lagos, o observatório, a silhueta da parte oriental de Manhattan
ao fundo.
Eu próprio a transportei ao edifício, deixei-a lá cerca das 12h00
e expliquei-lhe que, dado que o voo para Lisboa partia de Newark às
18h30, não deveriam deixar a residência do cônsul depois das 15h30.
Estava mau tempo, havia muito trânsito e, entre outros obstáculos,
teria de se atravessar o túnel Lincoln, sempre imprevisível em matéria
de tráfego. Comuniquei-lhes inclusivamente que, para o efeito, teriam
um motorista e uma viatura à sua espera a partir das 15h00.
Maria Margarida Corrêa de Aguiar e a chefe de gabinete saíram do
Dakota Building às 17h15. O meu motorista, à espera há duas horas
e um quarto, avisou-as de que, com certeza, deveriam demorar algum
tempo.
Exigiram que conduzisse com velocidade, o que — sabe-o bem
quem conhece Nova Iorque — é de todo impossível devido ao volume
de trânsito e ao controlo de velocidade imposto pelas autoridades.
Depois, telefonaram para o então presidente da TAP , Cardoso e
Cunha, em Lisboa, para que aguentasse o avião na pista até chegarem
ao aeroporto de Newark.
Quando chegaram, já o voo em causa estava fechado. A manga
fora retirada e a porta encerrada. O avião apenas não tinha levantado
voo rumo a Lisboa devido ao mau tempo que se fazia sentir na área
de Nova Iorque e ao atraso na descolagem dos aviões.
No check-in, a secretária de Estado fez um sem número de exigências
e perguntou: «Vocês sabem quem eu sou?» Naquele tempo, estava
muito na moda entre alguns elementos do poder a expressão «rolar
cabeças». Margarida parecia gostar particularmente da expressão: «Se
não for naquele avião, vão rolar cabeças!» A funcionária da TAP no
check-in explicou: «Pedimos desculpa mas a senhora chegou atrasada,
o voo está cheio, não podemos fazer nada...» Depois, explicou ainda
que, em virtude de uma avaria, o avião da TAP do dia anterior, um
espaçoso Airbus 340 ficara em Newark em reparação e partiria para
Lisboa essa mesma noite, não às 18h30 mas às 20h30. Bastaria esperar
um pouco e Maria Margarida Corrêa de Aguiar viajaria num
avião completamente vazio, com uma tripulação inteiramente às suas
ordens e a consequente melhoria na qualidade da viagem.
A secretária de Estado exigiu que retirassem do avião ao qual chegara
atrasada o passageiro que ocupava o seu assento. Depois de muita
pressão, os funcionários acederam às suas exigências — o passageiro
saiu — e explicaram-lhe que, uma vez que o porão estava fechado,
a bagagem teria de seguir no voo das 20h30. Margarida Corrêa de
Aguiar exigiu, o que foi feito, que abrissem o porão do avião da TAP
para transportar a sua bagagem.
No dia seguinte, eu próprio viajei no voo da TAP Newark-Lisboa
na companhia da chefe de gabinete da secretária de Estado. Esta
olhava para mim com um ar vagamente comprometido. Não era para
menos...
Semanas mais tarde, Maria Margarida Corrêa de Aguiar seria exonerada
pelo então ministro do Trabalho e da Segurança Social, Bagão
Félix, com o qual se incompatibilizara. Foi colocada no gabinete do
amigo e primeiro-ministro Durão Barroso.
Uma jornalista do jornal Público soube da história e publicou-a na
edição on-line. Procurou publicar na edição em papel mas ter-lhe-ão
dito que se o fizesse o pessoal envolvido, da escala em Newark da
TAP, poderia sofrer represálias que podiam ir até ao despedimento.
Iriam, como se diz em política, «rolar cabeças»...
