A Arrábida a arder
Vale das Rascas, Serra da Arrábida, 19h10 de domingo, dia 25 de Julho. Uma grossa e enorme nuvem de fumo ergue-se ao virar de uma esquina, um fumo castanho e negro que tapa um sol raiado de sangue. Vira-se outra curva, passa-se a placa onde se lê "Vale das Rascas" e é o caos.
Uma parede de labaredas desce a encosta, devora dezenas de pinheiros mansos num caminhar assustador e avança em direcção à povoação.
Naquele preciso momento, não há bombeiros em Vale das Rascas - uma aldeia à beira da estrada que liga a cimenteira do Outão à estrada Azeitão-Setúbal, perto de Aldeia Grande. Há sim populares afogueados regando tudo o que podem com mangueiras pequenas e ridículas. Um rapaz sai do café junto à estrada, de mangueirita na mão, atravessa a estrada e enfrenta a parede de chamas, do outro lado, um calor intenso erguendo-se sobre a povoação indefesa.
O fogo sobe, sobe, corre e faz "fshhhhhhhh...", um barulho ensurdecedor que faz apressar os que ainda resistem a ficar. Por todo o lado, em Vale das Rascas, vê-se correr, ouve-se "vamos embora" ou "oh filha, deixa lá o carro, anda, anda..."
Um casal desaparece estrada baixo com o carro atulhado com televisor e pequena mobília. Uma mulher grita, o rosto pleno de angústia. O que tem ali à frente dos olhos não é bonito de se ver: O fogo engole tudo impelido pelo vento. Dez minutos mais tarde, depois de um carro dos bombeiros do Montijo, chegam ao local dois carros dos bombeiros da Trafaria. A situação, essa, está muito longe de estar controlada. As labaredas avançam por ali fora, num repente estão na esquina, no horizonte.
O Rui, o fotógrafo, está absorvido pela labaredas que lhe chegam ao visor da máquina fotográfica, pelo enquadramento de um homem de mangueirinha na mão, as chamas em cima, um homem de motorizada observando tudo, pronto a fugir.
Mais atrás, vejo as chamas a galgar caminho em direcção à nossa direita, à curva de onde vieramos. O carro está ali, estacionado, junto à estrada, do lado de cá. Mais um, dois minutos e o fogo chegará finalmente à viatura. Precisamos saír dali para não ficarmos em Vale das Rascas, apeados, num círculo de fogo, com populares desesperados e bombeiros.
"Rui, Rui", grito, "vamos embora, caralho, esta merda vai arder!" Caem cinzas, faúlhas, arde de um e do outro lado da estrada ou sou eu que já sonho, na minha pouca experiência de incêndios, com chamas em todo o lado? O Rui, até aí em transe fotográfico, percebe que é altura de fugir dali. Corremos, alcançamos o carro, viramos a esquina, adeus perigo, adeus Vale das Rascas.
Uma hora mais tarde, quando tentarmos regressar a Vale das Rascas, já não é possível passar, já o fogo avançou em direcção à fábrica de cimento da Secil, a povoação cercada, as chamas ali por perto. "Está a uns 500 metros, não podemos deixar passar ninguém", diz um bombeiro.
19h45, Praia de Galapos, já evacuada pelos bombeiros. "Isto está tudo fodido, vai arder tudo e vocês é melhor basarem daqui que isto quando ele chegar a gente não sabe se o aguenta aqui", diz entre a descontracção e o stress um bombeiro de Póvoa de Santa Iria, ali a dois passos do verde azul do mar, meia dúzia de pessoas assistindo à evolução das chamas a partir do areal.
"Vocês são de onde, do "Diário de Notícias"? Ah, do Público..." O bombeiro tira a máscara branca para que o fotografem em acção. "No ano passado apareci no jornal, vamos a ver se este ano apareço também". Que praia é aquela? "Sei lá, a gente não somos de cá, ainda ontem estavamos em Castelo Branco e antes estivemos em Torres Novas, o pessoal não pára. Vamos para onde nos pedirem", diz outro.
