estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2005-02-02

DREW, MS

Um festival de blues no Mississipi é algo de pessoal e intransmissível. É difícil descrever o calor, a humidade, o cheiro a suor que se confunde com o dos fritos que emana dos barbecues. No dia do festival de Drew, a rua principal da cidade foi cortada ao trânsito para que as famílias negras pudessem passear em câmara lenta, elas arrastando os traseiros redondos, eles abanando os ombros largos.
Todas as famílias trazem cadeiras que estendem junto às poucas e disputadas sombras do relvado do jardim de Drew. À medida que o calor aperta, abrem-se os guarda-sois coloridos. Quase todas as pessoas transportam bebidas na mão: ice-tea, limonadas em grandes copos cheios de gelo ou latas de budweiser embrulhadas em sacos de papel, compradas numa loja de fachada decadente, cuja porta de vidro tem uma enorme fita adesiva, com negros a saír e a entrar. “Não”, explica-me um habitante de Drew que pede duas cervejas ao balcão do clube local para que seja eu a pagar, “não podes ir lá para fora de garrafa na mão , a polícia não deixa. Mas se embrulhares num saco de papel, já não tens problemas”. A cerveja dele vem num copo de plástico cheio de cubos de gelo. Tem finas gotas de suor a brilhar na pele negra. Em Drew, uma das atracções do festival era a Parchman Blues Band, a banda do em tempos tenebroso campo prisional de Parchman, onde Bukha Withe foi preso por ter morto um homem, nos anos 30 e onde gravou canções para o investigador Alan Lomax. “Oh man, Parchman já não é tão duro como era dantes, já não apanhamos tanto algodão e se pertences à banda podes saír todos os fins de semana para tocar aqui e ali, por todo o Estado”, explica Lerry Ingram, o preso 63399. Lerry está a cumprir uma pena de dez anos por assaltos e furtos de automóveis. “Eu cresci no ghetto, em Chicago, a fazer pequenos roubos. Quando cá cheguei ao Mississipi, pensava que podia continuar no mesmo tipo de vida. Enganei-me”. Atrás do palco do festival de Drew, a convivência é total entre presos, guardas, miúdos da banda de Joh[1]nny Billington e outros cantores como Lonnie Shields ou Wesley Jefferson. Pedimos a todos os membros da banda da prisão que nos autografem uma t-shirt. Um deles é o próprio guarda, Perry Wilson, um homem magro, loiro, óculos escuros e pistola à cintura. “Estes gajos não me dão problema nenhum”, explica Perry, que toca harmónica e bateria. O problema, esse sim, é o salário pequeno. “Mas o que é que se há-de fazer, estamos no Mississipi...”
Sentamo-nos com Lonnie Shields à sombra de um arbusto, fugindo a o calor impregnado de humidade do Mississipi. Lonnie, uma camisa branca e azul, um olhar meio esgazeado, é um misto de cantor gospel e de blues que afirma colocar sempre Deus à frente em tudo o que faz na vida e que tem como ídolo, B.B. King. “You see, o meu ídolo é o B.B. Não há ninguém maior que ele. Espero um dia poder sentar-me ao lado dele e poder dizer-lhe como tem sido difícil para mim ser um cantor de blues, como tem sido difícil ir para a estrada às vezes só com um níquel no bolso. Mas eu nunca desistirei. Para mim, cantar blues é algo de espiritual. Eu estava a cantar num clube em Chicago quando se soube que tinha havido o atentado em Oklahoma e alguém veio ao pé de mim, deu-me 50 dolares e disse: “Continua a cantar. Tenta tirar os jovens das ruas, para que eles se amem e acabem com a violência”. Um músico vem chama-lo. “Lonnie, vem, vamos actuar”. Lonnie Shields ainda se vira para trás: “You see, isto é que é os blues, as pessoas sofrem, as pessoas cantam. Bye”.