Recordo-me de outra ocasião em que um avião da TAP descolou
cerca de duas horas atrasado de Newark, porque o voo de ligação,
que vinha de Washington com o então Presidente da República Mário
Soares, estava atrasado devido ao mau tempo. Foi necessário pedir
à escala que aguardasse pela sua chegada. Por um acaso, viajei nesse
mesmo avião. Mal o voo estabilizou nos 35 mil pés, vi Mário Soares
dirigir-se aos passageiros que viajavam em económica e pedir desculpa
por ter sido ele o causador do atraso do avião."


perdidos na neve

"Não era anormal lidarmos com governantes portugueses difíceis.
Nunca me esqueço da primeira vez que fui buscar ao aeroporto
La Guardia António Martins da Cruz, hoje ex-ministro e embaixador
mas na altura assessor diplomático de Cavaco Silva.
O cônsul João Quintela Paixão enganara-se no número de pessoas da
comitiva que chegava de avião de Washington onde estivera a preparar
uma visita do primeiro-ministro. Em resultado, vieram todos até ao hotel
Pierre uns em cima dos outros. Nevava, o que ainda piorava as coisas.
Martins da Cruz fora directo e incisivo mal entrara no carro: «Ouça, quero
entrar pela Quinta Avenida!» Expliquei que a entrada do hotel que dava
acesso à recepção ficava na rua 61. «Eu quero ir para a Quinta Avenida!»
repetiu Martins da Cruz, sem admitir nem mas nem ses...
Uma ordem é uma ordem. Transportei-os para junto da entrada
da Quinta Avenida e fui estacionar calmamente junto à entrada
da 61 . Daí a pouco, vejo-os em grupo a arrastar as malas no meio da
neve. «Então senhor doutor?», perguntei, «Não lhe disse que a entrada
era por aqui?» Martins da Cruz virou-se imediatamente para o cônsul
Quintela Paixão: «João, despede este gajo!» Expliquei-lhe que podia
dispensar os serviços da minha empresa mas não me podia despedir.
Eu era patrão de mim mesmo.
Nessa primeira viagem, verdade seja dita, o homem deu-me cabo
da cabeça. Reclamava que o carro estava sujo. Eu perguntava: «Como
é que o senhor quer que o carro esteja limpo se está sempre a
nevar?»
Cerca de 15 dias mais tarde, Martins da Cruz chegou a Nova Iorque
acompanhando o então primeiro-ministro Cavaco Silva. Organizei
o transporte de uma comitiva que envolveu uns 50 jornalistas,
incluindo três canais de televisão portugueses, ministros, secretários
de Estado, assessores, etc...
No total, somando às vinte limusinas, autocarros e mini-autocarros
destinados à comitiva, os carros da polícia e dos serviços secretos,
eram cerca de 35 viaturas. No final, António Martins da Cruz
trouxe-me uma garrafa de cristal Atlantis, oferta de Aníbal Cavaco
Silva, agradeceu todo o meu trabalho e pediu desculpa pela situação
anterior.
A partir desse dia, transportei António Martins da Cruz em Nova
Iorque e Washington dezenas de vezes, gerando-se inclusive uma empatia
entre os dois. Martins da Cruz é uma daquelas pessoas exigentes
que gera amores e ódios, pois é profissional, rigoroso e, por vezes,
agressivo para com os assessores.
Uma ocasião, já como ministro dos Negócios Estrangeiros do governo
de Durão Barroso, quis saber a que horas precisava de estar
no hotel para partir para o aeroporto, de regresso a Portugal. Recomendei
que partíssemos às 16h30. Decidiu então dar um passeio
pela Quinta Avenida. Chegou ao hotel às 17h00. Por essa altura, já os
assessores esperavam por ele diligentemente no hall, com as malas.
Alguém se esquecera, no entanto, de trazer para baixo as do ministro
dos Negócios Estrangeiros.
Martins da Cruz entrou em fúria e mandou-me arrancar para o
John F. Kennedy: «Faria, vamos embora. Vocês aí tratem das minhas
malas e apareçam depois no aeroporto!»
