estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2006-05-31

Febras e vinho no Dia Europeu dos Vizinhos

15hoo, Castelo de São Jorge

"Lisboa tem de fomentar os laços de vizinhança", diz compenetrado o vereador da Acção Social da Câmara Municipal de Lisboa, Sérgio Lipari Pinto. Enquanto funcionários preparam as mesas para o lanche da praxe frente à Junta de Freguesia do Castelo, o Rancho Folclórico da Cerci actua no interior das ameias do Castelo de São Jorge para uma plateia maioritariamente constituída por turistas. "Mesmo que não estivesse ninguém eles iam actuar com alegria. Adoram música e dança. O rancho funciona para eles como uma terapia", explica a professora Maria João Torres.

16h20, Largo do Chafariz de Dentro, Alfama

Ainda sob um sol inclemente, um grupo de idosos de Alfama sentados em cadeiras de plástico e protegidos por guarda-sóis da Câmara de Lisboa cantam o refrão de Amanhã longe demais, dos Rádio Macau, interpretada pelo grupo Panteras Negras. A banda é formada por monitores da instituição de solidariedade social Elo Social. A Alfama profunda, essa, observa à distância o que se vai passando na praça. "Hoje é que eles se lembraram dos vizinhos", comenta uma mulher desdentada. "É jornalista? Então, em vez de fotografarem esta fantochada, tirem mas é fotos aos ratos e ratazanas que saem daí dos tapumes", barafusta um morador, apontando para o estaleiro frente ao Museu do Fado.

17h00 Bairro de São Miguel, Alvalade

A festa é feita pelos elementos da Associação dos Artesãos de Lisboa e pelo grupo de cavaquinhos da Universidade da Terceira Idade de Lisboa da Paróquia de São Domingos de Benfica. "Os políticos já foram embora e os vizinhos, olha, estão em casa, atrás dessas janelas", diz um deles. Na relva da praça, à sombra, a ceramista Bali vai trabalhando pequenos e diferentes Santos Antónios de barro - "há o casamenteiro, o milagreiro" -, enquanto Miguel Morais demonstra como se trabalha o barro em roda de madeira. Agarrados aos cavaquinhos, sentados em cadeiras brancas à sombra das árvores, os idosos tocadores descansam depois de uma actuação pouco concorrida. "Ao ar livre aparece pouco pessoal. Temos tocado em auditórios com palco e sempre com casa cheia", explica Manuel Martins, o professor.

17h30 Rua João Nascimento Costa, Picheleira

No bairro de realojamento da Rua João Nascimento Costa, à Picheleira, vizinho da antiga Curraleira, os jovens do centro comunitário do Projecto Sementes tinham-se proposto pintar a fachada grafitada do lote 6 mas adiaram tudo. "Hoje há aqui um funeral e é dia de luto no bairro", explica António Guterres, o coordenador do projecto financiado pelo Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas (ACIME). "Pode passar aqui dia 9. Eles vão pintar este lote e incentivar os habitantes a fazerem o mesmo nos outros."

18h15 Bairro do Armador, Zona M de Chelas

No Armador, um nunca acabar de torres que albergam 1.300 fogos onde vivem indianos, africanos, ciganos, chineses, brancos e ucranianos, muitos populares aguardam que sejam servidas febras e pratos de comida indiana e africana. "Este é o bairro mais multicultural que eu conheço", grita para se fazer ouvir Ana Isabel Palma, do Gabinete da Gebalis do Armador, enquanto uma cantora e animadora loira canta "Yo quiero bailar toda la noche" acompanhada em palco por cerca de 15 crianças num equilíbrio precário em cima das tábuas. Mulheres indianas em sari espreitam discretamente das varandas o vaivém das técnicas sociais, que desmancham o que resta do lanche para servirem no polidesportivo local as refeições tradicionais. Por baixo, no terraço, cruzam-se negros com brancos e mulheres de etnia cigana."Como é um bairro de realojamento recente e com comunidades diversas, as relações de vizinhança nem sempre são fáceis. As pessoas fecham-se dentro das comunidades étnicas", explica Ana Isabel. Para organizar a festa, as técnicas sociais andaram de porta em porta a sensibilizar os moradores para colaborarem com produtos típicos das suas origens. "Estou surpreendida", comenta Sónia Fernandes, da associação local Geração Adolescer, outro projecto de inclusão social de jovens financiado pelo ACIME. "Nunca pensei que os moradores colaborassem assim."