Delegacias perdidas
“Rapaz, o cara veio para me matar. Eu não queria morrer”, explica Raimundo, as mãos agarradas às grades da cela, um tugúrio de três por três metros onde mal entra a luz e o calor obriga todos os detidos a usarem apenas uns calções.
Juntamente com Raimundo, na pequena delegacia de Grajaú, uma cidade perdida no centro-sul do Estado do Maranhão, Brasil, há um pouco de tudo: assaltantes de “ónibus” (autocarros de passageiros), traficantes de “maconha”, um assaltante a Banco e vários homicidas.
Chega-se a Grajaú de carro desde Imperatriz, a segunda cidade do Estado, em cerca de 200 quilometros de terra batida rasgando o mato, um trilho que lembra as imagens repetidas da Trans-Amazónica. É uma cidade cercada por reservas indígenas, um território onde impera o tráfico de “maconha”, os assaltos a autocarros de passageiros e viaturas particulares, onde os índios vendem um quilo de “maconha” a 100 escudos ou a trocam por uma garrafa de cachaça.
“Tudo isso aqui à volta”, explica Cleosnaldo Brito, o delegado local há oito meses, “é reservas controladas pela FUNAI (Fundação Nacional de Apoio ao Indio), onde a gente não pode entrar. Todo o cara que tenha problema com a polícia, seja índio ou branco, some lá para dentro e a gente não pode pegar, só a Polícia Federal”.
A minúscula delegacia reflete o contexto problemático que a envolve. É um mundo acanhado de luz filtrada, paredes sujas riscadas por graffitis, muito calor, onde os homens para se sentar têm de juntar garrafas de plástico de Coca-Cola, enchê-las e atá-las, onde das latrinas dentro das celas sai um fedor que exala e enche o espaço como uma praga, onde só alguns conseguem dormir nas redes, os outros dormem no cimento. “Só cabe três redes aqui, os outros dormem ali”. Um preso deita-se no chão e exemplifica com uma manta: “Desse jeito aí”.
Quem vê pela primeira vez a fachada anónima de mais uma delegacia miserável— onde há fita adesiva e cartão na janela do gabinete do delegado e vidros partidos nas janelas onde as portadas estão sempre fechadas apesar das grades— não imagina que ali dentro vivem 34 homens com direito a saír da cela duas vezes por semana, para dois banhos de sol de uma hora cada.
“Rapaz, isso aqui é quente demais, banheiro tem mas não sai água”, diz-nos um dos detidos, os outros todos fazendo que sim com a cabeça. Abrem a torneira do chuveiro para deixar caír um fio muito fino. “E não tem medicamentos”, queixa-se outro, “estava doente do ouvido mas ninguém me levou ao hospital. E a gente pega coceira, pega alergia por causa da humidade”. Trazem um detido índio que coça a pele à nossa frente.
Raimundo Neto de Oliveira, 32 anos, foi detido há um mês acusado de dois homicídios. Arregala muitos os olhos e agarra as grades com ambas as mãos, uma mulher nua tatuada no peito. “Rapaz, matei em minha defesa, ele me queria matar. O cara pediu para mim cuidar do galinheiro do patrão dele, aí o cara chegou bêbedo, não encontrou a chave do galinheiro, foi a minha casa dar conta da chave, com uma 28 engatilhada na mão. Eu disse que não sabia, ele disse que se não desse conta me matava”.
No dia seguinte, Raimundo foi falar com o patrão do outro e avisou-o de que se ele o voltasse a importunar, quem matava era ele. O patrão falou com o outro mas a conversa não parece ter tido efeito. “O cara tomou umas cachaças e apareceu lá de novo, dessa vez com uma “garruncha” (caçadeira). Agarrou minha esposa, ‘tava querendo derrubar ela, aí ela gritou, eu corri pela fazenda, quando cheguei a casa, o cara soltou a mulher e correu até à espingarda que estava no muro. Aí eu corri para pegar na minha, o cara atirou, falhou, tentou armar ela de novo, aí eu disparei a minha 28. O cara morreu”.
O que poucos sabiam era que Raimundo já tinha cometido outro homicídio em 1993 e resolvera a situação mudando de cidade. “Era um cara de fora...ninguém reclamou, só sumi da cidade quando todo o mundo ficou comentando...era um cara que vivia bebendo cachaça”.
