estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2005-04-21

DEVILS AND DUST


Posted by Hello


“Devils and Dust”, o novo álbum de Bruce Springsteen,a lançar na próxima terça-feira não é tão acústico e folk como alguns esperariam. Produzido por Brendan O’ Brien, que surge também no baixo e tendo Steve Jordan na bateria, conta com uma fatia significativa de arranjos, seja o violino de Sozzie Tyrell, seja as cordas da Nashville String Machine, seja os teclados do próprio Springsteen. Alterna temas sombrios e lentos como “Silver Palomino” ou “The Hitter” com outros alegres e exultantes (“Leah”, “All I’m thinking about”).
As canções que compõem “Devils and Dust” começaram a nascer, na sua maioria, há cerca de dez anos atrás, quando da tournée a solo de “The Ghost Of Tom Joad”. Bruce Springsteen contou à Associated Press que, no fim dos concertos, ía para o hotel e como ainda não tinha desgastado a voz como normalmente acontecia quando cantava com a E-Street Band, se punha a cantar e a compor no quarto.
Foi nessa altura que nasceram dois dos novos temas, “The Hitter” e “Long Time Comin’”, que inclusivamente foram cantadas nos espectáculos da tournée mas posteriormente deixadas na gaveta até agora. Os restantes temas, com excepção de “Devils and Dust”, estavam compostos por alturas de 1997. Bruce Springsteen, contudo, teria outras prioridades. Em 99, reuniu a E-Street Band ao fim de dez anos de jejum e partiu para a estrada. Em 2002, lançou “The Rising”, uma obra que nasceu do pó e do vazio deixado pelo 11 de Setembro.
“Devils and Dust”, o álbum que terça-feira estará nas lojas, acompanhado de um DVD de 30 minutos realizado por Danny Clinch, é diferente. Não nasceu de nenhuma necessidade imperiosa de cantar a dor americana, como em “The Rising”. Se há um tema verdadeiramente actual no novo álbum, é “Devils and Dust”, composto em 2003, sobre a Guerra do Iraque. Tudo o resto são, entre uma outra canção amorosa, “short stories”, pequenos contos sobre personagens anónimas: Uma prostituta de Reno, Nevada, um ex-pugilista, os imigrantes que atravessam a salto a fronteira entre o México e os Estados Unidos.
O álbum abre com o tema que lhe dá o nome, o mais forte, o mais devastador. A perspectiva é a de um soldado americano perdido nas areias do deserto iraquiano, o dedo no gatilho e sem saber em quem confiar. A voz de Bruce Springsteen ergue-se na desolação, as cordas da Nashville String Machine encadeiam o passo, a harmónica rasga o horizonte e os versos dão murros no estômago: “I got my finger on the trigger but I don’t know who to trust”, “where a long, log way from home”, “I got God on my side, I’m just trying to survive”.
Em “Devils and Dust”, a Guerra do Iraque que nos rebenta em imagens no cérebro, é a guerra do lado das trincheiras. A canção é como uma carta que alguém escreve a amada e aos amigos lá de muito longe, de um lugar em chamas: “Well I dreamed of you last night in a field of blood and stone/ the blood began to dry/ the smell began to rise”.
A partir do primeiro tema, o álbum diversifica-se. “All the way home”, foi composta há muito tempo pelo “Boss” e gravada em 91 por Southside Johnny no álbum “The Better Days”. Aí, surge como uma balada melosa e soul. Agora, Bruce deu-lhe um toque mais “roots rock”, com a batida forte e sincopada da bateria de Steve Jordan e a pedal steel de Marty Rifkin. De todos, “All the way home” parece o tema menos inovador e mais previsível do álbum.
É a partir de “Reno” que o “Boss” regressa à criação de personagens de quotidianos marginais. Eis uma balada lenta que começa à Bob Dylan ou Woody Guthrie e se vai desembrulhando aos poucos. O narrador envolve-se com uma prostituta de Reno, a slide acústica por trás, o pensamento no rio mexicano de Amatitlan batido pelo sol e no sorriso de Maria, lá longe, no Vale de dos Rios. A balada termina com a orquestração delicada da Nashville String Machine.
