estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2004-10-23

Avelino guarda-freio

O relógio da sala de plantões da estação marca 6h e 30 da manhã e Avelino de Sousa, 65 anos, é mais um dos muitos guarda-freios que, de casaco azul, conversam animadamente à espera de pegar nos respectivos carros. Lá fora, sob o frio cortante da manhã de 13 de Fevereiro, filas ordeiras de eléctricos iluminados vão saíndo pelo portão, riscando a escuridão que ainda cobre a cidade a essa hora.
Avelino atravessa o pátio envergando uma grossa samarra, à procura do eléctrico que lhe foi destinado. “Ah, cá está o 403”, exclama. Depois, repete o ritual invariável de todas as manhãs. Prende o “trole” lá em cima e consegue encaixá-lo à primeira.
“Dantes, quando havia um cobrador por carro, era este que se encarregava de colocar o trole e de abrir as agulhas, agora temos de ser nós”, explica, os dois braços puxando o cabo. Depois, mostrando-me as mãos: “a gente pega no trole e ficamos logo com elas sujas. Havia até uma senhora das Avenidas Novas que costumava perguntar porque é que os cobradores da Carris andavam sempre com as mãos tão sujas”.
Acende depois a luz do carro e descobre que lhe falta a cadeira. Lá fora, um colega acaba de saír do eléctrico que lhe foi destinado e anda à procura do mesmo. Não tarda vermos Avelino transportar uma cadeira para dentro do eléctrico. “Agora, precisava aqui de um electricista”. Os faróis tardam a acender e há várias lâmpadas dentro da carruagem que não se acendem. Mas enquanto espera, Avelino não perde tempo. Roda os nomes das carreiras à procura do seu destino dos últimos três anos: Poço do Bispo.
Avelino tem de dar uma volta dentro da estação para poder saír. “Tenho de ir devagar, ontem choveu muito, os carris apanharam areia e soltou-se uma roda.”O frio impiedoso das sete da manhã entra por tudo o que é frecha na carruagem. “Bem pior era quando as portas eram abertas e só tinham umas cancelas de ferro”, comenta Avelino, que começou como guarda freio num dos anos mais frios do século: 1949. “O mais que os passageiros podiam fazer era puxar as cortinas para proteger do vento”.
Já descemos em direcção à Estefânia, ainda o guarda freio recorda o seu primeiro dia de trabalho. “Eu a chegar ao Martim Moniz— a Igreja do Socorro de um lado e o Teatro Apolo do outro— o sinaleiro manda-me avançar e uma senhora atravessa-se à minha frente. Ainda lhe bati com o “salva-vidas” de ferro no carro. Então não é que logo no meu primeiro dia de trabalho o sinaleiro me pede a matrícula? Tive logo de ser rendido para ir à esquadra”.
Descemos já do Alto de São João para Santa Apolónia. O Sol está a nascer lá para a outra banda em tons vivos de laranja que, ao fim de 42 anos de guarda freio, não deixam de maravilhar Avelino de Sousa. “É muito bonito. Nesta altura do ano já descemos esta ladeira a ver o Sol a nascer. Pelo Natal era só às 5 para as 8h00.”Limpa o vidro da frente para melhor apreciar o cenário.
Um velho guarda freio reformado entra na carruagem, o anorax bem apertado e esfregando as mãos. “Uh, ele está uma nortada hoje, hein...está bera.” É a primeira das muitas pessoas que conhecem bem Avelino e o saúdam com simpatia. “Dantes, a companhia não queria que falassemos nem com os próprios colegas para evitar acidentes. Por isso, falava-se pouco com os passageiros. Agora, há um relacionamento maior”, explica Avelino. “Noutro dia, um colega ficou entalado entre dois carros e teve de ficar em casa. As pessoas perguntaram logo por ele”.
O rio volta a aparecer na Calçada da Cruz de Pedra, por entre barcos, guindastes e fileiras de carruagens de comboio. “Ali à frente, às vezes vejo os aviões a prepararem-se para aterrar na Base do Montijo e naquela tasca, o dono cumprimenta-me sempre que está à janela. Nunca ali entrei, não sei o nome dele mas é como se nos conhecessemos há anos”.
Mais uma descida e estamos em Santa Apolónia. “No Verão, chegamos a vender aqui dez e 12 bilhetes a estrangeiros. O problema são as demasias. É só notas de mil e cinco mil. Uma vez, levei um casal espanhol ao Banco mais próximo, deixei-os lá para eles trocarem o dinheiro e disse-lhes onde podiam apanhar outro carro”.
Da janela fronteira do seu eléctrico, Avelino foi assistindo aos acontecimentos e transformações que marcaram a cidade nos últimos 42 anos. “No dia em que veio cá a Rainha Isabel, andava eu a fazer a 17-B, entre o Martim Moniz e o Chile. Trazia uma mala com vinte escudos em tostões que naquele tempo os trocos eram uma dor de cabeça. Pois, esses 20 escudos não deram para duas horas, toda a gente queria ir ver a Rainha à Baixa, gastaram-me tudo”.
