A garrafa de vodka e a abóbada celeste
O mar, finalmente. Um manto frio e húmido de nevoeiro cobria o farol, lá ao fundo. Por muito que se esforçasse, premindo o rosto contra o embaciado do vidro, João não via ninguém nas pracetas e ruas calcetadas e bem delineadas de São Pedro de Muel. Sucediam-se moradias quadradas e em caixote, as persianas corridas em jeito de abandono.
No Inverno, cortada pelo bafo húmido da névoa marítima, isolada do mundo pelo pinheiral fantasmagórico que se estende em todas as direcções por quilómetros em redor, S. Pedro de Muel era o seu segredo de polichinelo. Única vivalma, uma ou outra idosa, as costas cobertas por um xaile de malha cerzido nas longas noites invernais, assomando ao lado de uma placa onde se lia "quartos, room, zimmer".
Em São Pedro de Muel, João podia sentar-se durante horas na falésia, uma garrafa de tinto ao lado e adormecer, os fios de espuma nos rochedos, o grito surdo das gaivotas atravessando-lhe o cérebro feito lâmina da navalha. No areal quase virgem que se estendia em direcção à Nazaré, podia caminhar durante horas sem encontrar mais do que um pescador, qual autista, qual sonâmbulo ausente, os cabelos desgrenhados, acasacado de xadrex, os colarinhos do casaco levantados.
Aquele era o tipo de espaço onde o indivíduo se deixava regular pela certeza tranquilizante de que tudo despertaria com o irromper da luz do Sol por cima da linha estabelecida pela copa das árvores e terminaria do outro lado, a mesma fonte de luz afogada nas águas turbulentas do mar de Leiria num abrupto, repentino minuto mágico. Era como apagar um fósforo aceso num copo cheio de água: vuuuuppp...
Aquela era a liberdade que João podia oferecer a si próprio. Esquadrilhava aquelas dunas solitárias até as bandas de Baleal, com uma das suas primeiras compras. Entrara um dia na loja de campismo e apontara para a pequena tenda azulada, que namorara semanas a fio do outro lado da montra. Com esse pedaço insignificante de lona, tinha sido feliz à sua medida. Uma noite, deixara verter uma garrafa de vodka dentro da tenda e para fugir ao cheiro enjoativo do alcool, colocara o saco-cama entre uma reentrância abrigada do vento e descobrira a abóbada celeste pontilhada de estrelas. Durante todos aqueles anos, assoberbado em chegar a tempo ao emprego, perdera o espectáculo da abóbada celeste, um show gratuito e universal, a que todos podiam aceder, ricos, pobres e remediados. Fora preciso verter uma garrafa de vodka dentro da tenda para aceder à fórmula simples da verdadeira felicidade. Nesse dia, acabara a falar com os astros até adormecer e descobrira as suas potencialidades terapêuticas.
A partir daí, a noite nas dunas era o seu pequeno consultório de psiquiatria, onde os fantasmas, as dúvidas, as memórias amargas e por resolver eram confidenciadas às estrelas, sob a cumplicidade dos elementos, o vento assobiando pelas reentrâncias da tenda, as águas do mar entretidas a lamber em ciclos e círculos a superfície das areias.
Ali, pensava, tudo era como sempre deveria ter sido.
No Inverno, cortada pelo bafo húmido da névoa marítima, isolada do mundo pelo pinheiral fantasmagórico que se estende em todas as direcções por quilómetros em redor, S. Pedro de Muel era o seu segredo de polichinelo. Única vivalma, uma ou outra idosa, as costas cobertas por um xaile de malha cerzido nas longas noites invernais, assomando ao lado de uma placa onde se lia "quartos, room, zimmer".
Em São Pedro de Muel, João podia sentar-se durante horas na falésia, uma garrafa de tinto ao lado e adormecer, os fios de espuma nos rochedos, o grito surdo das gaivotas atravessando-lhe o cérebro feito lâmina da navalha. No areal quase virgem que se estendia em direcção à Nazaré, podia caminhar durante horas sem encontrar mais do que um pescador, qual autista, qual sonâmbulo ausente, os cabelos desgrenhados, acasacado de xadrex, os colarinhos do casaco levantados.
Aquele era o tipo de espaço onde o indivíduo se deixava regular pela certeza tranquilizante de que tudo despertaria com o irromper da luz do Sol por cima da linha estabelecida pela copa das árvores e terminaria do outro lado, a mesma fonte de luz afogada nas águas turbulentas do mar de Leiria num abrupto, repentino minuto mágico. Era como apagar um fósforo aceso num copo cheio de água: vuuuuppp...
Aquela era a liberdade que João podia oferecer a si próprio. Esquadrilhava aquelas dunas solitárias até as bandas de Baleal, com uma das suas primeiras compras. Entrara um dia na loja de campismo e apontara para a pequena tenda azulada, que namorara semanas a fio do outro lado da montra. Com esse pedaço insignificante de lona, tinha sido feliz à sua medida. Uma noite, deixara verter uma garrafa de vodka dentro da tenda e para fugir ao cheiro enjoativo do alcool, colocara o saco-cama entre uma reentrância abrigada do vento e descobrira a abóbada celeste pontilhada de estrelas. Durante todos aqueles anos, assoberbado em chegar a tempo ao emprego, perdera o espectáculo da abóbada celeste, um show gratuito e universal, a que todos podiam aceder, ricos, pobres e remediados. Fora preciso verter uma garrafa de vodka dentro da tenda para aceder à fórmula simples da verdadeira felicidade. Nesse dia, acabara a falar com os astros até adormecer e descobrira as suas potencialidades terapêuticas.
A partir daí, a noite nas dunas era o seu pequeno consultório de psiquiatria, onde os fantasmas, as dúvidas, as memórias amargas e por resolver eram confidenciadas às estrelas, sob a cumplicidade dos elementos, o vento assobiando pelas reentrâncias da tenda, as águas do mar entretidas a lamber em ciclos e círculos a superfície das areias.
Ali, pensava, tudo era como sempre deveria ter sido.
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