estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2005-06-04

Our Beatiful Reward


Foto Site Badlands
Posted by Hello

Madrid, 2 de Junho. Sózinho, num palco algo gótico entre o azul e o vermelho, Bruce Springsteen senta-se ao orgão celestial que escolheu para a primeira de muitas das suas reinvenções da noite. Ao longo do espectáculo, num Palácio de Deportes com uma acústica perfeita e sete mil incondicionais vindos de toda a Espanha e do estrangeiro, o Boss vai entreter-se a rescrever, rearranjar, cada tema, cada canção. A primeira, “My Beatiful Reward” soa evangélica, espiritual, plana sobre a sala como se de uma igreja se tratasse.
Se alguém esperava um mero e simplista espectáculo acústico, rapidamente se apercebeu que, nesta fase amadurecida da carreira, Bruce Springsteen está cada vez mais próximos das raízes da música popular americana. Não foi por acaso que o som de fundo antes do espectáculo começar era o do bom e velho bluegrass de Bill Monroe ou Ralph Stanley. Não foi por acaso que um dos hinos de mais significado carreira de Springsteen, tenha sido tocado em registo Delta Blues. Mississipi Fred Mcdowell, Muddy Waters, teriam-na cantado assim, repetindo à exaustão o refrão “reason to believe”.
A amplificação da viola acústica e a voz cada vez mais profética de Bruce Springsteen, tornaram temas como “Long Time Coming” em celebrações e ninguém leva a mal que alguém se levante para dançar “Maria’s Bed. Afinal, que diabo, estamos num concerto do Boss e não num recital. Com o Bruce Springsteen de 2005, como já vem acontecendo de há uns anos para cá, a carga profética e espiritual é cada vez maior e a energia emocional libertada na sala por um homem só com a sua viola é quase, semelhante, a de um pregador.
Nunca o víramos, também, tantas vezes sentado ao piano. Muitos temas foram tocados ao piano como se tivessem sido acabados de compor. São clássicos como “The River” ou “My Hometown” que ele sabe que pode interpretar de várias formas. “The River” pode ser um hino rock, pode transformar-se numa melancólica balada folk e o mesmo se passa com “My Hometown”, transformada desta vez num tema ainda mais intimista, enriquecido pelo rendilhado do piano.
“The Rising”, que na anterior tournée abria os concertos com a atmosfera sonora dos teclados, transformou-se numa poderosa versão acústica. Podia ser cantada assim na tenda de um pregador dos anos 30 algures no Missouri ou nos Apalaches. O Boss despe a canção até ao esqueleto e torna-a bravia, violenta, a guitarra acústica a ecoar na sala com a força de uma banda.
“Further Up On The Road”, em toada folk/blues/ country, é aquele abraço amigo, a fraternidade “blood brother” que há muito prega nos palcos:”Where the road is dark and the seed is sowed, where the gun is cocked and the bullet’s cold, where the miles are marked in the blood and gold, I’ll meet you further on up the road”.
Bruce Springsteen deixou no Palacio de Deportes a sua marca de pregador e falou bastante, em espanhol, como na introdução de “Jesus was the only son”: “Todos los padres quieren proteger su hijos mas cada hijo tiene su destino”.
Em “The Hitter”, regressou ao registo Woody Guthrie e emociona no falseto final. A história do velho pugilista exausto que pede um último abrigo à mão rivaliza em beleza com a lindíssima “Matamoros Banks”. O Boss regressa a um dos seus temas preferidos, o dos ilegais mexicanos que atravessam a salto a fronteira sudoeste. O tema já fora cantado em “Across the border” mas em “Matamoros Banks” Bruce Springsteen presta homenagem aos que morrem a atravessá-la e a personagem deste tema forte afogou-se a atravessar o prometido Rio Grande.
Admirável foi a forma como o Boss tranformou mais tarde o rockn’roll “Ramrod” numa festa chicana. Nem precisou de acordeon porque a harmónica fez de acordeon. O ambiente no Palácio de Deportes com as primeira filas em festa, lembrou por momentos uma festa de “tejano”.
Voltou a reinventar o reportório com “The land of hope and dreams” e com o folk/ blues marcado por uma percussão ritmada em fundo. A surpresa viria no final, a romântica “My baby dream” a lembrar Roy Orbinson tocada tal como início em orgão.
No final, ficou a sensação de termos presenciado, privilegiados, um misto de pregação e de recital de um homem que salvou o rock’nroll mas está, à medida que vai envelhecendo, cada vez mais próximos das raízes da música popular americana: Blues, bluegrass, tejano, cajun, folk, country.
Bruce Springsteen possui hoje um reportório/património/ legado que o coloca no mesmo patamar de figuras lendárias como Hank Williams ou Leadbelly. As suas músicas ficam para a posteridade, disponíveis para serem reinterpretadas em diferentes registos e versões diversas.