Como foi? “O cara vivia me provocando sempre que bebia, aí eu planejei pegá-lo um dia. Uma noite, o cara estava me provocando de novo, eu fui à fazenda pegar um pilão, de pilar mandioca, viu? Aí o cara perguntou: “Para que é isso aí?” E eu disse : “Nada não, tem muito cachorro valente aí na rua, é para me defender de cachorro”. Aí, ele disse que não iria pagar mais bebida, me chamou de moleque. Eu fui em cima dele, o cara pegou minhas pernas e me derrubou. Eu me livrei, peguei o pilão e matei”.
Ao lado de Raimundo, com cara de menino e sorriso falsamente imberbe, está António Carlos Barros, 29 anos. Vive naquela cela com pouca luz e abafada há um ano e 8 meses. É conhecido em toda a delegacia pelos trabalhos de artesanato que produz, casinhas de um, dois, três andares, em madeira. “Matei mas foi em legítima defesa”, diz.
António Carlos, deixou a esposa numa fazenda perto de Grajaú para ir trabalhar numa cerâmica de São João de Araguaia, no Estado do Pará. “Um dia eu vim embora, cheguei a casa e soube que o cara que mora junto comigo, tinha batido na minha esposa. Eu fui simplesmente bater um papo com ele, aí o cara já veio com agressão, pegou numa faca e veio para mim. Aí eu corri, rodeei a casa, entrei, peguei a espingarda e perdi a cabeça, atirei contra ele, matei o cara”.
Sem passado criminal, António fugiu para uma cidade vizinha, Porto Franco, onde conseguiu trabalhar numa churrascaria durante dois meses. “A dona da churrascaria sabia do caso e nunca me entregou, mas aí um pessoal de Grajaú me viu lá e telefonou para a delegacia. Eu só queria aguardar julgamento em liberdade. Ninguém acostuma com a prisão. Eu sou acostumado a trabalhar, me dou mal aqui”.
Na cela de Raimundo e de António Carlos, jogando dominó no chão, está um homem grande, de barbicha, que finge não prestar atenção ao jornalista. Chama-se José Carlos dos Santos Vale, tem 35 anos e foi condenado a 11 anos por assaltar a dependência do Banco do Brasil da cidade. Pertence a uma família considerada na cidade e era funcionário público. “Não tem prova nenhuma contra mim”, fala em tom de quase ameaça, “cê não é sincero na sua profissão? Que é que é isso...não fui eu não...o juiz mandou-me prender, eu vim caminhando pelos meus pés. Nunca roubei nada a ninguém e se Deus quiser, com muita fé em Deus, vou provar que não fui eu. Oh gente, não sou bandido não, estou preso aqui de graça”.
Umas celas mais à frente, um PM olha de braços na anca para os olhos tímidos e encabulados de Maurício Pereira da Silva, 25 anos, preso desde 19 de Julho por “latrocínio”— assalto a “ónibus” (autocarro) seguido de homicídio. “Esse aí pode pegar 19 a 30 anos”. Maurício olha-nos como se a implorar: “tire-me daqui”. É um momento de embaraço. As palavras de Maurício saem difíceis, em surdina, com esforço. “Não fui eu quem matou, não, me estão acusando porque me pegaram com a arma carregada”. O PM encolhe os ombros grandes. Parece querer dizer: “todo mundo diz o mesmo”.
Maurício trabalhava como madeireiro quando o cunhado e outro se juntaram a ele para formar um gang de assalto a autocarros. “A gente mandava encostar o ónibus, entravamos e pegavamos o dinheiro do pessoal”. No quinto assalto, as coisas correndo demasiado bem, um funcionário dos Correios de Grajaú identificou-os. Alguém o matou com uma “garruncha” serrada. “Mas não fui eu, não, foi o Francisco, meu cunhado, quem matou. Ele está rodando directo por aí e dizem que fui eu, não fui eu, não”.
Enquanto na primeira cela, predominam os homicidas e na quarta e última, os traficantes de maconha, nas outras misturam-se assaltantes com pequenos ladrões ou simples consumidores de maconha, como afirma ser, de boné negro dos Raiders, António da Silva. “Me acusaram de pegar a maconha mas não é minha não. Eu sabia que a polícia vinha atrás de mim e vim aqui à delegacia explicar os factos”. O problema principal de António, um mulato que já está ali há 85 dias, é a palavra do vizinho. “É, o vizinho me está acusando de ter jogado um quilo e meio de maconha no quintal dele. Rapaz, é mentira dele. Nunca roubei na minha vida. Eu até morava junto da delegacia e prestava serviço à polícia”.
