estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2005-02-26

TELEVISION BLUES

A televisão arrasta tudo casa adentro, numa torrente lamacenta de imagens que se colam ao cérebro como pastilhas elásticas no cabelo. Por vezes, vezes demais, teimo em só reter as deprimentes. Retenho a menina peruana a quem chamam de sereia porque nasceu com as duas pernas juntas e terá de ser operada. Retenho o funeral da Irmã Lúcia mais o seu acenar infindável de lenços e aquele ritual fúnebre e lusitano-deprimente prolongado por horas. Da noite da vitória esmagadora de Sócrates, a única imagem que retenho é a daquele homem a estacionar uma carrinha branca em frente ao Hotel Altis e a despejar e distribuir à pressa bandeiras de Portugal e do Partido Socialista a um punhado de gente. Retenho aquela imagem vinda em directo de Itália de um hospital igual a qualquer outro, com umas janelas iluminadas na noite e eu a perguntar-me atrás de qual delas se esconde um frágil e solitário Santo Padre. Retenho os jovens e menos jovens deitados na madrugada fria às portas da FNAC para comprar um bilhete de 54 euros que muitos já sabem que não conseguirão comprar. E finalmente, última pastilha, retenho aqueles lenços brancos e doentios quinta-feira à noite no Estádio da Luz a despedirem-se do Sport Lisboa e Benfica como se a equipa e o seu treinador fossem a Irmã Lúcia. Por mais que tente, não consigo arrancar as pastilhas elásticas deprimentes que se me colaram no cabelo. Culpa da televisão.