estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2004-05-23

Por razões psicológicas...

O taxista vai ficar à minha espera. É um ex-camionista dos TIR que abandonou a linha da Escandinávia em Agosto. "Por razões psicológicas, em Agosto. Não aguentava mais. Andei lá seis anos. Não aguentava mais. Chegava a fazer 36 horas de barco para a Finlândia e depois ía até lá acima, para lá do Círculo Polar Arctico. O médico aconselhou-me a deixar aquilo. Estive doente dois meses. Quer que pare aonde? Quer dizer, eu paro, você vai fazer a entrevista e eu espero aqui por si? Olha, uma petisqueira, é mesmo o que eu estava a precisar".
A Avenida 23 de Julho, que sobe da Cova da Piedade para o Laranjeiro e dali para a Cruz de Pau, é agora um estaleiro poeirento por causa das obras do Metro do Sul do Tejo. Há cilindros, máquinas, vedações, operários de coletes coloridos, náufragos suburbanos à espera de autocarros no meio do trânsito, do pó, da confusão. Os comerciantes querem-me ali porque o negócio está a sofrer com as obras. Agarram-me o braço, levam-me de loja a loja, fazem contas...um sofreu 70 por cento de prejuízo, outro 80 por cento, cargas e descargas ali é mentira. Dizem "venha cá", "sente-se aqui", "veja lá isto", "olhe só como isto ficou..." Os rostos desfilam à minha frente. "E este traço contínuo, este traço contínuo..." E depois, o trânsito, caótico. Tirem-me daqui, digo para comigo. "Mas há fotos do último atropelamento", diz alguém. Sou conduzido até ao escritório de uma loja de pneus. Ou é de móveis? Onde estou eu? "E esta era a miúda. Veja, veja como ela ficou..." Uma criança, não mais que 15, 16 anos. Vejo uma mochila no chão, vejo-lhe o blusão de colegial, as pastas no asfalto, um fio de sangue correndo da testa e descendo até ao pescoço. "A mãe vive aqui à frente, quer entrevistar a mãe?" Não, não quero entrevistar a mãe. " E o pai? Deixe-me ver se tenho o telemóvel do pai da miúda. Se não tiver aqui, ligo-lhe para o seu telemóvel e dou-lhe o telemóvel do pai da miúda..." Eu não tenho telemóvel. "Ah, está bem. Rosa? Rosa!!! Rosa sabes quando é que a miúda morreu atropelada aqui à frente? Foi uma sexta-feira? Foi uma sexta, há quinze dias. Chamava-se Elsa? Elsa? Bom, o pai dá-lhe as informações todas. Veja só, 16 anos..." A foto continua ali à frente. A mesa circular tem um jarro de flores e canetas e dossiers da loja mas é como se não existisse mais nada. A foto bóia à superfície de uma bacia cheia de água, lá dentro está a Elsa ou Paula, a Maria...ía a passar por trás do autocarro, era meio-dia, atravessou onde não devia mas também não puseram lá uma passadeira. Uma criança, cabelo castanho escuro, agachada no asfalto como que a dormir. Apetece afagar-lhe o cabelo e limpar aquele fio de sangue. Apetece fugir. Fazer como o taxista fez em relação à linha TIR da Finlândia. Por razões psicológicas...