estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2007-11-04

O DIA DA DEMOLIÇÃO

O rosto branco, seco e retesado do comandante do Corpo de Intervenção vai franzir-se pela última vez. Os jovens militantes da associação Solidariedade Imigrante, empoleirados em cima da barraca de tijolo, mais as suas tranças e missangas e sacolas bordadas devem-lhe fazer doer a medula. A escavadora avança por de cima de um pedaço intocado de relva, de correntes de lama bem escura desenhadas pelos rodados de metal ferrujento das lagartas, de vidros e pedaços de tijolo partido, tijolo moído, tijolo decorado com bocadinhos de cimento como chantilly em cima de um bolo. "Vamos embora, vamos embora!", grita o comandante com sotaque beirão e cara de poucos amigos. "Vamos lá!” Num ápice, os seus homens de capacetes azuis na cabeça e o maxilar protegido por uma espécie de caneleiras- maxileiras?- cercam a barraca enquanto mais activistas e moradores sobem para cima do telhado de zinco. O comandante passa pelos seus homens, o único de boina azul entre homens de capacete e dirige-se a um jovem de barba rala e cabelo comprido: "Está a ouvir? Você está a ouvir? O senhor não pode estar aí! Está a ouvir? Não pode estar aí!". Empoleirado como um gato em cima do telhado, o braço esquerdo segurando um cartaz, o jovem sorri: "Bata, pode bater! Há bocado foi a abrir, agora que está aqui a comunicação social está mansinho!" A escavadora ruge, rosna, avança e pára de estaca a roer por dentro em gemidos de metal ferrujento. Se fosse um touro resfolegava e espetava os coices para trás.
No meio da roda de polícias hirtos, brancos e cara de poucos amigos, há um que distende o rosto e ri. Primeiro abana a cabeça, depois ri. "Queria ver se fosse a tua família, se te estavas a rir!", grita um negro. Por perto, um polícia à paisana, vestido de blusão e calças de ganga, empunha uma shotgun. A tensão paira no ar, paira por cima da barraca, do monte de escombros, da roda de polícias azuis. De repente, a atmosfera desanuvia. A tensão sobe novamente por cima do esqueleto das antenas, do lixo e do zinco dos telhados e esfuma-se no azul límpido do céu, como um papagaio a quem soltam a corda.
Em cima de uma montanha de tijolos partidos, pedaços de fórmica coloridos, latas em ferrugem, placas de zinco dobradas, um polícia à paisana estabelece diálogo com um jovem morador guineense. “Escusas de estar nervoso”, diz. “"Eu respeito todas as pessoas e não estou nervoso, não me digas que estou nervoso", responde o jovem. "Isto mexe com toda a gente, não penses que nós temos prazer em estar aqui. Aqui não há humanidade. Tu podes dizer que a câmara não fez o seu trabalho mas a polícia não tem culpa", filosofa.
Daí a pouco, o mesmo agente à paisana é incumbido de estabelecer uma ponte fraternal e de diálogo entre as duas partes. Dirige-se ao grupo de guineenses que protestam junto à barraca a demolir e aconselha: "Um de vocês tem de criar uma comissão e falar bem, ouviram, falar bem". Responde-lhe um jovem negro: "Peço desculpa se falo com sotaque da Guiné..."
Os minutos passam e existem clareiras de diálogo. "Eu não vi o meu colega torcer o dedo à mulher grávida...o senhor é casado, se tivesse a sua mulher grávida, deixava-a estar aqui?, pergunta um polícia do corpo de intervenção a um negro. "Ela está a reinvindicar o direito dela! Nós lá na Guiné dizemos: Tem fome, vai à procura. Ela tem fome..." responde o guineense.
Um enxame de mulheres negras provoca o comandante: "Tem casa? Eu vou dormir na sua casa!" Comenta outra: "Não, tu vais dormir para o quarto dele". O comandante desenha um falso sorriso entre as covas secas do rosto, mira o azul do céu, tranquilo, limpo e sem desordem, fora um outro rasto branco de avião. E as horas a passarem...
O mar encrespa-se de novo quando um homem baixo, entroncado e forte recebe ordens para quebrar à marretada a porta da barraca em cujo telhado estão os moradores e militantes com cartazes. Um polícia vestindo um blusão e calças de ganga entra na barraca de shotgun em punho, como nos filmes. Os homens começam a retirar os pertences. Sai uma parte de uma cama, saem uns sacos, até que se ouvem muitos gritos: "Dinheiro! Dinheiro" Ele tirou dinheiro!" A vozearia só acaba quando o funcionário da marreta devolve uma nota de dez euros sob os olhares furibundos dos moradores. A escavadora ainda espera por uma ordem para avançar. "Não fica com medo que a gente não bate", grita de cima do telhado da barraca um homem em direcção ao funcionário que a manobra.
Caída do céu, aparece uma câmara de televisão. O operador instala-se em cima dos tijolos partidos e nunca mais dali sai. O comandante do corpo de intervenção deve estar a amaldiçoar o dia em que a televisão nasceu. Olha em redor e fala por um transmissor. Vêmo-lo retesar o branco da pele e mover as mandíbulas para cima e para baixo, como um peixe de águas profundas. No fim, lança um olhar rápido para o cameraman e a câmara indiscreta e avisa os seus homens de que é necessário esperar. Ainda tenta outra barraca mas os militantes seguiram lá a mesma estratégia. Colocaram-se em cima do telhado. O comandante está á beira de um ataque de nervos. Acaba por descarregar a frustração numa militante pequenina e com sotaque francófono que estava a filmar tudo com uma câmara digital. "Acabou, é o meu último aviso! Para estar aqui a filmar a senhora tem de estar identificada como jornalista!"
Pouco antes das 17h00, lança a toalha ao chão. "Vamos embora...", diz aos seus homens. Os polícias regressam por entre a lama e os escombros às carrinhas onde deixaram os escudos. A escavadora abandona vagarosamente o bairro acompanhada pelo polícia à paisana de shotgun no braço.
Os moradores guineenses gritam, batem palmas e cantam em coro um cântico em crioulo: "Ihode Há SIC na Biu!" Pergunto o que quer dizer aquilo a uma mulher sorridente. "Eh, quer dizer...cuidado, está a vir a televisão SIC!"