Ao contrário de “The Ghost of Tom Joad”, em “Devils and Dust”, os arranjos e a produção parece-nos mais madura e mais omnipresente, seja o violino de Soozie Tyrrell, seja a pedal steel, o uso de slide na guitarra de Springsteen, a presença da Nashville String Machine ou a presença de metais. Por outro lado, a temas mais lentos, mais folk e acústicos como “Reno”, Bruce contrapõe canções mais alegres, como é o caso de “Long Time Comin’”.
Esta última corta com as imagens do quarto sórdido da prostituta de Reno e canta o amor, com ritmo suficiente para entusiasmar a plateia. Os amantes não são propriamente novos, já fizeram os seus disparates na vida mas a noite é de regresso e reconciliação junto a uma fogueira, duas crianças a dormir em sacos camas por perto. “It’s been a long time coming my dear, it’s been a long time comin’ but now it’s here”, canta.
“Black Cowboys” pode ler-se e escutar-se como um pequeno conto, uma “short story” sobre a vida secreta de Rainey Williams, que o “Boss” transforma numa balada sombria, alimentada no final pelos coros, o teclado, a secção de metais e as cordas da Nashville String Machine.
“Maria’s Bed” produz, em relação a “Black Cowboys”, o mesmo efeito vivificante que “Long Time Comin” produziu a seguir a “Reno”. Adeus solidão e tristeza. “Maria’s Bed” traz-nos uns pózinhos de Stones e a country rock dos Creedence Clearwater Revival. A batida rock é demolidora, o violino e os teclados celebram a felicidade de poder partilhar a cama de Maria ao fim de 40 dias a, supõe-se, patrulhar a fronteira.
O resto do álbum evolui entre as narrativas lentas e desoladas de temas como “The Hitter”, “Silver Palomino” ou “Matamoros Banks” e celebrações festivas como “Leah” ou “All I’m thinking about”.
O tema “Silver Palomino”, desenrola-se sob os céus do West Texas. Um rapaz de 13 anos sobe à montanha e canta a perda da mãe: “As I rise higher I can smell your hair/ The scent of your skin, mother, fills the air”. Em “The Hitter”, Bruce canta em toada lenta, folk, a história de um ex-pugilista que depois de uma vida turbulenta e violenta, pede à mãe que lhe abra a porta.
Em “Matamoros Banks”, por seu lado, regressa aos cenários de fronteira e ao tema da imigração hispânica a salto, como em “Across the border” (“The Ghost Of Tom Joad”). É mais uma balada lenta com uma guitarra que lembra o dedilhar texano de Willie Nelson no álbum “Spirit”. É a mesma atmosfera, o mesmo pano de fundo, as margens do Rio Grande, as luzes da prometida Brownsville, do outro lado da fronteira.
“Leah” e “All I’m thinking about” são ambas duas canções alegres, “Leah” surpreendendo-nos com a sua trompete mariachi e a segunda um honky tonk cantado em falsetto bem mais próximo de Nashville do que de New Jersey, uma espécie de rockabilly acústico, com muito balanço, a slide acústica acabando atravessada pelos uivos selvagens do Boss.
Por fim, “Jesus was the only son” é o gospel do album, com teclados e coro gospel, cantado como numa igreja sulista, com um piano delicado por trás.
O cd vem acompanhado de um DVD de 30 minutos realizado por Danny Clinch e no qual Bruce Springsteen canta, só com a guitarra, numa casa muito working class, onde até o candelabro lembra o da foto interior de “Nebraska” (82), os seguintes temas do disco: “Devils and Dust”, “All the way home”, “Reno”, “All I’m thinking about”e “Matamoro’s Banks”. Entre os temas, o “Boss” conta como foi contratado, aos 22 anos, como “acoustic act”, fala das personagens do disco e explica o sentido geral do álbum. São “histórias individuais de pessoas em luta contra os seus demónios, pessoas lutando contra as suas confusões, às vezes bem, outras vezes de forma trágica”, explica.