estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2005-03-13

LAGOS, A CIDADE DOS RUMORES

Mulheres sentam-se em mesas de café a falar sussurrado sobre o assunto do momento. “Dizem, dizem que ele se suicidou...”, diz uma. “Tu, lá da tua casa, viste ou não viste?”, pergunta outra. Desde há uma semanas que em Lagos ninguém fala noutra coisa que não seja o suicídio de José Reis na esquadra da cidade. Não se trata de um falar livre, aberto e democrático mas de uma coisa assim entre a ladainha e o sussurro.
As informações e contra-informações sucedem-se. “Agora, já dizem que o polícia, o Domingos, estava em casa a dormir quando o Zé se suicidou, você acredita. Ah, e dizem que o spray apareceu no bolso do Zé...”
À superfície, a cidade parece viver o dia a dia normal de qualquer pequena cidade. Nas entrelinhas, nas conversas de café e da Praça Gil Eanes, o que aconteceu está presente em muitas conversas. Os interlocutores calam-se e baixam os olhos quando o forasteiro os confronta com o sucedido. “Ah, eu cá não vi nada. Porquê, disseram-lhe que eu tinha estado lá? Não, não vi nada”, responde educadamente um jovem barmen, que alguém jurava ser testemunha do que se passou no “Grand Café”, na madrugada do passado domingo.
Para alguém de fora, as pessoas são sempre muito as mesmas. Na Praça Gil Eanes, perto dos “junkies” que se passeiam pelo espaço compreendido entre os CTT de Lagos e as traseiras da Câmara Municipal, os polícias são os mesmos que nos observavam circunspectos quando nos dirigimos à esquadra da PSP local.
O jovem que se cruza conosco num bar é daí a pouco o barmen no animado “Mullens” e o outro, de cabelo com gel, que bebe imperiais no “Mullens”, é o que nos serve o café de manhã, junto à Praça Gil Eanes.
À noite, em plena Praça Gil Eanes ou mesmo na Rua 25 de Abril, a Lagos de Março é um deserto, um vazio quebrado pelas gargalhadas de um bando de turistas, pelo som do mar lá na Meia Praia ou pelo neon de bares como o “Bom Vivant”, os ecrãs gigantes ligados na Sky TV. Num dos bares do centro, um barmen é taxativo: “Lagos é muito pequeno, é um meio muito pequeno e você não vai conseguir que ninguém lhe diga nada”.
Procurar dados sobre o caso José Reis é como riscar a ponta de um iceberg. Em desespero de causa, rumamos ao bairro de 17 barracas junto ao Estádio Municipal de Lagos. “Devia era ter sido aqui. Aqui somos todos unidos e não temos medo da polícia. É quase tudo mulheres porque os homens estão presos. Quando alguém vai parar à esquadra, liga para cá e vamos lá todos”, explica J., uma amiga de infância de José.
“Já aqui tivemos uma placa a dizer “proibida a entrada à polícia”. Uma vez vieram cá buscar uma pessoa, até deram um tiro num carro. Fomos todos para a esquadra. Se o caso do Zé tivesse acontecido aqui, ele ligava, íamos todos lá”, afirma J., peremptória.