estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2005-02-02

CLARKSDALE STATE OF MIND

Em memória de Lonnie Pitchford

Começou a chover em Clarksdale, Mississipi e algo nos diz que não vai parar. Abrigámo-nos no alpendre de Big Jack Johnson à espera que este chegue do médico. Lonnie Pitchford trouxe o seu dee-bow, uma espécie de guitarra rudimentar que aprendeu a fazer em pequeno, na plantação onde vivia. É no fundo um bocado de madeira esculpido à mão com uma corda no meio.
Passámos por casa de Lonnie para que este pudesse trazer o instrumento e agora anseamos pela chegada de Big Jack Johnson. Quem dera que os dois, que partem nessa mesma noite para Chicago, onde participarão no festival de blues local, pudessem cantar e tocar juntos ali mesmo.
Lonnie ainda tem os olhos inchados da noite anterior. “Uh man, a polícia chegou às quatro da manhã para nos calar e sabem o que é que eu fiz? Ah!Ah! Comecei a cantar: “I don’t want no police, no police...” Lonnie é acima de tudo um músico de blues mas como ele próprio explica, precisa de dólares no bolso. “Yeah, faço trabalhos de serralharia. Gosto do cheiro da madeira. Por vezes, não me pagam mas sinto que estou a ajudar as pessoas. Afinal, sou baptista”, comenta, com um delicioso sorriso nos lábios, cinquenta por cento alcool e cinquenta por cento de pura negritude.
Ao almoço, levou-nos a um daqueles locais que só parecem existir ainda no Mississipi, um misto de juke-joint e restaurante de aldeia. Atravessamos uma sala enorme e vazia, com um palco ao fundo e uma jukebox e chegamos à sala de refeições, onde somos recebidos de sorriso aberto por duas grandes e gordas cozinheiras negras. Ao fundo, dentro de uma caixa de papelão, um porquinho da índia não para de guinchar. “Cala-te”, grita Lonnie, “cala-te que já te vamos comer!”
Lonnie nasceu a 20 milhas de Clarksdale, numa plantação de algodão. O pai morreu quando tinha dez anos. “Eu fartei-me de apanhar algodão mas acabava por adormecer no meio do campo”. Como não tinha dinheiro para comprar uma guitarra, construiu uma. Assim nasceu a guitarra artesanal de uma corda em que hoje Lonnie é especialista, o diddley-bow.
Aos 20, Lonnie tocava em festas que organizava em casa ou na Beale Street de Lexington, a sua terra natal. “Tocava na igreja aos sábados e nas juke joints aos domingos. Desde pequeno que toco sempre que tenho hipótese. O blues é algo que vem de dentro, vem do coração das pessoas deprimidas, percebes? Como quando acordas e não tens comida na mesa, começas a tocar os blues... O blues nunca morre, faz parte da minha vida, you know?”
Lonnie canta e toca em todo o lado onde possa ganhar dinheiro, seja em casa de outras pessoas ou em juke joints. Em Chicago, onde trabalhou numa loja de bebidas, tocava atrás do
balcão. Depois, chegou a tocar “Disco” no Michigan, enquanto trabalhava numa fábrica de batatas e em Kansas, Missouri, juntou-se a um grupo religioso, os Pilgrim Outlets. “Trabalhava num hospital onde faziam operações ao cérebro. Sabem o que é que eu fazia? Limpava o chão. Mas eles tinham um nome pomposo para aquilo: “floor technician”. Ah!Ah!”
Quando regressou ao Mississipi, Lonnie foi aprendendo com os velhos músicos, como Eugene Powell, Bud Spires ou Sam Chatmon. Foi Robert Lockwood, no entanto, que o introduziu na música da sua maior influência, o mítico Robert Johnson. “Yeah, acho que ele estava adiantado para a sua época, eu acho. Por isso é preciso gente como nós para a perpetuar. Como me disse uma vez Eugene Powell: “Man, ajuda a manter os blues vivos. Já não há muitos rapazes novos como tu a tocar os blues. Yeah, é verdade”.
A cozinheira traz para a mesa grandes pratos de frango e catfish frito. Lonnie coloca as mãos no estômago e rejubila. “Oh man, esta foi a minha primeira verdadeira refeição desde há vários dias, acreditem. Que grande refeição, isto é o que eu chamo de “soul food”! O porco da índia não para de guinchar. “Vocês ouvem isto? Isto é o Mississipi, man, só vês isto no Mississipi, man”.
Do restaurante, pegámos em Lonnie e no seu diddley-bow e fomos a casa de Big Jack Johnson. Como todas as moradias de negros em Clarksdale, é uma habitação térrea com portas de madeira e alpendre e muitos negros, crianças e adultos a saírem e entrarem. Lonnie quer que peçamos aos filhos de Big Jack um dedal de metal para tocar o diddley-bow mas ninguém tem coragem. “Meu Deus”, comenta Lonnie, “vamos passar 12 horas naquele maldito comboio até Chicago. Acho que vou arranjar uma garrafa de Jack Daniels no bar e ficar por ali até chegar a Chicago”.
Quando Big Jack chegou finalmente, já Lonnie Pitchford se fora. Parecia triste e melancólico, a olhar para a chuva que não queria parar. Talvez se mostrasse um pouco ressentido connosco por não termos seguido o seu conselho: “Vamos comprar uma garrafa de whisky e abancar em qualquer lado a tocar...”
Big Jack Johnson, o “oil man”, como lhe chamam por ter passado a vida a guiar camiões, é um homem grande, de blusa estampada, que enche a cadeira do alpendre à nossa frente com as costas reclinadas para trás e um sorriso nos lábios. Em 92, o manager convenceu-o a deixar os camiões e a tentar uma carreira profissional. Big Jack, que precisa de dinheiro como de pão para a boca para sustentar os seus 10 filhos, aceitou. “Oh man, nunca pensei ver tanta coisa diferente. Ainda há três semanas toquei na Europa, em Roma, em Dublin, it´s great. As pessoas na Europa tratam-te melhor, fazem-te sentir alguém. Aqui, em certos sítios, ninguém bate palmas”.
Nada afastará Big Jack, no entanto, do Mississipi. “Não gosto de cidades grandes. Estou uma semana ou duas em Chicago e fico farto daquele barulho. Aqui, guio duas milhas para dentro do campo e tenho tudo o que quero, melancias, peixe com fartura no rio. Sabem o que está ali, dentro daquele balde? É catfish. Pescamo-lo ontem à noite. É por isso que eu gosto disto. Estarei sempre aqui até o “Lord” me chamar”.
A chuva na para de caír. Dois gatinhos brincam junto à escada que dá acesso à cozinha. Chega um homem velho, de mãos enrugadas, que mostra os grandes peixes que acabou de pescar a Big Jack e a quem este chama de “Daddy”. “Chamo-lhe assim mas ele não é meu pai”.
É tempo de irmos embora. Perguntamos a Big Jack Johnson o que ele acha dessa história dos blues ser música do diabo. Robert Johnson não afirmava ter um pacto com o diabo? “Oh, son, não é verdade. O blues é uma dádiva que Deus nos deu. Temos de lhe agradecer”.