estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2004-05-15

Ardam tudo!

Na vida lidamos com todo o tipo de pessoas. Na nossa rua também. Vivo há praticamente 12 anos na mesma rua. Os vizinhos e a sua tipologia varia conforme as estações do ano, uma vez que se trata de Santo António da Caparica. De Inverno e na Primavera, somos poucos vizinhos. Há os que nunca cumprimentam, os que dizem “olá Nuno, então o Benfica?”, há os brasileiros-mineiros que circulam entre os seus apartamentos e a cabine telefónica e que formam uma bolha social à parte porque a Caparica também gosta de os ver assim, à parte. Depois, vem o Verão e mais vizinhos. As mudanças começam agora, é certo, em fins de Maio, início de Junho mas atingirão o seu clímax em Agosto. É nesse mês que descubro que todos aqueles lugares horrendos que andei a tentar esquecer que existem durante o ano, afinal, existem mesmo e se transportam de armas e bagagens para a Caparica: sei lá, Paio Pires, Corroios, Torre da Marinha...No passado mês de Agosto- o primeiro de há vários anos que passei a trabalhar-a minha capacidade de tolerância e fraternidade para com os outros foi duramente posta à prova, entre os tradicionais gritos de “António, olha a menina!”, famílias inteiras desfilando à porta do prédio de chapéus de Sol debaixo do ombro em direcção a uma praia cuja areia o mar varreu e buzinadelas e travagens incessantes na rotunda mesmo por baixo da minha varanda. A tudo, juro pela minha Mãe, respondi com um estranho e nada habitual fair-play. Até que num daqueles dias de 38 graus e o país em chamas em directo na televisão, vi uma família inteira estacionar uma grande carrinha branca no meio da seca e suja Mata de Santo António, abrir espaço entre a caruma e criar ali mesmo uma fogueira entre os pinheiros secos, as pinhas secas, os cacos de vidro, os sacos de plástico vazios e a metros da vedação do parque de campismo da Orbitur. Disse para comigo: “E porque não? Ardam tudo! Mação não está a arder, Oleiros também? Então...vamos a isso, vamos lá pegar fogo ao país! Pode ser que lá em cima, dos satélites, se veja uma luzinha e um fumo a dispersar pela Península Ibérica e alguém se lembre que este asilo à beira mar plantado existe...”