estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2004-04-29

Um Carnaval inesquecivel

A médica negra, os lábios descaídos, dirigiu os olhos muito abertos na minha direcção e da minha cadeira: "Você aí, porque é que está sentado aí?" Eu ? Eu? Perguntei-me várias vezes se a pergunta que me era dirigida como uma flecha seria verdadeiramente para mim. "Ah...sim...estou aqui sentado porque aquela médica— que médica? onde estava ela? Porque desapareciam todos ao fim de uns segundos rápidos de palpações no abdomen?—me disse para ficar sentado aqui".
Entrara nas urgências naquele estranho domingo de carnaval às 8h30. Há dois dias que me contorcia de dores, cólicas que iam e vinham, me faziam encolher de dor a espasmos e segurar o ventre à medida, que anormalmente dilatado, se virava contra o seu dono e o flagelava. A sala de espera tinha mais acompanhantes do que doentes. Um grupo de três mulheres falava de culinária e uma jovem descrevia a paisagem junto ao seu futuro e novíssimo apartamento na Aroeira. Tiraram-me sangue e um raio X, lá para as 10h30 e mandaram-me esperar. Atormentado pelas ondas negras das cólicas que a qualquer momento me assaltavam, ora tentava ficar sentado na claustrofóbica sala sobreaquecida e cheirando a suor, ora ficava ao ar frio da manhã. De vez em quando, agarrava-me à parede do hospital, as calças abertas no primeiro botão, a mão segurando o ventre e apetecia-me gritar.
Por volta das 15h00 voltaram-me a chamar. A essa altura já pensara várias vezes se não seria melhor bater em retirada e estender-me em casa, derrotado, à espera de uma horrível e dolorosa dor final. Uma médica forte e serena apalpou-me o abdomen e perguntou-me porque estava ali. Um idoso sentado numa cadeira de rodas perguntou ao fim de dez minutos: "desculpem, estou aqui por esquecimento?" Outro, sentado na maca, ao meu lado, queixava-se de falta de ar e arfava ruidosamente. Um homem que podava qualquer coisa com folhas no quintal de casa, tinha um pequeno rasgo na mão e queria ser suturado. "E você?", perguntou a médica a um rapaz forte, aparentemente normal. "Eu? Tenho tosse, muita tosse" e fez "cuf", "cuf" para exemplificar. Um homem jovem entrou pelo gabinete: "Desculpe, estou com dores horríveis, estou ali há cinco horas, tenho as minhas filhas à espera em casa sozinhas, quando sou atendido?" O resultado das análises do homem ainda não estavam prontas. "Vai ter de aguardar, está bem? Aguarde na sala, por favor, que o seu nome seja chamado".
Do gabinete de atendimento aos homens, via de vez em quando uma mulher da limpeza pintada com pontinhos na cara como a Pipi das Meias Altas e uma peruca verde, limpando o chão das urgências como se fosse tudo carnaval. Um enfermeiro ia-se entretendo a fazer umas partidas às colegas.
Durante todo esse tempo, um negro jazia imóvel, aparentemente a ressacar de uma grande bebedeira, sentado à minha frente. Habituei-me a vê-lo como um móvel que está numa sala de estar há anos. De repente, o homem moveu-se. Primeiro, começou a saír uma espuma branca dos dois cantos da boca. Depois, agitando muito os dois braços, foi deslizando pela cadeira até caír redondo no chão. Apeteceu-me gritar mas não saíu som nenhum. Uma voz dentro de mim dizia: "Aquele senhor está a ter um ataque!"
"Rápido, saiam da frente", disparou uma enfermeira, vasculhando frenéticamente o armário à procura de seringas. "Puxa-lhe a manga para cima, puxa-lhe a manga para cima!, exclamou, já de seringa na mão. Um batalhão de enfermeiros já se debruçava sobre o corpo agora inerte no chão.