Dentro do carro, o diplomata de ligação da Representação Permanente
de Portugal junto das Nações Unidas, Eduardo Ramos, esperava
pacientemente pelo ministro. Quando escutou o grito de fúria de
Martins da Cruz, tratou de abandonar apressadamente a viatura. Reacção
pronta do ministro dos negócios estrangeiros: «Você não, você aí
p’ra dentro, você vai comigo!» O pobre, que António Martins da Cruz
tratava carinhosamente por «rapaz» — «O rapaz? Onde está o rapaz?»
—, só teve tempo de se enfiar novamente dentro do carro.
Quando, cerca de uma hora e meia depois, os assessores chegaram
ao JFK, deslocaram-se como um bando de gansos maltratados e
assustados para o interior da sala de fumo para poderem desabafar e
conjurar contra o ministro.
Eu escutava o chefe de gabinete adjunto, António Costa Moura,
quando vejo surgir nem mais nem menos do que o próprio Martins
da Cruz transportando numa bandeja bebidas para todos. Sabia
exactamente o que cada um bebia. Contava que em jovem tinha sido
barman. «Está a ver? Está a ver? Ele dá uma no cravo e outra na ferradura...
»
Uma manhã, a caminho do edifício das Nações Unidas, António
Martins da Cruz lembrou-se de perguntar à assessora que seguia com
ele se trazia os dossiês todos. «Ah, falta-me um dossiê, senhor ministro...
», desabafou. «Ó Pedro Faria», disparou seca e rispidamente o
ministro, «páre o carro. A menina saia e vá buscar o dossiê».
Encontrávamo-nos a dois quarteirões do hotel. Eu podia perfeitamente
regressar lá e esperar que trouxesse o dossiê de volta.
A assessora teve de abandonar a viatura, calcorrear dois quarteirões,
ir buscar o documento em falta e seguir pelos seus próprios meios até
às Nações Unidas.
As deslocações aos Estados Unidos do então primeiro-ministro
Cavaco Silva exigiam a Martins da Cruz, seu assessor diplomático na
altura, longas e exigentes visitas preparatórias. Cada detalhe era estudado
ao pormenor para que, quando o primeiro-ministro viesse,
tudo funcionasse na perfeição. Durante uma dessas «preparatórias»,
como lhes chamam em diplomacia, nevava com grande intensidade
em Nova Iorque.
Levei a comitiva, na qual se incluíam o cônsul Marcello Duarte
Mathias e o embaixador Fernando Reino, ao aeroporto, de modo a
que Martins da Cruz e os seus pudessem apanhar nessa mesma tarde
um avião para Otava, no Canadá.
Azar do destino, um dos assessores, Jorge Silva Lopes, não teve lugar
no voo. Martins da Cruz não esteve com meias-medidas: «Ouça, Jorge,
quero-o amanhã às 10h00, sem falta, em Otava, dê por onde der».
60 pedro faria e nuno ferreira
O homem entrou em desespero. Não parava de nevar em Nova
Iorque. Eu, Fernando Reino e Marcello Mathias tentámos tudo para
lhe conseguir outro voo ou um simples comboio mas em vão. Nada.
Impossível.
O representante permanente de Portugal junto da ONU e o cônsul
decidiram que só restava uma alternativa: «A única solução é um
dos motoristas do Pedro Faria levá-lo a Otava».
Com toda aquela queda de neve, gelo na estrada e possível agravamento
das condições climatéricas nunca enviaria um motorista meu
para transportar Jorge Silva Lopes até ao Canadá.
Depois de deixar Fernando Reino na York Avenue e Marcello Mathias
no Dakota Building e de apanhar o meu amigo fotojornalista
Carlos Lopes em Manhattan e levá-lo a minha casa onde passava uns
dias de férias, peguei o meu passaporte e lá fui mais o assessor de
Martins da Cruz pelo Estado de Nova Iorque acima.
A dada altura, estive para desistir da louca empreitada: A viatura
patinou como uma bicicleta em cima do gelo, efectuou um pião e
embateu contra uma parede. Virei-me para um Jorge Silva Lopes em
aflição e disse-lhe que teríamos de nos quedar por Nova Iorque.