Deitado no cimento, está um detido que alvejou um moto-taxista. “Fui seduzido por outro...fugi com a mota para Tocantins”. Tanto ele como a mota foram encontradas no Estado vizinho de Tocantins. O companheiro do crime fugiu, ele foi apanhado. “Me seduziu para o crime, entende?”
Outro, algo desprezado pelos colegas de cela, está lá por pequeno roubo: “Me acusam de roubar um “veado” (gay), uma bicicleta e uma bolsa com duas camisas...e também tomei dinheiro de um menino lá na praia do rio...” Um PM olha-o nos olhos: “Esse aí é um desgraçado, nem roubar sabe...”
Na cela ao lado, o “Chinezinho”, aliás Iranaldo Alves Bezerra, de 18 anos, um rapaz de olhos bonitos de criança, não sofre de timidez. Já ali está pela quarta vez. O delegado já lhe deu uma chance, pô-lo a morar com ele mas o “Chinezinho” acabou por roubar a arma ao próprio delegado. O “Chinezinho” gosta de contar as façanhas e de ouvir as gargalhadas dos outros presos.
“Lá em Imperatriz, assaltava bicicleta e ónibus directo. Mandava todo o mundo não se mexer e aí gritava: passa o troco e o relógio!” “Chinezinho” ía sempre armado de pistola 38 ou 22 e de um facão que afirma agora ser mais para amedrontar. “O pessoal deixava o troco fácil”.
De Imperatriz, a segunda maior cidade do Maranhão, quase na fronteira com o Estado do Pará, “Chinezinho” regressou à cidade de Grajaú. “Rapaz, aqui me virei para supermercado. Muitas vezes era eu que arrombava com pé de bode (pé de cabra). Rapaz, às vezes até que era dificil, viu? Era três, quatro, cinco cadeados...outras vezes o portão estava fechado por dentro, tinhamos de rebentar a base”. Que roubava? “Roupa, maço de cigarro, caixa de pilha...rapaz, foi um prejuízo bom”, diz de sorriso nos lábios.
Esta já é a quarta vez que “Chinezinho” está detido na delegacia de Grajaú. “Rapaz, eu estava lá em casa da minha irmã, aí ela comunicou que estava vindo a polícia. Me escondi debaixo da cama. Aí o pessoal entrou dentro de casa e ouvi um policial dizendo: “Olha só quem está debaixo da cama”. Me algemaram e me trouxeram para aqui”.
A cela de onde chegam as gargalhadas é a dos “traficantes de maconha”, todos presos numa operação da Polícia Federal que utilizou 50 homens e helicoptero para combater o tráfico de maconha junto da vizinha cidade de Arame. Um polícia militar olha para eles e diz que são responsáveis por 2 mil e 600 quilos apreendidos. “Que é que é isso”, reage Francisco Neutro Pacheco, que se assume como agricultor, “essa turma aqui só é responsável por 460 quilos!”
E então Francisco, porque plantou a maconha? “Rapaz, eu plantei porque me senti seduzido, a pessoa me seduziu, disse que produzisse fumo que ele comprava”. Quem era ele? “Rapaz, eu vi ele uma vez só, nunca acertámos um preço. Aí, veio a Polícia Federal e pegou a gente. A gente somos lavrador, entende, sempre plantei arroz, milho, mandioca, banana, abacaxi. Não tinha arma, nunca roubei, nunca estuprei...”
Num espaço tão claustrofóbico, com apenas dois polícias de guarda durante a noite, a fuga é uma tentação. Só em 8 meses houve três tentativas de fuga. “Serraram as grades duas vezes”, conta o delegado Cleosnaldo Brito, “outra vez arrombaram a parede, o carcereiro é que viu que a parede já não tinha reboco”. O pior aconteceu a 14 de Outubro do ano passado. Quatros detidos conseguiram pegar o revolver de um polícia militar, obrigaram o carcereiro a lhes dar as chaves e fugiram.
Outras vezes, rebentam brigas entre os presos da mesma cela. “Quando chega um novo, eles sempre amassam ele até as coisas ficarem calmas de novo”, conta um polícia. “Ainda ontem”, recorda o delegado, “houve aí uma briga feia entre dois detidos”. Chegamos junto às grades e perguntamos se há brigas lá dentro da cela. “Não senhor, aqui todo o pessoal se respeita, o pessoal é unido”, responde com seriedade um dos presos.
