estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2008-06-08

ALGARVE A PÉ II

"Podes me dizer o que vem nessa mensagem?" A carrinha branca vinda das bandas da Barragem da Bravura acordara o vale das laranjeiras com buzinadelas frementes, de tal maneira que a gata Nina e a filhota correram rua acima acreditadas de que era o homem do peixe. Puro engano. Saíu-nos este passarão a vender roupa desde Silves. "É que eu não sei ler. Lê lá..." Caixa de mensagens, botão da esquerda, carregar ok: "hum, diz aqui..."
Pressenti o homem da camisa das riscas aberta no peito roer por dentro de ansiedade: "Leia, leia lá..." Diz que...oh embaraço... (leio em voz baixa para as mulheres não escutarem): "Oi lindo, queres vir ter comigo, se quiseres liga o 036..." O homem ri, brilham-lhe os olhos esverdeados e ao rir escancara a boca desdentada: "Eh lá, mas isso é lá de cima. Faz-me só mais um favor, apontas aí o número?
Recebera o vale perdido de Romeiras como uma uma benção depois de quilómetros de Espinhaço de Cão, uma serpente quente e crua de asfalto trepando desde Aljezur entre fatias de xisto, a monotonia do eucaliptal e o discurso desencantado dos serranos: " Se isso me continuar, abalo também. Não há trabalho. Um moço aqui da aldeia vai vender o carro e a casa. Isto em morrendo os velhos, não fica aqui ninguém", desabafara um homem junto à gasolineira de Marmelete.
Romeiras, a verde, soou-me a "Música No Coração": O som da água na ribeira, o ladrar de um cão ao longe, um galo equivocado em relação à hora do despertar, a voz de uma criança seguindo um mulher de bata vestida: "queres mais palha, queres?"
De repente, um cão chamado Tavares, um homem de foice na mão, uma mulher escondida atrás de um balcão na penumbra, um bailarico de moscas rodopiando no centro da sala branca despida. "Essas fotos são para quê? Porque é que fotografou a minha casa? E está escrevendo sobre o meu café? O senhor desculpe, acho estranho, costuma-se pedir autorização primeiro..."
Uns cem metros à frente, outro café: "Oh, aquilo é gente que desconfia de tudo". A Nina e a cria seguem a idosa de chapéu de palha enquanto esta acende o lume, corta as batatas, assa os frangos. Nina é cega de um olho mas mais atenta às carrinhas de venda que um prescrutador de baleias do Pico. À segunda é de vez, é a Renault do homem do peixe, jogando dois carapaus no cimento. "Atão Nina? Sabe bem, não sabe?"
Uns quinze quilómetros de deserto e desaguo em Odiáxere, encadeado pelos faróis dos camiões, as buzinadelas, as travagens junto aos semáforos da EN 125. No restaurante de estrada "A Choupana", todos têm pressa. "As pessoas não percebem que só temos duas mãos...", desabafa Florita, a romena. Elsa e Abel Serôdio têm urgência de comprar peixe no viveiro de Odiáxere para vender no mercado de Albufeira: "Oh mas já ninguém compra há gente. Vai tudo aos hipermercados. Isto está muito mau".
Pelas três da tarde, o comedouro, aberto desde as 5h30, esvazia como um fole. Há tempo para o assador de leitões, João Silva exibir as tatuagens e falar de Metallica e Florita e as brasileiras Marlene e Eliane adquirirem finalmente um pouco de sossego. "Poxa, estava morrendo de fome..."