O pequeno grupo de meia dúzia de bombeiros da Póvoa de Santa Iria discute se deve esperar na estrada pelo fogo. "Convinha fazer um reconhecimento ali em cima", diz um bombeiro mais velho. "Ele pode chegar até aqui, não pode é passar da estrada para a praia, perceberam?"
Um bombeiro mais novo propõe acção: "A gente não pode estar aqui à espera do fogo, temos que ir por aí acima e dar porrada nele. Se ficarmos aqui parados e o gajo vier com força, a gente não o aguenta".
O fumo começa a aumentar sobre as nossas cabeças. Os bombeiros, homens e mulheres, puxam a mangueira e levam-na encosta acima, desaparecendo entre a mata. Na praia, lá em baixo, algumas pessoas assistem ansiosas ao que se passa mais em cima. Um homem de telemóvel fala frenéticamente junto a um dos bares e restaurantes de praia. Os toldos de praia estão vazios. Há banhistas em motos de água à espera do apocalispe, que as labaredas desçam a serra e lhes dêem espectáculo.
20h00. "Isto é pior que uma guerra, não há hipótese, vai arder esta merda toda". As chamas vêm aí. Ouvem-se gritos, grita-se "água". De repente, as labaredas irrompem junto à estrada que cerca a praia, endoidecidas, prontas a lamber tudo. O homem do telemóvel subiu a encosta e berra com os bombeiros. "Como é possível deixarem o fogo chegar aqui? Como? É uma vergonha!" Um bombeiro vira-se, praticamente sem tempo para mais nada do que segurar-lhe no braço e dizer: "Calma, tenha calma!" As mangueiras dos homens e mulheres da Póvoa de Santa Iria parecem insignificantes. As chamas erguem-se nos ares e assustam.
"M'bora, vamos cavar daqui!" A estrada entre Galapos e a Praia da Figueirinha está coberta de pedras que se desprenderam, o terreno fumega. Há pequenos focos de incêndio onde dantes haviam pinheiros mansos. Campistas atarantados vão deixando o parque de campismo do Outão. O fumo vai voando em direcção de Setúbal, em grossos rolos sobre o mar. Famílias assistem ao desastre ecológico, de coração apertado, a partir de um miradouro. "Mãe", pergunta uma criança, "quem é que pôs o fogo?"
Uma parede de labaredas desce a encosta, devora dezenas de pinheiros mansos num caminhar assustador e avança em direcção à povoação.
Naquele preciso momento, não há bombeiros em Vale das Rascas - uma aldeia à beira da estrada que liga a cimenteira do Outão à estrada Azeitão-Setúbal, perto de Aldeia Grande. Há sim populares afogueados regando tudo o que podem com mangueiras pequenas e ridículas. Um rapaz sai do café junto à estrada, de mangueirita na mão, atravessa a estrada e enfrenta a parede de chamas, do outro lado, um calor intenso erguendo-se sobre a povoação indefesa.
O fogo sobe, sobe, corre e faz "fshhhhhhhh...", um barulho ensurdecedor que faz apressar os que ainda resistem a ficar. Por todo o lado, em Vale das Rascas, vê-se correr, ouve-se "vamos embora" ou "oh filha, deixa lá o carro, anda, anda..."
Um casal desaparece estrada baixo com o carro atulhado com televisor e pequena mobília. Uma mulher grita, o rosto pleno de angústia. O que tem ali à frente dos olhos não é bonito de se ver: O fogo engole tudo impelido pelo vento. Dez minutos mais tarde, depois de um carro dos bombeiros do Montijo, chegam ao local dois carros dos bombeiros da Trafaria. A situação, essa, está muito longe de estar controlada. As labaredas avançam por ali fora, num repente estão na esquina, no horizonte.
O Rui, o fotógrafo, está absorvido pela labaredas que lhe chegam ao visor da máquina fotográfica, pelo enquadramento de um homem de mangueirinha na mão, as chamas em cima, um homem de motorizada observando tudo, pronto a fugir.