Se os 34 detidos se acumulam em condições deploráveis, a vida insegura dos dois polícias militares de serviço parece não ser muito melhor. “A gente trabalha 24 horas e descansa as seguintes 24 mas na folga sempre tem serviço extra, blitz, não dá para descansar”, explica Jaime Amorim Garcia, 13 anos de PM, que ganha cerca de 60 contos e tem uma televisão a preto e branco em cima do balcão da delegacia como única distração. “Tem muito companheiro nosso na junta médica (de baixa). A gente não dorme direito, sofremos ameaça de marginais, estamos constantemente prendendo e recebendo ameaça”.
A 15 de Agosto de há dois anos, Jaime viveu o seu pior momento como PM. “Tinha traficante de “maconha” dentro de uma reserva indígena, aí nós fizemos uma barreira na estrada que dá acesso a ela. Quando íamos retornar, vimos os índios, todos de revolver e espingarda. Eramos quatro PM, eles atiraram mais de 30 bala no volkswagen. A gente não pôde responder porque estavamos armados de fusis e metralhadoras. Por um palmo, não atingiram o motorista”.
Para aliviar o stress do serviço nocturno na delegacia, quando tem de ficar de plantão, Jaime escreve poemas. “Trago sempre o caderno e escrevo aqui nesse balcão, sobre tudo, sobre a vida policial, o quotidiano, amor, a natureza”. Jaime já lançou um livro e tem participação em três antologias.
A figura mais emblemática da delegacia de Grajaú,no entanto, é o “Pêce”, um homem pequenino, quase anão, de pele tisnada, carcereiro por vocação e voluntariado há nove anos, que sofre de problemas do foro mental mas é incorruptível mesmo apesar de não ganhar um centavo. “Nunca recebeu nada mas o cara só entrega a chave a mim, mais ninguém”, explica o delegado Cleosnaldo Brito. “E se um dia eu disser que ele não vai trabalhar mais aqui, o cara me joga pedras e enlouquece. A vida dele é aqui”.
Juntamente com Raimundo, na pequena delegacia de Grajaú, uma cidade perdida no centro-sul do Estado do Maranhão, Brasil, há um pouco de tudo: assaltantes de “ónibus” (autocarros de passageiros), traficantes de “maconha”, um assaltante a Banco e vários homicidas.
Chega-se a Grajaú de carro desde Imperatriz, a segunda cidade do Estado, em cerca de 200 quilometros de terra batida rasgando o mato, um trilho que lembra as imagens repetidas da Trans-Amazónica. É uma cidade cercada por reservas indígenas, um território onde impera o tráfico de “maconha”, os assaltos a autocarros de passageiros e viaturas particulares, onde os índios vendem um quilo de “maconha” a 100 escudos ou a trocam por uma garrafa de cachaça.
“Tudo isso aqui à volta”, explica Cleosnaldo Brito, o delegado local há oito meses, “é reservas controladas pela FUNAI (Fundação Nacional de Apoio ao Indio), onde a gente não pode entrar. Todo o cara que tenha problema com a polícia, seja índio ou branco, some lá para dentro e a gente não pode pegar, só a Polícia Federal”.
A minúscula delegacia reflete o contexto problemático que a envolve. É um mundo acanhado de luz filtrada, paredes sujas riscadas por graffitis, muito calor, onde os homens para se sentar têm de juntar garrafas de plástico de Coca-Cola, enchê-las e atá-las, onde das latrinas dentro das celas sai um fedor que exala e enche o espaço como uma praga, onde só alguns conseguem dormir nas redes, os outros dormem no cimento. “Só cabe três redes aqui, os outros dormem ali”. Um preso deita-se no chão e exemplifica com uma manta: “Desse jeito aí”.
Quem vê pela primeira vez a fachada anónima de mais uma delegacia miserável— onde há fita adesiva e cartão na janela do gabinete do delegado e vidros partidos nas janelas onde as portadas estão sempre fechadas apesar das grades— não imagina que ali dentro vivem 34 homens com direito a saír da cela duas vezes por semana, para dois banhos de sol de uma hora cada.