Pouco depois, passado o alvoroço, no gabinete dos homens, instalava-se a rotina. Na sala ao lado, por detrás da vidraça, uma mãe aflita apresentou o filho, um recém-universitário muito branco e olheiras nos olhos. " Senhora doutora, isto dá-lhe desde que entrou para a universidade, fecha-se no quarto, de luz fechada e treme, treme, chora que não quer ir para a faculdade, que lá não tem amigos. E o pior é que desde que se zangou com a namorada, já me falou em suicídio". Ouvi a voz da médica elevar-se por cima das cabeças de quatro ou cinco doentes que aguardavam sentados na maca, que o jovem deprimido se fosse embora: "Rapaz, então, ânimo. Vais ter mais problemas pela vida fora..." No intervalo de mais uma cólica, apeteceu-me gritar a plenos pulmões: "Dêem-lhe um psiquiatra, porra!"
Uma outra médica, vestida com uma bata cor de alface, chegou com um clister e disse: "Vai colocar isto e ver se funciona. Escusa de ir à casa de banho da sala de espera, há uma ali". Atravessei a urgência. "Ouçam lá", gritou a mesma médica, "calem-me aquele gajo! O que é que se passa?" Um homem com uma ferida contundente na cabeça fazia: "aaaaiiiiii, aiiiiiiii". "Acho que foi a anestesia que passou", disse uma enfermeira. "Eh pa, ele que vá curar a ressaca para outro lado". A essa altura, já o rapaz esperava em pé que um Valium o pusesse mais calmo.
Quando a médica dos grandes olhos e lábios descaídos me perguntou porque estava sentado na cadeira à sua frente, eu tinha terminado de enfiar o clister sem quaisquer resultados. Na verdade, a outra tinha-me mandado esperar ali. Nunca mais a vi.
O médico seguinte, barbudo, de meia idade e fala pausada explicou-me: "Olhe, você vai ter que ficar cá para observação e provavelmente para uma expiração". Quando saíu da sala, um homem apareceu com uma maca: "Esta maca é para si? É para si ou não?" Respondi que não fazia a mínima ideia. Até que veio até mim o enfermeiro brincalhão. Tinha acabado de pregar mais uma partida porque ainda vinha a rir e a funcionária da recepção afastava-se dele tapando a boca de riso. Virou-se para mim e disse: "Você vai ser internado". Vi nos seus olhos e lábios uma malícia carnavalesca, estava exausto e cheio de dores. Dei por mim revoltado e a esbracejar: "Acho bem que brinquem ao carnaval mas eu é que não acho piada nenhuma!" O ambiente nas urgências era tão frenético que tenho a impressão que ele não me ouviu. Virou costas, deixando-me entregue ao homem da maca: "Esta maca é para si ou não?"
Senti-me profundamente ridículo e confuso quando me deitaram na maca, vestido, os sapatos educadamente tentando não sujar o lençol, acompanhado daqueles que eu considerava verdadeiros doentes, todos eles idosos, esquálidos, brancos, tossindo, soltando "ais" profundos. Atravessei de maca uma área onde todos respiravam oxigénio, até a sentir parar e uma enfermeira me pedir para me despir. "Aqui?" Claro, era ali. Puxou bruscamente uma cortina, deu-me uma bata verde que achei que me deixaria nú atrás e desapareceu, não sem antes eu ter perguntado: "As cuecas também?" Pôs as mãos à cintura— era morena, vagamente bonita— e respondeu: "Oh homem, claro". Foi então que apareceu o rapaz do espólio, encarregado de fazer o rastreio de todos os valores escondidos no recôndito dos meus bolsos. Era todo gingão e bem disposto. Não reparei se mascava chiclete mas era como se mascasse. Quando, já vestido de bata e umas ridículas pantufas verdes comecei a retirar o conteúdo dos meus bolsos, os olhos dele brilharam de alegria, não era mais uma "box", era um acontecimento. "Ouve lá, Marília, a próxima vez que eu faça um espólio destes, fujo contigo...Onde é que você ía com este dinheiro?" Só em notas contou 14 contos. Semi-despido, atordoado, rodeado de seres que ora apareciam ora desapareciam sem deixar rastos, preferi não responder. "Tiro tudo?", perguntei. "Tudo, homem, tudo cá para fora". Um tilintar metálico encheu o habitáculo à medida que saíam as moedas. "Mil e tal paus em moedas!" De vez em quando vasculhava os bolsos e saía mais uma nota amarrotada de 500 escudos. Até que chegámos às notas estrangeiras. Por essa altura, já um segundo colega se debruçava atónito sobre o meu património. "Ouve lá, vamos precisar do caderno grande para apontar isto tudo. Isto é o quê? Reais? E isto aqui? Pesetas? Saiu-nos um caixeiro-viajante..."
