Nashville Fan Fair 94
A aproximação à Fan Fair fazia-se pela "white trash land", um dos mais pobres bairros de brancos de Nashville, um homem com aspecto de vagabundo derramando o conteúdo de uma cerveja no pequeno alpendre da moradia de madeira ou as mulheres exibindo cartões onde se lia “vende-se espaço para os carros”.
Subia-se uma rampa por entre dezenas de caravanas que percebemos ali ficariam toda a semana do festival e chegavamos ao Estádio da Tennessee State Fairgrounds, um velho anfiteatro para corridas de stockcars, com as suas curvas inclinadas e placards de publicidade ao último album de Neil McCoy ou John Michael Montgomery.
“Okay, girls”, dizia um vendedor com a tradicional bonomia dos sulistas, “se não querem o meu jornal, só posso oferecer a minha simpatia”. Mais à frente, vendiam-se t-shirts, canecas, bonés, leques, ponchos e guarda-chuvas da Fan Fair. Com o calor que faz em Nashville, em Junho, rápidamente toda a gente precisa de um leque para se abanar. Os ponchos e os guarda-chuvas são para a chuva que desaba inclemente ao fim de uma tarde de calor abafado e húmido.
Fora do Estádio, ficavam os pavilhões com as “booths”, stands onde cada cantor ou grupo assinam autógrafos a multidões ávidas de uma foto e de autógrafo. Havia gente por todo o lado, chapéus de cowboys, bonés de baseball com os nomes dos grupos, câmaras fotográficas sempre preparadas. Cada stand, por entre os quais se andava aos empurrões, pretendia ser melhor do que o outro.
Paramos em frente do de Doug Stone, em forma de gruta. Havia ali tudo o que um fã de Doug Stone precisaria, desde t-shirts até bonés. No balcão, uma placa explicava em que dia ele estaria assinando autógrafos. No stand de Faith Hill, reinava já uma grande barafunda. Ela só iria chegar daí a duas horas mas a fila para os autógrafos era já gigantesca. “Oh, a Faith é formidável”, comentava Sara, uma enfermeira de Auburn Hills, Michigan, “por ela eu espero o tempo que for preciso”. Mais à frente, quase entalado entre duas jovens, mantinha-se a custo Delmon Esh, 58 anos, um gestor de propriedades na reforma, do Arkansas. Estava à espera há pelo menos uma hora e tinha mais duas horas de espera pela frente. “Não sei se é a voz dela, se ela em si, é tudo”. Os stands, todos eles muito coloridos, cheios de camisolas, posters e porta-chaves dos artistas, vão obrigando a multidão dentro de cada pavilhão a andar devagar, sob um calor insuportável. De repente, fui obrigados a parar. São os Oak Ridge Boys a dar autógrafos. Mas não, ali a a excitação não é nada de especial.
Qualquer coisa de muito turbulento se passa já no fim do pavilhão. Oh! Lá ao fundo, os Little Texas! Toda a gente acorre ao local, máquinas fotográficas em riste. Mas é praticamente impossível chegar lá abaixo e a única forma dos rapazes de cabeleiras compridas se fazerem ver é colocarem-se em pé em cima do balcão, acenando aos fãs.
Para um recém-chegado à Fan Fair, é realmente impressionante a quantidade de artistas que se pode ver em pouco tempo. No stand da RCA, estão Mike Henderson, Lari White e...aquele ali ao fundo, já o vimos na capa de um disco... ah, é Andy Childs. Passo à frente. Noutro pavilhão, um verdadeiro acampamento espera os Brooks and Dunn. “Yeah”, explicava Debra Wicker, de Bloomingdale, Illinois, “estou aqui há duas horas e meia. Tem de ser. As minhas amigas lá de Bloomingdale íam matar-me se não lhes levasse o autógrafo dos Brooks and Dunn”. Não vai pedir um para si? “Yeah, sure, cada pessoa pode pedir dois”.
Prossigo aos empurrões por entre os constantes gritos de histeria junto de um stand ou outro. Por vezes, sorrindo a custo dentro do seu pequeno stand, um cantor de terceira categoria espera que alguém se lembre dele para também assinar autógrafos. Bobbie Cryner deixava-se fotografar com uma mulher atarracada e gorda. Parei para ver Martina McBride a dar autógrafos quando ouvi gritar. “Hei, it’s Neal McCoy”, gritava alguém. Neal saltou para cima de uma mesa com os braços muito abertos como um cristo. Um fulano empurra-nos com uma câmara de video: “I got her, I got her!” Conseguiu a custo colocar Martina McBride no centro da objectiva.