“Rapaz, isso aqui é quente demais, banheiro tem mas não sai água”, diz-nos um dos detidos, os outros todos fazendo que sim com a cabeça. Abrem a torneira do chuveiro para deixar caír um fio muito fino. “E não tem medicamentos”, queixa-se outro, “estava doente do ouvido mas ninguém me levou ao hospital. E a gente pega coceira, pega alergia por causa da humidade”. Trazem um detido índio que coça a pele à nossa frente.
Raimundo Neto de Oliveira, 32 anos, foi detido há um mês acusado de dois homicídios. Arregala muitos os olhos e agarra as grades com ambas as mãos, uma mulher nua tatuada no peito. “Rapaz, matei em minha defesa, ele me queria matar. O cara pediu para mim cuidar do galinheiro do patrão dele, aí o cara chegou bêbedo, não encontrou a chave do galinheiro, foi a minha casa dar conta da chave, com uma 28 engatilhada na mão. Eu disse que não sabia, ele disse que se não desse conta me matava”.
No dia seguinte, Raimundo foi falar com o patrão do outro e avisou-o de que se ele o voltasse a importunar, quem matava era ele. O patrão falou com o outro mas a conversa não parece ter tido efeito. “O cara tomou umas cachaças e apareceu lá de novo, dessa vez com uma “garruncha” (caçadeira). Agarrou minha esposa, ‘tava querendo derrubar ela, aí ela gritou, eu corri pela fazenda, quando cheguei a casa, o cara soltou a mulher e correu até à espingarda que estava no muro. Aí eu corri para pegar na minha, o cara atirou, falhou, tentou armar ela de novo, aí eu disparei a minha 28. O cara morreu”.
O que poucos sabiam era que Raimundo já tinha cometido outro homicídio em 1993 e resolvera a situação mudando de cidade. “Era um cara de fora...ninguém reclamou, só sumi da cidade quando todo o mundo ficou comentando...era um cara que vivia bebendo cachaça”.
Como foi? “O cara vivia me provocando sempre que bebia, aí eu planejei pegá-lo um dia. Uma noite, o cara estava me provocando de novo, eu fui à fazenda pegar um pilão, de pilar mandioca, viu? Aí o cara perguntou: “Para que é isso aí?” E eu disse : “Nada não, tem muito cachorro valente aí na rua, é para me defender de cachorro”. Aí, ele disse que não iria pagar mais bebida, me chamou de moleque. Eu fui em cima dele, o cara pegou minhas pernas e me derrubou. Eu me livrei, peguei o pilão e matei”.
Ao lado de Raimundo, com cara de menino e sorriso falsamente imberbe, está António Carlos Barros, 29 anos. Vive naquela cela com pouca luz e abafada há um ano e 8 meses. É conhecido em toda a delegacia pelos trabalhos de artesanato que produz, casinhas de um, dois, três andares, em madeira. “Matei mas foi em legítima defesa”, diz.
António Carlos, deixou a esposa numa fazenda perto de Grajaú para ir trabalhar numa cerâmica de São João de Araguaia, no Estado do Pará. “Um dia eu vim embora, cheguei a casa e soube que o cara que mora junto comigo, tinha batido na minha esposa. Eu fui simplesmente bater um papo com ele, aí o cara já veio com agressão, pegou numa faca e veio para mim. Aí eu corri, rodeei a casa, entrei, peguei a espingarda e perdi a cabeça, atirei contra ele, matei o cara”.
Sem passado criminal, António fugiu para uma cidade vizinha, Porto Franco, onde conseguiu trabalhar numa churrascaria durante dois meses. “A dona da churrascaria sabia do caso e nunca me entregou, mas aí um pessoal de Grajaú me viu lá e telefonou para a delegacia. Eu só queria aguardar julgamento em liberdade. Ninguém acostuma com a prisão. Eu sou acostumado a trabalhar, me dou mal aqui”.
Na cela de Raimundo e de António Carlos, jogando dominó no chão, está um homem grande, de barbicha, que finge não prestar atenção ao jornalista. Chama-se José Carlos dos Santos Vale, tem 35 anos e foi condenado a 11 anos por assaltar a dependência do Banco do Brasil da cidade. Pertence a uma família considerada na cidade e era funcionário público. “Não tem prova nenhuma contra mim”, fala em tom de quase ameaça, “cê não é sincero na sua profissão? Que é que é isso...não fui eu não...o juiz mandou-me prender, eu vim caminhando pelos meus pés. Nunca roubei nada a ninguém e se Deus quiser, com muita fé em Deus, vou provar que não fui eu. Oh gente, não sou bandido não, estou preso aqui de graça”.