Não tive tempo sequer de pensar. Não percebia porque, muito de repente, os dois enfermeiros me assaltavam as narinas com um tubo de plástico comprido. "Ouça, vai ter de ficar calmo, okay? Vai ter de manter a calma". O enfermeiro das brincadeiras de carnaval enfiou o tubo pela narina direita, a coisa de plástico arranhou as paredes nasais, quis saír pela garganta, retrocedeu e continuou até ao estômago, com o enfermeiro sempre a gritar: "Engula, engula, engula! Vá, vá, está quase!" Experimentei engolir e tudo o que sentia era um objecto estranho, horrendo, entupindo-me a garganta. Queria vomitar e não conseguia.
Surgiu um novo médico de volta dos meus papeis. Viria a saber que fora ele quem detectara algo de anormal no meu raio X. Deu ordem para eu seguir para a "Gastro". Descobriria mais tarde que a "gastro", uns andares de maca aos tombos no elevador acima do caos da urgência, era um universo de acalmia e serenidade, onde enfermeiras simpáticas e médicos próximos de técnicos de manutenção de carros de fórmula 1, me esperavam para me aplicar as novas tecnologias. Nunca vira as minhas profundezas num ecrã nem sentira uma sonda bater nas costelas. A recto-escopia deve ter durado mais de meia hora. Ouvi falar em "volvo", em "anda mais para trás" e "um pouco mais à direita". Espreitei: o homem circunspecto da bata branca parecia agarrado ao volante de um automóvel enquanto a enfermeira me segurava delicadamente o ventre. " Gostava de deixar isto", explicou a segunda enfermeira para o funcionário que levaria a minha maca de novo para baixo, "é sempre a mesma coisa, muito monótono. Há especialidades mais interessantes. Acho que ia gostar de ir para a urologia, as vias urinárias, sabes?" Tinha poucas chances. "Aí já está a minha mulher, não tens hipótese", explicou-lhe o rapaz. "Vou ver para onde me posso transferir...aqui é muito parado".
Não tinha relógio, o tempo materializava-se nas idas e vindas de maca, os engasganços com o tubo, a expectativa de um outro médico, uma voz nova, uma nova instrução de viagem. Encontrei a médica forte e simpática de novo no raio X. "Já fiz, porque é que tenho de fazer outra vez?". Os médicos ainda não tinham falado comigo? "Sobre o quê? A aspiração? Sobre...?" Pediram-me para respirar fundo, encher o peito de ar e espetar a barriga contra a placa do raio X. "Ouça", disse a médica com uma serenidade inquietante. "Você vai ser operado". Quando, em que dia? "Ouça, você vai ser operado já, tem...os intestinos torcidos, percebe...e durante dois meses vai ter que usar um saco, um pequeno saco para as fezes". Não sei que reacção a mente, a minha, produziu nessa altura porque me lembro da voz interior dizer "oh meu Deus" e "está bem". Cá fora, ter-se-á ouvido um "hum hum" gelado, entre o receio e a resignação. Os olhos só humedeceriam quando vi a minha esposa, logo a seguir, na urgência. Foi coisa de dois, três minutos até a maca seguir para o bloco operatório.
A maca entrou numa sala fria e em mármore. Um ambiente alegre de quem vai colocar o avião em andamento para de seguida fazer uma viagem onde tudo correrá bem, perpassava pelas pessoas de batas brancas e verdes. Um programa de country ecoava de um rádio do canto direito. Como podiam saber que eu gostava de country? Adivinhei a voz nasalada do Randy Travis e disse para comigo: "Vamos lá a isto, "that's life"...
