estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2008-06-14

ALGARVE A PÉ IV

Chegara a Silves- a pré-histórica, a romana, a mourisca, ex-capital do Algarve e da cortiça, pela ponte velha- um pé elástico na perna direita, a mochila aos bamboleios, o cabelo em desalinho, irritado com a corrida insensata das viaturas contra os sinais de abrandamento da velocidade. Procurara abrigo numa tasca tristonha a tempo de assistir a um indivíduo de plástico na cabeça a saír de garrafa sumol cheia de vinho branco debaixo do braço. “Aguardente de medronho?”, perguntara-me a dona em azedume, “isso é muito caro. Você não vai querer pagar dois euros pela aguardente...e só posso encher até aqui”. Marcou um risco com os dedos. “E vá lá que eu quero fechar...”
Depois de cirandar pelas ameias cor de chocolate do castelo e de escutar Rui, o acordeonista cego, umas cisternas e alguns achados arqueológicos mais tarde, uma visita apressada às cavalariças onde funciona a GNR local, perguntara-me o que seria preciso para alguém reparar o telhado da Sé. “Está todo desdentado. A câmara não tem dinheiro, o Estado diz que também não. Quando caír uma telha em cima de um turista estrangeiro a ver se não aparece o dinheiro”, comentava uma residente.
Farto de ouvir falar em doenças, nos últimos três falecidos na cidade e na meia da Madeleine Mcain “encontrada” na Barragem do Arade, bati em retirada de um café e refugiei-me na barbearia do Chico “Cadela”, um pedaço da velha Silves incrustado na cidade dos turistas: “O meu primeiro mestre foi o Joaquim Baião, o segundo foi o Tomé Calhau. Sou do tempo em que Silves tinha 16 barbearias, quatro equipas de futebol e muita cortiça. Trabalhava as manhãs e as tardes”. Agora, ninguém para cortar o cabelo a cinco euros ou fazer a barba a três. “Vai tudo às cabeleireiras. Já me aborrece isto. É uma vida marafada”.
Deixo Chico, aliás Francisco António, 67 anos, nascido na freguesia rural de Falacho, entregue às inquietações de barbeiro solitário- “ estou sózinho, elas só querem dinheiro”- e faço-me aos 17 quilómetros de laranjais que separam Silves de São Bartolomeu de Messines, por entre bermas quase inexistentes ou cobertas de arbustos. Escala: Taberna da Norinha, em Norinha, onde o pastor Paulo Duarte, 31 anos, enrola tabaco numa mortalha e assume as despesas da conversa. “Já trabalhei na construção mas aqui é que eu gosto de estar, no campo. Não gosta do campo?” Compro uma mini e deixo-me ficar sentado, na esplanada da Taberna da Norinha, observando os carros atravessam apressadamente a EN24 em demanda de Silves e a civilização. “Em ficando aqui, eu mostro-lhe as minhas ovelhas”, promete Paulo, o pastor.