De outra vez, ía a passar em frente ao Instituto Superior Técnico quando lhe passa à frente a comitiva do presidente Sukarno, da Indonésia. Mas nada diverte mais Avelino do que recordar os tempos agitados do pós-25 de Abril, quando andava na carreira 22, ali pelos lados de São Bento. “Todos os dias havia uma manifestação em cima da linha. E nós atrás, a assistir ao comício, não podíamos avançar”, conta divertido. “A maioria dos partidos até se acabava por afastar para deixar passar os eléctricos. Mas havia um que fazia questão em nos barrar sempre a passagem: o MRPP”.
Na Estefânia, um táxi não deixa passar o eléctrico 403. As viaturas começam a buzinar impiedosamente. Se há algum carro que obstrua a linha e obrigue o eléctrico a parar, logo os carros que vêem atrás começam a buzinar. “Ao domingo, faz-se esta viagem em 37 minutos mas aos dias da semana gasta-se uma hora”.
Por vezes, também, há viaturas que se atravessam. Entre Xabregas e Marvila, uma carro enfia-se entre o eléctrico que vem em sentido contrário e o 403. “Isto é um serviço de apanhar sustos”, explica Avelino. “Temos de estar sempre com atenção aos carros e não podemos ir muito depressa por causa da humidade nos carris. Se a gente aperta um bocadinho, o carro foge”.
De outras vezes, são carros que estão mal estacionados. Avelino abre a porta e passa devagarinho, sempre a olhar para a viatura. “Já passei por este carro três vezes hoje e ainda não o tiraram daqui”, lamenta Avelino junto a Santa Apolónia.
Há três pontos em que a linha está má e a Carris distribuiu uma ordem de serviço que obriga os guarda freios a andarem mais devagar. O eléctrico geme, a dez à hora. “Atão, isso não dá mais?”, pergunta-lhe divertido um passageiro. Avelino vira-se para trás e acena-lhe com a ordem de serviço. “Já li, já li”, responde o outro, um velho conhecido.
A cidade e os seus pequenos nadas não deixam de atrair Avelino, que à medida que vai descendo as ruas, vai falando de quem conhece na vizinhança e de quem lhe costuma entrar no eléctrico. “Olhe”, avisa-me nos Anjos, “aquele casal, dorme ali todas as noites”. São dois “sem tecto” que acabam de acordar às portas do Tribunal do Trabalho. Mais adiante, recorda o senhor Travassos, que costumava deixar invariávelmente em frente à sua loja da Praça da Figueira.
De vez em quando, há pessoas que o saúdam do passeio. “De facto, aqui de cima podemos ir observando a vida da cidade”, comenta Avelino. Quando uma fila de automoveis nunca mais o deixa passar, na Calçada da Cruz de Pedra, sai da tasca um velho amigo, Manel, ajudante de camionista e sinaleiro nas horas vagas. Imediatamente, manda parar os carros e faz seguir o eléctrico.
A carreira do Poço do Bispo é frequentada por muitos idosos que Avelino ajuda a subir e a descer do carro. “ Aqui de manhã, há muitos velhinhos. Há um que vem todos os dias do Martim Moniz para uma tasca ali em Marvila. É ali que ele tem os amigos”. E, por volta do meio dia, lá está o homem, numa paragem da Rua do Acúcar, a que Avelino chama “a rua mais doce de Lisboa”.
Avelino acaba por compartilhar a solidão de algumas das pessoas que lhe entram pela porta adentro. “Já que não se pode andar mais depressa, serve para entreter um bocadinho”. Uma mulher que mais tarde confessa nunca ter visto, conta-lhe em cinco minutos de viagem como perdeu quatro familiares chegados em quatro meses. Deixa-se ficar, uma mão segurando a cadeira do guarda-freio, obstruindo a porta do eléctrico. “A conversar junto à porta”, resmunga um vendedor de lotaria mal humorado. Mais tarde, um velho ex-empregado do cinema Liz confessa-lhe a amargura de nunca ter tido filhos.
Avelino não esconde a tristeza por actualmente muita gente preterir os eléctricos em favor dos autocarros. “Agora, as pessoas querem é ir o mais depressa possível para o emprego. Dantes, a companhia chegava a pôr cobradores volantes na carreira do Poço do Bispo, tal era a freguesia”. Mas a cinco meses da reforma, o guarda freio 2 mil da Carris sabe que conduz num meio de transporte condenado a ser ultrapassado por outros mais velozes.
Não vai ter saudades, ao fim de 42 anos de avanças e arrecuas pelas ruas de Lisboa? Avelino pensa demoradamente na resposta. “Talvez faça como aquele guarda freio reformado que um dia me entrou no eléctrico e me pediu para eu o deixar guiar só um bocadinho”, responde a brincar.