estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2004-10-29

Algures entre Pampilhosa da Serra e Cernache do Bonjardim

Os rodados da carrinha das obras onde se lia, na porta da esquerda, “Construções Jorge Silva”, foram enterrando e desenterrando, aos balanços. Joana, habituada à calmaria do balcão do Café “Mangualde” aquela hora, sentia-se a montar um elefante. À medida que o trilho enlameado encurtava, braços de eucaliptos roçavam nas vidraças humedecidas e embaciadas. Na encosta, do outro lado, já havia duas ou três pequenas casas térreas com os pátios alumiados. Joana pudera observar dois vultos a falar num terraço sobre o rio encoberto por uma parreira. Ouviam-se fiapos de risos e gargalhadas e a voz de uma mulher a ralhar com uma criança. De repente, chap, um ramo de eucalipto intrometeu-se na cabina. Joana não conseguiu suster um grito. Por um momento, uma fracção de segundo, parecia que alguém introduzira uma mão à sua frente, um braço na escuridão. Preso ao volante e atento ao caminho, Jorge nem teve tempo para rir. Haviam chegado junto a uma clareira que, varrida pela luz branca dos máximos deixava ver um grosso tronco de eucalipto. Carregou no pedal dos travões, puxou a si o travão de mão e saltou como um gato para o exterior da carrinha.
—Há água aqui em baixo. Vem.
Escutava-se um murmúrio de corrente mesmo ali por baixo e o remoer da folhagem uma contra a outra, atirada assim pelo vento. Regressou à cabine, abriu o compartimento das luvas e retirou a lanterna. Apontou-a na direcção da corrente do rio. Parara de chover. Um céu impenetrável sobre a copa das árvores parecia intimidar Joana, atenta a cada som, pregada ao passo pouco medido do companheiro. Desceram uma espécie de escada escavada na própria terra, os degraus de lama e pequenas pedras derrapando e desfazendo aos poucos como chocolate. Joana escorregou nos últimos dois degraus e aterrou nas costas almofadadas do blusão de Jorge.
— Hei oh, mulher! Segura-te ao meu braço.
O clarão da lanterna descobriu uma ponte em madeira, segura por uns braços de arame e depois uma água tão limpa e transparente que era possível divisar cada pedra, cada seixo e dir-se-ia que aquilo ali à frente era um peixinho expectante, atordoado com a luz da lanterna . Jorge levantou o pulso e a luz esbarrou numa moradia abandonada, um edifício em dois andares, grafitado, sem portas nem janelas. Na divisão que dava para o caminho, havia um monte estranhamente arrumado de folhagem, réstias de uma fogueira, páginas de jornal.
— Eu não quero continuar. Há-de viver ali alguém, sussurrou Joana.
Jorge apontou de novo a lanterna à casa sem vivalma. Uma lagartixa subiu a parede, em diagonal. Seguiu-a até ela desaparecer entre os beirais. Em cima do telhado havia um emaranhado de ervas e silvas. A casa parecia encostada à rocha. Quanto mais apontava para cima, mais fraga ia descobrindo, fraga sobre fraga, pequenos intervalos entre o granito, saliências que podiam esconder pequenas grutas.
Quando passaram finalmente à porta da casa abandonada, Joana receou que a qualquer momento um vulto saltasse à sua frente e gritasse. Imaginou morcegos, aqueles morcegões horrendos dos filmes ou um rato, uma ratazana, gorda e peluda, atravessando-se-lhe aos pés. Nada. Apenas pingos inofensivos e sincopados caíram das goteiras à sua passagem. Entraram então num túnel feito pela folhagem, em direcção ao rumor de água a cair. Por entre as acácias, pareceu-lhe que um solitário mas abençoado pingo de luminosidade derramava sobre a correnteza. Ergueu a cabeça mas tudo o que conseguiu avistar foi a copa tentacular e grandiosa de um eucalipto escurecendo ainda mais a já nebulosa noite à beira rio. Jorge, um braço espetado para trás quase rebocando Joana sobre a terra enlameada, acelerava o passo à medida que o som da água ia parecendo cada vez mais perto. Quase caiu quando a perna bateu sem contemplações num tronco enegrecido e seco atravessado no carreiro. Joana grudou-se-lhe apavorada enquanto esfregava o joelho dorido.
—O que é, o que é?
— É um tronco, merda. Um tronco.
— Oh, graças a Deus. Vamos embora daqui, Jorge. Não gosto deste sítio, vamos voltar para trás.
— A água deve estar muito perto. Ai , foda-se, doi-me o joelho.
— Mais uma razão para sairmos daqui.
— Não, não, anda, vamos.
Um rasgo esbranquiçado numa nuvem entreabriu uma brecha por onde passou incólume um fio de luz branca que embateu no rosto assustado de Joana. “Jorge?” Jorge já estava em cuecas, em cima do cimento da represa, de braços abertos, como um palhaço a agradecer os aplausos do público. Depois, virou-se e splash... Não deve ter estado debaixo de água mais do que dois ou três segundos porque irrompeu como um golfinho, a gritar e a gemer muito, todo a tremelicar. Iniciou então uma série algo desajeitada de pequenas corridas na água. Esbracejava furiosamente numa rudimentar imitação de natação batendo os braços na água com a força de um desesperado até ao rochedo do fundo, soprava como um louco ao alcançar a pedra e regressava, mais depressa e mais atabalhoadamente do que partira. Joana sentou-se em cima do muro. Ao lado, a um metro, parte da represa estava assente apenas em três tábuas de madeira por cima das quais ia caindo a água. Jorge retirou a tábua de cima, saltou aos uivos por cima das restantes duas e colocou-se debaixo da cascata, a urrar. Joana colocou a mão tapando as narinas e a boca enquanto quase soluçava de tanto rir. Foi então que Jorge regressou à represa, num último assomo de coragem, entrou de novo dentro de água e desapareceu. Ela esperou dois, três segundos, dez...e nada.
— Jorge, idiota, deixa-te de brincadeiras, aparece!
Respondendo ao apelo que ressoou entre as paredes de pedra da garganta, um braço fantasmagórico ergueu-se das profundezas, sacudiu-lhe o braço e puxou-a, como a um saco de batatas. Aquilo que lhe pareceu uma imensidão, entre o sufoco e o engasgue, não terão sido mais que uns segundos gelados.
Jorge puxou a si o corpo entre o petrificado, assustado e molhado, sacudiu-lhe os fios escorrendo água dos cabelos, olhou-a muito alucinado, agarrou- lhe o rosto com as duas mãos , os dedos cravados nas maçãs do rosto, e beijou-a, beijou-a até um fluxo sanguíneo lhe irrigar os lábios arroxeados.