Mais atrás, vejo as chamas a galgar caminho em direcção à nossa direita, à curva de onde vieramos. O carro está ali, estacionado, junto à estrada, do lado de cá. Mais um, dois minutos e o fogo chegará finalmente à viatura. Precisamos saír dali para não ficarmos em Vale das Rascas, apeados, num círculo de fogo, com populares desesperados e bombeiros.
"Rui, Rui", grito, "vamos embora, caralho, esta merda vai arder!" Caem cinzas, faúlhas, arde de um e do outro lado da estrada ou sou eu que já sonho, na minha pouca experiência de incêndios, com chamas em todo o lado? O Rui, até aí em transe fotográfico, percebe que é altura de fugir dali. Corremos, alcançamos o carro, viramos a esquina, adeus perigo, adeus Vale das Rascas.
Uma hora mais tarde, quando tentarmos regressar a Vale das Rascas, já não é possível passar, já o fogo avançou em direcção à fábrica de cimento da Secil, a povoação cercada, as chamas ali por perto. "Está a uns 500 metros, não podemos deixar passar ninguém", diz um bombeiro.
19h45, Praia de Galapos, já evacuada pelos bombeiros. "Isto está tudo fodido, vai arder tudo e vocês é melhor basarem daqui que isto quando ele chegar a gente não sabe se o aguenta aqui", diz entre a descontracção e o stress um bombeiro de Póvoa de Santa Iria, ali a dois passos do verde azul do mar, meia dúzia de pessoas assistindo à evolução das chamas a partir do areal.
"Vocês são de onde, do "Diário de Notícias"? Ah, do Público..." O bombeiro tira a máscara branca para que o fotografem em acção. "No ano passado apareci no jornal, vamos a ver se este ano apareço também". Que praia é aquela? "Sei lá, a gente não somos de cá, ainda ontem estavamos em Castelo Branco e antes estivemos em Torres Novas, o pessoal não pára. Vamos para onde nos pedirem", diz outro.
O pequeno grupo de meia dúzia de bombeiros da Póvoa de Santa Iria discute se deve esperar na estrada pelo fogo. "Convinha fazer um reconhecimento ali em cima", diz um bombeiro mais velho. "Ele pode chegar até aqui, não pode é passar da estrada para a praia, perceberam?"
Um bombeiro mais novo propõe acção: "A gente não pode estar aqui à espera do fogo, temos que ir por aí acima e dar porrada nele. Se ficarmos aqui parados e o gajo vier com força, a gente não o aguenta".
O fumo começa a aumentar sobre as nossas cabeças. Os bombeiros, homens e mulheres, puxam a mangueira e levam-na encosta acima, desaparecendo entre a mata. Na praia, lá em baixo, algumas pessoas assistem ansiosas ao que se passa mais em cima. Um homem de telemóvel fala frenéticamente junto a um dos bares e restaurantes de praia. Os toldos de praia estão vazios. Há banhistas em motos de água à espera do apocalispe, que as labaredas desçam a serra e lhes dêem espectáculo.
20h00. "Isto é pior que uma guerra, não há hipótese, vai arder esta merda toda". As chamas vêm aí. Ouvem-se gritos, grita-se "água". De repente, as labaredas irrompem junto à estrada que cerca a praia, endoidecidas, prontas a lamber tudo. O homem do telemóvel subiu a encosta e berra com os bombeiros. "Como é possível deixarem o fogo chegar aqui? Como? É uma vergonha!" Um bombeiro vira-se, praticamente sem tempo para mais nada do que segurar-lhe no braço e dizer: "Calma, tenha calma!" As mangueiras dos homens e mulheres da Póvoa de Santa Iria parecem insignificantes. As chamas erguem-se nos ares e assustam.
"M'bora, vamos cavar daqui!" A estrada entre Galapos e a Praia da Figueirinha está coberta de pedras que se desprenderam, o terreno fumega. Há pequenos focos de incêndio onde dantes haviam pinheiros mansos. Campistas atarantados vão deixando o parque de campismo do Outão. O fumo vai voando em direcção de Setúbal, em grossos rolos sobre o mar. Famílias assistem ao desastre ecológico, de coração apertado, a partir de um miradouro. "Mãe", pergunta uma criança, "quem é que pôs o fogo?"
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