O stand mais original pertencia, no entanto, a Travis Tritt, há quatro horas a assinar autógrafos dentro de uma guitarra gigante. Um batalhão de fotógrafas amadoras acotovelava-se junto à vedação. “É ele, é mesmo ele dentro da guitarra?”, perguntava uma amiga a outra. Só conseguimos ver muito ao longe o rosto sorridente de Tritt sob o bombardear de flashs.
Por entre a confusão, conheci Brenda Fulkerson e Martha Waycaster, gémeas de 50 anos, de ali perto, Chattanooga. Desde que as acompanharam uma vez à Fan Fair e detestaram, os maridos deixam-nas ir sozinhas. Martha, que sabe que tem um cancro, continua a fazer a peregrinação todos os anos.
“Queriam que eu não viesse. Eu disse-lhes: Tenho de ir só mais uma vez. Enquanto conseguir mover as minhas pernas, vou”. Brenda emocionou-se quando Martha falou na doença mas ambas esqueceram o assunto quando perguntei os nomes dos artistas preferidos. “Eu adoro o Aaron Tippin. É bonito, tem músculos. Oh lordy. Os braços dele são como rochas”, explica Martha, que é caixa num restaurante de estrada, em Chattanooga, ali mesmo no Tenessee. Brenda e Martha, que só falharam a Fan Fair em 1977, acham que os fãs mais novos não se sabem comportar em frente aos seus artistas preferidos. “Querem atirar-se para cima deles. Não pode ser. Temos de começar por conhecer os managers, os familiares, é preciso ter paciência”.
Chegaram os elementos dos Shenandoah. A fila de fãs movimentou-se e impacientou-se. Uma mãe com uma criança ao colo, que não conseguia andar e mal percebia onde estava, queria que a fotografassem com os membros da banda. Perdi algum tempo a ver a cena. “Excuse me, buddie”, pede-nos um homem grandalhão, com uma câmara na mão. “Hei Linda”, grita uma mulher, “guardaste-me a foto dos Shenandoah?”
Com sorte, conseguia-se ver alguns artistas fora dos stands. Ia a pé para o edifício da imprensa quando vi Vince Gill entrar com o seu enorme e vermelho Cadillac no parque de estacionamento. Lá dentro, junto dos jornalistas era fácil ver artistas a passar entre uma e outra entrevista. Foi assim que vi pela primeira vez Shania Twain, maquilhadíssima, sorrindo para toda a gente, ou Doug Supernaw, ou Doug Stone, ou...
Na sala de imprensa, os jornalistas que quisessem marcar entrevistas, tinham de marcar uma espécie de cabine semelhante a um roupeiro de praia onde se introduziam com o artista a entrevistar.
Falta pouco tempo para começar um espectáculo. Os fãs, a maioria de meia-idade, t-shirts coloridas e bonés de baseball, comem picocas em grandes pacotes e bebem Pepsi em enormes baldes repletos de pedaços de gelo. Todos levam consigo panquecas, cachorros cobertos de mostarda e ketchup. Pode-se fechar os olhos, abrir as narinas e sentir que se está na América. Toda a gente aguenta pacientemente, sob o céu enevoado e o calor húmido que lhes ensopa as roupas, abanando-se com tudo o que têm à mão. Uma rapariga agita um leque amarelo onde se lê International Country Music Fan Fair, Tennessee. Uma mulher senta-se ao nosso lado com um copo cheio de gelo e despeja coca-cola lá para dentro. Depois, espalha bocados de gelo pela cabeça. À sua frente, nos dois palcos que foram montados para que não haja intervalos, os roadies afadigam-se a preparar o proximo espectaculo.
À medida que se aproximam os shows, começam a chegar ao backstage os enormes autocarros dos cantores e das bandas, autênticas casas ambulantes onde por vezes se vê montada uma antena parabólica. São territórios reservados onde apenas o staff é autorizado a entrar. É à porta dos autocarros que os felizardos que conseguiram ir para o backstage pedem autógrafos. “Olhem”, ouve-se num grupo, “vem ali o autocarro do Billy Ray Cirus!” Quando o espectáculo começa, um grupo enorme de fãs incondicionais, espera a sua vez de poder passar em frente ao palco e tirar uma fotografia. Mal a tiram, são instados por membros da organização para deixarem a frente do palco e um novo grupo é mandado avançar. Será assim, de manhã à noite, durante os seis dias do festival. Os fãs só querem tirar uma foto, como se assim fossem prestar um tributo ao seu ídolo.