«Ó Pedro, não me faça isso...», pediu ele em sufoco. Lá fui eu
estrada acima em direcção ao Canadá, o assessor ao telefone com a
esposa, em Portugal, a comentar que iriam «rolar cabeças na agência
de viagens» e perguntando como era possível «ter ficado sem lugar»
no avião. Eu escutava a conversa mas não podia perder tempo e todo
o meu poder de concentração, nesse dia, era pouco.
A meio do caminho, ainda apanhámos um susto. Ouvimos na rádio
a notícia de última hora de que um avião da USAir, companhia
aérea em que seguia o ministro, caíra ao descolar de Nova Iorque. Afinal,
fora outro avião da empresa que sofrera um acidente ao levantar
voo do aeroporto La Guardia.
A neve caía sem cessar. Pela estrada fora, havia viaturas atoladas
no manto branco que se ia acumulando e camiões despistados em posições
incríveis. Chegado a Albany, parei o carro. Não dormia há mais
de 24 horas. Dormitei meia hora para afugentar o cansaço. Quando
acordei, reparei que Jorge Silva Lopes finalmente sossegara e adormecera.
Na estrada, as condições de condução e de visibilidade eram péssimas.
Felizmente, à medida que nos aproximámos do Canadá, o tempo
foi melhorando. Como a camada de gelo que eu tinha em cima dos
faróis era tão espessa — quatro centímetros —, a minha principal
fonte de luz e orientação era a grande e bendita lua cheia reflectindo
na brancura da neve. No exterior, a carroçaria do carro estava gelada.
A neve, transportada de sul para norte, foi progressivamente diminuindo
de intensidade. Na fronteira, os funcionários olharam para
a viatura coberta de branco, riram e perguntaram: «Ei, você veio do
Alasca?»
Consegui chegar a Otava cerca das 08h30, perfazendo o percurso
que normalmente faria em oito, em 13 horas. Eu e Jorge Silva Lopes
já tomávamos o pequeno-almoço quando chegaram António Martins
da Cruz e o resto da comitiva preparados, depois de uma boa noite de
sono no hotel, para mais um dia de trabalho.
Apesar do cansaço, o assessor ainda teve forças para tentar presentear
Martins da Cruz com uma laracha, assim como que uma mistura
de sorriso amarelo, vontade de mostrar que cumprira o que lhe
fora pedido e um medir de forças: «Está a ver como chegámos a horas
e estamos a tomar o pequeno-almoço primeiro que vocês?» Único e
pronto comentário de António Martins da Cruz: «Melhor para si».
Quando regressei a Nova Iorque, o embaixador Fernando Reino
agradeceu-me o que fizera: «Ó Pedro Faria, cobre bem essa viagem.
Ninguém faria o que você fez. Só mesmo um português».
Acrescentei: «Louco como eu...»
Martins da Cruz pode ser agressivo com quem trabalha mas a sua
frontalidade tem os seus lados positivos. A partir de certa altura, e por
determinação do então ministro dos Negócios Estrangeiros Durão
Barroso, os consulados deixaram de pagar directamente e passou a
ser o Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa, a centralizar
os pagamentos dos serviços prestados ao Estado. Comecei então a ter
problemas em receber.
Efectuara há cerca de oito meses uma deslocação de Martins da
Cruz, como ministro dos Negócios Estrangeiros, à Assembleia-Geral
das Nações Unidas. Não havia meio de me pagarem. Desloquei-me
ao Palácio das Necessidades, em Lisboa, e nada. A contabilidade do
ministério persistia em não me desbloquear a verba em dívida.
62 pedro faria e nuno ferreira
Como ninguém me solucionava o problema, decidi dirigir-me directamente
ao ministro que, precisamente naquele dia, recebia num
almoço, o chanceler alemão. Deixei-me ficar por ali, à espera de uma
oportunidade. Quando vi toda as individualidades a sair, esperei que
aparecesse Martins da Cruz, o último, em questões de protocolo, a
abandonar o local. Ele já estava no pátio, perto da área do protocolo
quando me viu. «Faria, o que é que você está aqui a fazer?», perguntou
com aquela voz forte e determinada. Respondi: «Ah, vim aqui ver um
pagamentozinho...»