Umas celas mais à frente, um PM olha de braços na anca para os olhos tímidos e encabulados de Maurício Pereira da Silva, 25 anos, preso desde 19 de Julho por “latrocínio”— assalto a “ónibus” (autocarro) seguido de homicídio. “Esse aí pode pegar 19 a 30 anos”. Maurício olha-nos como se a implorar: “tire-me daqui”. É um momento de embaraço. As palavras de Maurício saem difíceis, em surdina, com esforço. “Não fui eu quem matou, não, me estão acusando porque me pegaram com a arma carregada”. O PM encolhe os ombros grandes. Parece querer dizer: “todo mundo diz o mesmo”.
Maurício trabalhava como madeireiro quando o cunhado e outro se juntaram a ele para formar um gang de assalto a autocarros. “A gente mandava encostar o ónibus, entravamos e pegavamos o dinheiro do pessoal”. No quinto assalto, as coisas correndo demasiado bem, um funcionário dos Correios de Grajaú identificou-os. Alguém o matou com uma “garruncha” serrada. “Mas não fui eu, não, foi o Francisco, meu cunhado, quem matou. Ele está rodando directo por aí e dizem que fui eu, não fui eu, não”.
Enquanto na primeira cela, predominam os homicidas e na quarta e última, os traficantes de maconha, nas outras misturam-se assaltantes com pequenos ladrões ou simples consumidores de maconha, como afirma ser, de boné negro dos Raiders, António da Silva. “Me acusaram de pegar a maconha mas não é minha não. Eu sabia que a polícia vinha atrás de mim e vim aqui à delegacia explicar os factos”. O problema principal de António, um mulato que já está ali há 85 dias, é a palavra do vizinho. “É, o vizinho me está acusando de ter jogado um quilo e meio de maconha no quintal dele. Rapaz, é mentira dele. Nunca roubei na minha vida. Eu até morava junto da delegacia e prestava serviço à polícia”.
Deitado no cimento, está um detido que alvejou um moto-taxista. “Fui seduzido por outro...fugi com a mota para Tocantins”. Tanto ele como a mota foram encontradas no Estado vizinho de Tocantins. O companheiro do crime fugiu, ele foi apanhado. “Me seduziu para o crime, entende?”
Outro, algo desprezado pelos colegas de cela, está lá por pequeno roubo: “Me acusam de roubar um “veado” (gay), uma bicicleta e uma bolsa com duas camisas...e também tomei dinheiro de um menino lá na praia do rio...” Um PM olha-o nos olhos: “Esse aí é um desgraçado, nem roubar sabe...”
Na cela ao lado, o “Chinezinho”, aliás Iranaldo Alves Bezerra, de 18 anos, um rapaz de olhos bonitos de criança, não sofre de timidez. Já ali está pela quarta vez. O delegado já lhe deu uma chance, pô-lo a morar com ele mas o “Chinezinho” acabou por roubar a arma ao próprio delegado. O “Chinezinho” gosta de contar as façanhas e de ouvir as gargalhadas dos outros presos.
“Lá em Imperatriz, assaltava bicicleta e ónibus directo. Mandava todo o mundo não se mexer e aí gritava: passa o troco e o relógio!” “Chinezinho” ía sempre armado de pistola 38 ou 22 e de um facão que afirma agora ser mais para amedrontar. “O pessoal deixava o troco fácil”.
De Imperatriz, a segunda maior cidade do Maranhão, quase na fronteira com o Estado do Pará, “Chinezinho” regressou à cidade de Grajaú. “Rapaz, aqui me virei para supermercado. Muitas vezes era eu que arrombava com pé de bode (pé de cabra). Rapaz, às vezes até que era dificil, viu? Era três, quatro, cinco cadeados...outras vezes o portão estava fechado por dentro, tinhamos de rebentar a base”. Que roubava? “Roupa, maço de cigarro, caixa de pilha...rapaz, foi um prejuízo bom”, diz de sorriso nos lábios.
Esta já é a quarta vez que “Chinezinho” está detido na delegacia de Grajaú. “Rapaz, eu estava lá em casa da minha irmã, aí ela comunicou que estava vindo a polícia. Me escondi debaixo da cama. Aí o pessoal entrou dentro de casa e ouvi um policial dizendo: “Olha só quem está debaixo da cama”. Me algemaram e me trouxeram para aqui”.