O espectáculo começa com os milhares de fãs a cantar o hino americano. Todos em pé, os homens sem os bonés, as mulheres de mãos no peito, quase diríamos tratar-se de uma cerimónia religiosa. Por vezes, grossas gotas da chuva surpreendem tudo e todos a meio de um espectáculo, como aconteceu com Rodney Crowell que acabava de anunciar “Big Hearth” e viu desabar uma chuvada intensa que transformou a plateia num mosaico de ponchos e chapeus de chuva coloridos. “Está aqui alguém da Florida? Está aqui alguém do Arizona? Isto é chuva. Nunca tinham visto pois não?”, pergunta o apresentador.
Jeff Foxwhorthy, um humorista, pôs tudo às gargalhadas com as suas piadas sobre sulistas: “Nós sulistas não temos culpa de sermos tão mal vistos. A culpa é quem põe os mais ignorantes de entre nós a falar na televisão”.
Cabe ao entertainner de serviço animar os espectáculos nos intervalos muito diminutos entre cada artista. Há um que quer atirar um brinde mas quer atira-lo a alguém que esteja em minoria. “Há aqui alguém de Rhode Island? Você? Ah, você está a mentir!” Depois, abre os braços para apresentar “a mais bonita, mais talentosa, Faith Hill !” Faith aparece em palco com o mesmo vestido branco com que a vira no edifício da Warner horas antes numa recepção aos jornalistas estrangeiros e canta o mesmo country pop de Martina Mac Bride, por exemplo. Vem até à ponta do palco e abaixa-se para os milhares de fãs que naquele momento lhe tiram uma fotografia. “Tenho de vos dizer uma coisa: esta é a primeira vez que venho cantar à Fan Fair. Há sete anos estive aqui a vender t-shirts de Reba McEntire, sabem quem é?”
No backstage, dezenas de pessoas pululavam entre uma grande tenda onde podiam assistir aos concertos através de televisores, comer e beber de borla e os autocarros dos artistas. O backstage de um concerto de country music é um espaço partilhado por dezenas de pessoas, desde jornalistas a produtores, agentes artísticos, managers e fãs que sem se saber como conseguem romper o já de si débil controlo.
Quando Waylon Jennings* desceu degrau a degrau a escada das traseiras do palco e passou por mim com a alegria estampada no rosto, a jovialidade de um jovem de 57 anos que terminara talvez a melhor actuação da Fan Fair, a minha frustração não podia ser maior. Viera de Portugal para tentar entrevistá-lo e essa oportunidade fugia-me das mãos. Vi Waylon passar pelos seus roadies, e entrar no enorme autocarro todo mobilado no interior, cujo exterior ostentava a palavra WAYLON. Lá dentro, pude vê-lo conversando com os membros da banda enquanto um dos seus filhos brincava com o retrovisor do autocarro.
De repente, lá de dentro, saíu uma mulher loira, autoritária. Só podia ser ela. Há pelo menos duas horas que a procurava desesperadamente pelo backstage. Chamava-se Schatzy Hageman e era a “publicist” de Waylon Jennings. Pelo menos, durante um mês tentara marcar uma entrevista. Schatzy respondera que Waylon tinha quase tudo marcado mas que aparecesse no backstage, que ela arranjaria dez, quinze minutos.
“Schtazy”, perguntei, “é você a Schatzy Hageman?”. “Sou”, respondeu com a voz cansada mas simpática, “e você é de Portugal, não é ?” “Sim, sim”, respondi. “Pois, lamento imenso, eu procurei-o por todo o lado, onde raio se meteu?” As últimas luzes do Estádio da Tennessee State Fairgrounds iam-se apagando uma a uma. Era tempo de comer um último hotdog e rumar ao hotel. O taxista dos Music City Taxi virou-se para trás e fez a mesma pergunta de sempre quando me ouviu falar português: “Where are you guys from?”
* Waylon, o grande Waylon Jennings, faleceu cinco anos mais tarde, aos 62 anos
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