A médica dos olhos grandes e tranquilidade nos lábios apareceu-me já eu estava de braços estendidos como Cristo, debaixo de umas lâmpadas redondas e ominpresentes. "Caramba, você persegue-me", disse-lhe quase a rir. Sentia-me surpreendentemente bem. Perguntei-lhe se podia assistir à operação, se era anestesia local. Nem pensar, disse. Recordo a máscara e aquela voz feminina despachada, de quem parece pensar"vamos lá e nada de mariquices", dizer: "Respire, respire, é oxigénio puro!"
Foi tão bom. Devo ter dormido entre duas a três horas. Já não pregava olho há duas noites. Senti uma profunda sensação de desilusão ao acordar, queria mais, tinha sido muito agradável. Parecia apenas que me tinham dado um valium 10. As cabeças femininas enevoadas sobre a minha cama-maca fizeram-me retroceder a duas horas atrás. Como num sonho, ouvi o meu anjo protector, a minha médica, explicar que não precisara de saco. Devo ter ficado por ali mais de uma hora. Dei por mim a ouvir conversas privadas das enfermeiras. "Ali há qualquer coisa que eu ainda vou descobrir, ela anda ultimamente com uma atitide muito estranha", falava a que parecia a líder de opinião. Falavam de folgas, de jogadas e de golpadas, de inveja, de favorecimentos. Meu Deus, porque todos os empregos serão iguais? A mais faladora pedia união contra o que percebia ser um lobby de outras enfermeiras. Estendido ao comprido, supostamente alheio a tudo, eu não existia. Imaginar-me-iam ainda a dormir? Estavam-se nas tintas. Mal sabiam que aquela era agora a minha novela e elas as minhas actrizes.
O estado de graça demorou pouco. Não só voltaram as cólicas—estremecimentos aflitivos e dolorosos na horizontal— como a linha vertical que eu supunha por debaixo de uma enorme almofada de gaze, iniciou as suas próprias erupções e queixumes. Passei a noite sem dormir, a tocar na campainha e a agradecer aqueles anjos noctívagos de bata branca, sempre que apareciam com mais uma dose de analgésico para a veia. Os meus companheiros de quarto eram dois idosos, um rabujento e de poucas palavras, outro um incontrolável falador que passou a noite a chamar as enfermeiras— "ai que morro aqui hoje, ai que me mijo todo"— por causa do saco de urina e o dia seguinte a contar a história da noite: "Ia morrendo aqui porque a preta ("A preta" era um enfermeira negra a quem ele nunca mais perdoaria) espalmou o saco e não o substituiu". Passou o dia a repetir a mesma história: a "preta isto", a "preta aquilo"...
A janela sem pressianas, tive tempo para ver o céu passar do azul muito escuro ao azul clarinho e às explosões de luz da madrugada. Tentei por várias vezes esticar a cabeça e ver para baixo da abóboda celeste. Um esticão de dor vindo da barriga obrigava-me imediatamente a desistir. Nesse primeiro dia, houve momentos em que pensei ingénuamente que os 20 e tal pontos podiam rebentar, tal a tensão junto à costura. Apetecia-me gritar. Apeteceu-me mandar embora as visitas. Não podia rir e ao fim de alguma conversa, tive de parar de falar. Tiraram-me o tubo e a argália para a urina e aliviei um pouco. O mundo não existia para lá do que a minha vista e os meus olhos alcançavam. Todas as minhas forças estavam concentradas na resistência à dor e à circunstância de estar preso à cama.
Fiquei dez dias no hospital. Na terceira-feira de Carnaval, tiraram-me da cama, deram-me uma espécie de bastão parecido com o de Moisés, com lugar para as garrafas do soro e do analgésico e sugeriram que circulasse pelo corredor. Percebi que conseguia sentar-me na cama, que a costura não rebentaria e que as pernas ainda seguravam o resto do corpo. Descobri os outros quartos, uma recepção, uma improvisada sala de televisão ao fundo, o deambular frenético das enfermeiras e auxiliares.