Martins da Cruz ficou possesso: «Faria, você não me diga que ainda
não lhe pagaram...» Encolhi os ombros: «Não, de facto, ainda não
me pagaram o trabalho do ano passado da Assembleia-Geral...»
O ministro lançou um olhar fulminante ao chefe de gabinete. «Parece
impossível! Este homem trata-nos tão bem em Nova Iorque, é
tão competente e tão profissional e vocês ainda não lhe pagaram. Estamos
quase a preparar-nos para uma nova assembleia e ainda não
recebeu o dinheiro da anterior...»
O chefe de gabinete, Pedro Nuno Bartolo, deverá ter ficado a odiar-
-me para todo o sempre. «Ouça», ordenou-lhe o ministro, «quero que vá
imediatamente com ele lá acima e ele que traga o cheque ainda hoje!»
O homem não teve outra alternativa senão levar-me à sala da contabilidade
do ministério. E recebi o pagamento dois dias depois.
O que Martins da Cruz nunca soube é que, dias antes, eu tinha
estado naquela contabilidade a perguntar pelo pagamento do serviço.
O funcionário que me recebera, não percebera quem eu era.
Pensou que fora ali enviado pela Representação Permanente Junto
das Nações Unidas.
«Ah, sim, temos o pagamento dos carros atrasados...», explicara
na altura. «Sabe, isto dos carros, a gente deixa sempre para o fim. Pagamos
quando houver dinheiro... Além do mais, já tive esse dinheiro
mas tive de o utilizar em pagamentos a embaixadores. Quem é que o
mandou aqui? Foi o senhor embaixador junto das Nações Unidas?»
Respondi: «Não, não, eu sou o dono da firma dos carros que o
senhor acabou de dizer que paga quando houver dinheiro... o tal que
utilizou para pagamentos a embaixadores...» O homem ficou branco."


vindos da santa terrinha

Nova Iorque é muito grande, vasta, multicultural. As suas regras
são simples e pragmáticas de forma a poderem ser aplicadas às milhões
de pessoas que lá vivem e aos milhões que a visitam, sem discriminação
de cor, religião ou etnia. Não existem excepções, sejam as pessoas
da Costa do Marfim, da Bulgária, das Ilhas Fidji ou de Portugal.
Por vezes, era difícil fazer perceber a alguns governantes portugueses
que o regime de excepção de que gozavam no pequeno e claustrofóbico
rectângulo à beira-mar plantado se desvanecia na imensidão
de Nova Iorque.
Eu precisava de estar constantemente a alertar ministros, chefes
de gabinete, secretários de Estado ou assessores para não abrirem a
janela, amachucarem o maço de tabaco e o atirarem pela janela fora.
Pedia-lhes: «Dê-me cá isso. Eu guardo...»
Em Nova Iorque, o simples arremessar de um maço de tabaco
pela janela do carro dá direito a multa quer o ocupante seja juiz, presidente
de uma multinacional ou primeiro-ministro. Já para não falar do
sacrifício que representava conviver horas e horas a fio com o fumo
do tabaco dentro da viatura...
Um dia, um funcionário de um hotel alertou-me para o facto de
uma pessoa que eu acompanhava estar a fumar, ilegalmente, no hall
do mesmo. A lei impunha que o fizesse no exterior. «Mas Pedro, explique-
lhe que sou o ministro de...» Quem é que em Nova Iorque, a
virtual capital do universo, quer saber disso?
64 pedro faria e nuno ferreira
E quando o ex-ministro e economista Braga de Macedo fez questão
de parar na Universidade de Princeton para visitar um amigo e
depois insistiu comigo para acelerar de modo a chegar a Washington
antes das 19h00 porque queria assistir à missa? «Ó senhor ministro,
desculpe, aqui não se pode ultrapassar o limite de velocidade...», expliquei.