A cela de onde chegam as gargalhadas é a dos “traficantes de maconha”, todos presos numa operação da Polícia Federal que utilizou 50 homens e helicoptero para combater o tráfico de maconha junto da vizinha cidade de Arame. Um polícia militar olha para eles e diz que são responsáveis por 2 mil e 600 quilos apreendidos. “Que é que é isso”, reage Francisco Neutro Pacheco, que se assume como agricultor, “essa turma aqui só é responsável por 460 quilos!”
E então Francisco, porque plantou a maconha? “Rapaz, eu plantei porque me senti seduzido, a pessoa me seduziu, disse que produzisse fumo que ele comprava”. Quem era ele? “Rapaz, eu vi ele uma vez só, nunca acertámos um preço. Aí, veio a Polícia Federal e pegou a gente. A gente somos lavrador, entende, sempre plantei arroz, milho, mandioca, banana, abacaxi. Não tinha arma, nunca roubei, nunca estuprei...”
Num espaço tão claustrofóbico, com apenas dois polícias de guarda durante a noite, a fuga é uma tentação. Só em 8 meses houve três tentativas de fuga. “Serraram as grades duas vezes”, conta o delegado Cleosnaldo Brito, “outra vez arrombaram a parede, o carcereiro é que viu que a parede já não tinha reboco”. O pior aconteceu a 14 de Outubro do ano passado. Quatros detidos conseguiram pegar o revolver de um polícia militar, obrigaram o carcereiro a lhes dar as chaves e fugiram.
Outras vezes, rebentam brigas entre os presos da mesma cela. “Quando chega um novo, eles sempre amassam ele até as coisas ficarem calmas de novo”, conta um polícia. “Ainda ontem”, recorda o delegado, “houve aí uma briga feia entre dois detidos”. Chegamos junto às grades e perguntamos se há brigas lá dentro da cela. “Não senhor, aqui todo o pessoal se respeita, o pessoal é unido”, responde com seriedade um dos presos.
Se os 34 detidos se acumulam em condições deploráveis, a vida insegura dos dois polícias militares de serviço parece não ser muito melhor. “A gente trabalha 24 horas e descansa as seguintes 24 mas na folga sempre tem serviço extra, blitz, não dá para descansar”, explica Jaime Amorim Garcia, 13 anos de PM, que ganha cerca de 60 contos e tem uma televisão a preto e branco em cima do balcão da delegacia como única distração. “Tem muito companheiro nosso na junta médica (de baixa). A gente não dorme direito, sofremos ameaça de marginais, estamos constantemente prendendo e recebendo ameaça”.
A 15 de Agosto de há dois anos, Jaime viveu o seu pior momento como PM. “Tinha traficante de “maconha” dentro de uma reserva indígena, aí nós fizemos uma barreira na estrada que dá acesso a ela. Quando íamos retornar, vimos os índios, todos de revolver e espingarda. Eramos quatro PM, eles atiraram mais de 30 bala no volkswagen. A gente não pôde responder porque estavamos armados de fusis e metralhadoras. Por um palmo, não atingiram o motorista”.
Para aliviar o stress do serviço nocturno na delegacia, quando tem de ficar de plantão, Jaime escreve poemas. “Trago sempre o caderno e escrevo aqui nesse balcão, sobre tudo, sobre a vida policial, o quotidiano, amor, a natureza”. Jaime já lançou um livro e tem participação em três antologias.
A figura mais emblemática da delegacia de Grajaú,no entanto, é o “Pêce”, um homem pequenino, quase anão, de pele tisnada, carcereiro por vocação e voluntariado há nove anos, que sofre de problemas do foro mental mas é incorruptível mesmo apesar de não ganhar um centavo. “Nunca recebeu nada mas o cara só entrega a chave a mim, mais ninguém”, explica o delegado Cleosnaldo Brito. “E se um dia eu disser que ele não vai trabalhar mais aqui, o cara me joga pedras e enlouquece. A vida dele é aqui”.
1 Comments:
At 9:07 da tarde, Carlinhos-RJ said…
Caramba !!!
Meu nome completo consta em "Delegacias Perdidas" gostaria de saber se ele foi escolhido ao acaso ou se foi retirado de algum lugar?
No mais, tudo em paz !!!
Um forte abraço para todos,
José Carlos dos Santos Vale
Enviar um comentário
<< Home