No hospital, a vida lá fora pouco interessa. Centramo-nos nas diferenças entre cada enfermeira, na rapidez frenética da "workaolic" de rabo de cavalo a manusear a agulha, nos olhos azuis da mais gorduchinha, na que nunca sorri, nas que trazem aliança, nas que não trazem. Bebemos-lhes as conversas acerca das folgas ou das horas extraordinárias. Escutamos as mulheres da limpeza: "Queria saber onde estava a filha...sei lá onde está a filha, dormiu em casa do meu filho e pirou-se. Acho que se pirou para o Algarve..." Ouvimos os queixumes e gritos dos outros, habituamo-nos a ajudar e criamos rápidos e estranhos laços de solidariedade com pessoas que nunca víramos na vida: "Estás melhor?". Vivemos ao ritmo criado pelas enfermeiras—"Vamos lá a saír da cama", "já se lavou?", "deixe-me ver o braço", "ponha lá o termómetro", "vamos medir a tensão?".
Os companheiros de quarto são elevados ao estatuto de quase elementos da família, apesar de alguns partirem e outros chegarem. João foi o mais jovial: "Então rapaziada!" Ao fim de cinco minutos já estava a colectar moedas para ligar a televisão— uma hora era cem escudos— e a encher o ar de boa disposição. Apesar de ir ser operado a uma fístula, a mulher e o filho choravam baba e ranho quando o viram ali deitado. Pareciam muito unidos.
Jorge, um jovem jogador de futebol para ser operado a uma peritonite substituiu o João. Cumprimentava-me com um esgar, como se dissesse: "A mim está-me a doer, a ti também?" Não conseguia ver sangue nem agulhas. Estar no hospital aterrorizava-o. Chamava as enfermeiras de cinco em cinco minutos chamando-as de "doutoras" para lhe subirem a cama ou perguntar quando lhe davam de comer. "Você em casa também é assim?", perguntou uma enfermeira, "ouça, vai ter que acalmar..." Ao fim de uns dias, conseguiu perceber que só tinha um doutor, quem eram verdadeiramente as enfermeiras e quem eram as auxiliares. "Senhora auxiliar!", gritava. Uma vez pediu água. "Está aí", respondeu uma, apontando para a torneira na bacia ao seu lado. "Não, água mesmo!", explicou. "Agua engarrafada? Não temos cá disso..."
A figura incontornável do quarto era o senhor Jaime. Tinha 84 anos e estava ali há cinco meses depois de operado a mais que uma oclusão nos intestinos. Tinha o saco a que eu escapara. Em vez de tocar na campainha, batia palmas. Uma vez estava em frente da televisão a bater palmas. "Ouça lá sr. Jaime, está para aí a bater palmas? Quem é que está a ganhar? É algum concurso?", perguntava uma auxiliar. O sr. Jaime era muito grande, pesado e comprido. Eram precisas três pessoas para o colocar na cama. A grande puxadeira era uma auxiliar que já trabalhara sózinha, de noite, num lar para 60 idosos. "Agarre-se-me a mim senhor Jaime, agarre-se-me a mim", dizia, com os braços entrelaçados nas costas do homem.
No hospital, há pequenas vitórias e pequenas derrotas. Na terça-feira de Carnaval disseram-me que já podia receber dieta líquida, sopas e sumos. Resultado: Quarta-feira expeli tudo em golfadas verdes de bílis que as auxiliares e as mulheres da limpeza limparam por umas três vezes com paciência de santas, do chão, da cama, da parede. Voltaram-me a enfiar o tubo pela garganta e a colocar em "dieta zero". Fiquei assim vários dias. Mas já levantava a cabeça, via os prédios do Feijó, as filas de carros em direcção do garrafão da ponte, crianças a brincar no relvado do hospital.
Saí dez dias depois, mais magro e mais fraco, feliz sob o sol primaveril de Março, uma avenida rasgando-me a barriga com uma linha e pontinhos de um lado e do outro, como uma vítima de contacto com a fuselagem de uma nave extraterrestre, os intestinos mais curtos e funcionais. Uma semana mais tarde voltei para retirar os agrafos do ventre. Fiz um esgar de dor ainda não me tinham retirado nenhum agrafo. "Não seja maricas!", disse-me o meu anjo da guarda. Ainda há histórias felizes.