Algumas vezes, os meus motoristas eram multados e em vez de as
pagarem ou de mas entregarem, desfaziam-se delas. As limusinas acabavam
por estar sujeitas a ser mandadas parar pelos sherifs e estes, em
Nova Iorque, não querem saber se o dono é Michael Douglas, Britney
Spears ou um ministro de um país estrangeiro.
Um dia, o então ministro da Defesa, António Vitorino, deslocou-
-se à famosa livraria Barnes & Nobles. Eu fiquei no exterior conversando
com o assessor militar e o assessor diplomático, Jorge Roza
de Oliveira. De repente, surgiram os sherifs. Explicaram que aquele
carro ia ser apreendido por ter diversas multas acumuladas. Eu fiquei
deveras aborrecido porque já me tinha acontecido esse problema uma
vez numa visita de Faria de Oliveira. Os assessores pediram-me para
explicar à autoridade que a viatura transportava o ministro da Defesa
de Portugal. Eles estiveram-se nas tintas. Ou pagávamos na hora ou
rebocavam o carro para o depósito e o António Vitorino iria de táxi
até ao hotel. Por sorte, o assessor militar tinha acabado de receber
ajudas de custo e emprestou dinheiro suficiente para pagar as multas.
Como pagámos em notas, tivemos ainda de cumprir o ritual de sermos
fotografados e filmados a entregar os dólares aos sherifs.
Numa outra visita, acercou-se de mim um assessor que tinha entre
mãos um problema sério para resolver junto da recepção do hotel:
os recepcionistas estavam a emitir as facturas da comitiva registando
o nome das pessoas tal e qual os progenitores os registaram nas
respectivas conservatórias em Portugal: «Pedro, eles são doutores, as
facturas têm de mencionar o doutor à frente do nome».
Cocei a cabeça, ainda me perguntei quantas pessoas da comitiva
seriam, na realidade, doutores, e procurei ajudá-lo em mais uma tarefa
surreal aos olhos dos nova-iorquinos. «Please», pedi, «pode colocar
“Dr.” antes de cada nome?»
(...)
Alguns assessores faziam-me pedidos totalmente absurdos. Um
dia, o então primeiro-ministro Cavaco Silva dava uma recepção no
luxuoso hotel Pierre, quando o chefe de segurança, Marinho Falcão,
se me dirigiu de semblante preocupado. É que o primeiro-ministro
estava atrasado para um espectáculo na Broadway e era preciso ligar
para a sala de espectáculos a dizer que não começassem o show antes
da chegada de sua excelência o primeiro-ministro de Portugal.
Expliquei a Marinho Falcão que se Cavaco Silva tivesse o azar de
chegar a atrasado, teria de esperar pelo intervalo do espectáculo no
foyer, como qualquer outro cidadão.
Uma das obsessões de alguns governantes portugueses era o futebol.
Uma vitória grandiosa da nossa selecção ou de uma das nossas
principais equipas significava dias de alívio e de repouso. Em 1991,
fui buscar um ministro ao aeroporto. Portugal jogava contra o Brasil,
num apinhado Estádio da Luz, a famosa final do mundial de juniores
que venceu por penalties. O ministro mal chegou ao John F. Kennedy
quis saber o resultado. «Óptimo, ainda bem, assim o povo fica entretido
mais um tempo e não nos chateia a cabeça...»
Uma vez conversei com um secretário de Estado sobre o então
presidente do Sport Lisboa e Benfica, Vale e Azevedo. O governante
confidenciou-me que nos meandros do poder se conheciam diversas irregularidades.
«Mas enquanto for presidente, ninguém lhe toca», disse.
Existia entre muitos governantes portugueses uma relação de amor
e ódio em relação ao futebol. A mulher de um primeiro-ministro confidenciou-
me que o marido detestava futebol. Costumava comentar
que considerava a maioria dos dirigentes e futebolistas pessoas sem
cultura, mal formadas e pouco educadas, mas que não tinha coragem
política para combater os tentáculos do poder instituído no futebol.
Sabia que se o fizesse, cometeria um suicídio político. Costumava citar
um poderoso dirigente do futebol que gostava de proclamar aos ventos
que o futebol enchia estádios e a política não."