estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2005-11-20

SÓZINHO NA SALA

cinemascreen[1]

“ Pode sentar onde quiser, é só o senhor, não tem mais ninguém”, explica a empregada loira, pronúncia de leste, um misto de tristeza e simpatia. São 13h00 e, convenhamos, uma hora muito improvável para ver um filme numa cidade que está a almoçar. Ali por perto, dezenas de comensais, a maioria funcionários de empresas que funcionam por perto, conversam, riem, falam alto. Mais à frente, as seis salas de cinema do centro vivem no vazio.
É fácil perceber quando há pouco movimento. Na bilheteira, um andar acima, o funcionário ouviu-me pedir um bilhete para a sala 2, pegou no telefone e explicou: “ Sim, é para a sala 2, uma pessoa para a sala 2”.
Em frente às salas, um universo mal iluminado e azulado pretende atrair-nos para o mundo maravilhoso das pipocas e dos refrigerantes norte-americanos. O bar, muito iluminado, chama por nós. Tem copos, palhinhas, batatas fritas, tudo o que deveria fazer saltar de alegria um grupo de pré-adolescentes. Não está lá ninguém, a não ser um funcionário tão simpático quanto a mulher de olhos azuis e cabelo loiro que corta o bilhete e nos apresenta a uma sala com uns 150 a 200 lugares vazios.
Quando finalmente terminam os trailers de diversos filmes que nunca quererei ver e começa a exibição de “Na Sua Pele”, fecham-se finalmente as portas, deixo de ver o balde e a vassoura e o saco preto de plástico no corredor azul e tomo consciência da situação real: Por cinco euros, uma sala óptima, um som dolby surround, tudo para uma pessoa.
Cameron Diaz é uma visão surreal, numa Filadélfia cinzenta e invariavelmente à chuva ou coberta de neve. Despe sapatos, calça sapatos, veste-se, despe-se e eu, a sala vazia, só penso em que ângulo e em que lugar poderei apreciar o filme. Quanto luxo, quanto privilégio. Posso gritar, posso falar em voz alta, posso pensar sem o remoinhar das pipocas vizinhas no cérebro e sem o “slurp” irritante da palhinha a sugar a cola. O filme é vivido em solidão, é certo, mas com outra intensidade. Só eu e a fantasia da tela.
Estava num apartamento de Filadélfia quando ocorreu o intervalo. Sozinho na sala, perplexo, esperei. As portas abriram-se e reapareceu a empregada de leste simpática. Perguntei quanto tempo era o intervalo. “Cinco minutos. Só cá está o senhor, já são quase três horas, não sei porque as pessoas não vêem. É sexta-feira”.
hopper.ny-movie[1]
Edward Hopper

Ao meu redor, o mesmo panorama das 13h00. O bar iluminado e vazio, as restantes salas vazias. Uma rápida incursão à casa de banho e refugio-me na sala. Mal me sento, a porta fecha-se e o filme recomeça imediatamente. Filadélfia, a feia e fria desaparece, abre-se uma janela sobre a Florida. Eis a Sheila McLaine...
O vazio em salas de excelente qualidade não são, infelizmente, fruto da hora nem exclusivo daquelas salas. Nas tardes de semana, onde há cerca de 20 anos as pessoas desocupadas, estudantes fugidos das aulas, povoavam as salas de cinema a ver a última estreia, existe hoje uma quebra de assistência que salta à vista. “Éramos quê, uns seis na sala”, explicava-me Rui Miguel, quinta-feira passada, junto à entrada das salas de cinema do Centro Comercial Vasco da Gama.
Ali por perto, são sobretudo casais de namorados que espreitam a possibilidade de ver um filme a dois. Rute e Simão conversam. Ele queria ver “Pânico a Bordo” na sessão das 18h25 mas ela não lhe quer fazer a vontade: “Não sei, não me apetece”. Ali à volta, é o frenesim do shopping. Pessoas entram e saem. Jovens desocupados observam raparigas também eles observados pelos seguranças. Na fila das salas de cinema, onde simultaneamente, se compram pipocas e bilhetes, estão cerca de seis pessoas.
O cenário era idêntico nas salas do Centro Comercial Colombo no dia anterior. Na sessão das 15h55, eramos poucos na sala. Seis, sete, oito? Judie Foster entrara em nervosismo paranóico porque não sabia da filha dentro de um grande avião. Fechara-se na casa de banho. Abrira um alçapão e vrumm...escapulira-se para uma zona interdita do avião. Mexeu em fios eléctricos para colocar tudo às escuras. Suspense...
“Scratch, scratch, scratch”, ouvi vindo do meu lado direito. Uma mão gulosa escavou um enorme pacote de cartão e umas mandíbulas devoradoras produziram todo um outro filme.

2 Comments:

  • At 1:47 da tarde, Blogger Antonio Miguel Matos said…

    Pois é Nuno.... realmente é fora do comum termos uma sala de cinam so para nós!
    A mim aconteceu-me uma vez: o ano passado, em julho... a sala era no corte ingles e o filme "touching the void" sobre uns alpinistas a escalarem uma montanha dos andes. magnifico o filme (tenho o dvd). o filme era na neve, gaus negativos e eu de t shirt e calcoes com 30 graus fora do cinema. Tb detesto as pipocas e as colas. para "eles" vender um bilhete é como vender uma guloseima. Ja nao se consegue apreciar um filme na sua plenitude. ainda estou á espera do dia em que sirvam jantares! Viva o dvd :-)
    cumprimentos
    António Matos

     
  • At 11:36 da manhã, Blogger Rita Maria said…

    A descrição é excelente, mas o melhor ainda é o Hopper!

     

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