estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2005-06-09

COMO EU FALEI COM BRUCE SPRINGSTEEN

POR RUI LAUREANO (texto)

(fotos de Cris, Sónia e Marcos)

Depois de um concerto extasiante da Devils and Dust Tour em Madrid, um fã incondicional do cantor conta como passou horas a fio em busca de um autógrafo, de uma fotografia, de como ao fim de mais de 13 horas depois falou com ele e de como perdeu a foto desejada com o Boss


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Bruce Springsteen, na madrugada de dia 3 de Junho, a dar autógrafos à porta do Hotel Palace, em Madrid

Madrid, Hotel Palace 3h30 de 3 de Junho

Saímos do concerto extasiados. Uns, como eu, ainda de queixo caído com a dose concentrada de espiritualidade contida em Dream Baby Dream, outros... não… Após as despedidas, vi-me sozinho em Madrid, a desejar uma cama, confortado por saber exactamente onde estava uma à minha espera - Calle Cervantes- e convencidíssimo que sabia exactamente como lá chegar. Tinha feito o percurso a pé e memorizado cada ponto de referência. Peguei no carro e…perdi-me logo. Mas Deus existe. Ou seriam restícios da espiritualidade de “Dream Baby Dream” que me deixou temporariamente mais próximo do meu anjinho da guarda? O que é certo é que o meu sexto sentido levou-me a dar umas tantas curvas instintivamente na direcção certa de modo a ver-me numa avenida com as letras iluminadas de Hotel Palace lá bem ao fundo, sobre umas árvores altas. Coisas da Vida, não se explicam, agradecem-se.
Deixei o carro no parque do próprio hotel porque parquear no bairro é só para residentes e "há câmaras espalhadas". E só o tornarei a fazer se da próxima vez passar quatro noites em Madrid e não duas - porque custa a mesma fortuna!
Estava em pulgas e não resisti a ir espreitar primeiro, com as malas às costas e tudo, se estaria algum fã do Boss à porta do Hotel... Só para confirmar se o Boss estaria mesmo ali hospedado. Não estavam uns fãs mas uma pequena multidão que ia crescendo e crescendo. E eu, com medo de perder o evento, fiquei sem saber se devia arriscar ir ao quarto largar as malas ou esperar... E fiquei.
Enquanto esperava, ía pensando no que diria a Bruce se tivesse a chance de falar com ele. Não sabia. Que o seu concerto tinha sido "a very emotional experience"..? Estaria interessado em saber isso? Percebi que não fazia a mínima ideia do que dizer. O que normalmente é o que acontece quando se trata de alguém que não conhecemos. Bem, seria prático: Perguntaria quando viria a Portugal.
Uma hora ou hora e meia depois, dezenas de falsos alarmes e crescendos de excitação seguidos de vales de ressaca emocional, o momento esperado concretizou-se. A multidão correu para as escadas, de máquinas em riste, num frenesim de "dry lightnings", chamando por Bruce, mãos levantadas, tentanto tocar-lhe, todos a tentar chegar o mais perto possível. E ele, Bruce Sprinsteen, era a antítese dessa emoção.

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A entrada do Hotel Palace horas depois do concerto da "Devils and Dust" Tour

Como “un padre que entiende la ansiedad de sus hijos e la aceita”. Com o sorriso meio desenhado, expressão aberta, calma e habituada mas parecendo ligeiramente deslocado no meio de tamanha atenção quase descontrolada, foi recebendo beijos e assinando sobre bilhetes, fotos, capas de CDs, capas de vinis, livros e posters.. Até uma viola vi passar.
Fiquei hipnotizado no meio daquela cena frenética. Quando despertei, ainda me lembrei de pegar na máquina para tirar uma foto e sem querer acabei filmando. Então, de malas às costas e cansado, lá me meti no meio da fila mas nunca chegou a minha vez. De repente o Boss disse adeus, deu meia volta e a porta do hotel fechou-se para nós. Talvez o Boss tivesse partido aliviado por ter terminado. Muitos ficaram tristes por nem terem chegado perto. Que injustiça…

Hotel Palace 11h00 da manhã de dia 3 de Junho

Ainda desiludido por não ter conseguido um autógrafo do Bruce, quanto mais perguntar-lhe quando vinha a Portugal, decidi fazer o que tinha planeado: Turismo em Madrid. E, claro, o caminho tinha de passar em frente ao Hotel. Não vi ninguém que parecesse fã. Reparei num jovem, sentado à sombra, com um saco na mão e sem qualquer referência ao Boss na sua indumentária. Devia estar à espera de alguém. Já teria saído o Boss? Bolas... Sentei-me num canteiro em frente à atarefada entrada do Hotel, a fingir que olhava para o mapa de Madrid mas a pensar no que fazer: Perguntar se o Boss já tinha saído? Um funcionário do hotel, a lembrar Hitchcock, viu-me ali sentado e veio ter comigo. Sem introduções apontou para o mapa e disse "Here museum, very nice. Here garden, good too. Here large plaza, with tables, no cars, very pretty."
“Thank you very much", respondi. Bem, agora ficava mal continuar ali sentado.
Meti-me ao caminho, segui a sugestão do António em ir à livraria do Corte Inglês- Quantas lojas Corte inglês há em Madrid? Já alguém as terá conseguido contar todas?- para logo me desiludir. Parece que em Madrid nunca ouviram falar em livros em inglês. Consta que os Comics até deixaram de ser publicados em inglês…
Desiludido, fiquei sem saber o que fazer e a sentir o peso da solidão - 600 km longe de qualquer conhecido. Decidi voltar para o hostal e passei pelo hotel. Eis que reconheço caras da noitada anterior! Eh pá, algo se prepara!
Dois italianos que seguem o Boss avidamente, um casal com duas crianças, uma delas de colo, um casal de namorados apaixonadíssimo que viria a conhecer como Mónica “e su nobio”, um fã alto e que tinha um avião para apanhar (não chegaria a ver o Boss), o rapaz de saco na mão que tinha visto antes, “Tante”, abreviatura de Constantino, motoqueiro das Astúrias, com a sua mota parqueada em frente à porta do Hotel. O pessoal continuou a chegar: Marcos, um fã que, viria a saber, tinha comprado entradas para vários concertos mas que tinham sido confiscadas pela polícia como prova ao ser apanhado a vender uma entrada... ao preço oficial. Uma jovem muito vivaça, a Cris; outras duas jovens, curiosamente uma mais alta, a Sónia, e outra mais baixa e com um nome melodioso mas incompreensível para mim, ambas muito conversadoras. E Karen, a basca, uma sósia quase perfeita de Kate Winslet ( “Titanic”, “Finding Neverland” ), na realidade mais atraente porque tinha olhos de um verde intenso. Todas “muy guapas”.
A ocasião e a espera foi-nos juntando. Em pouco tempo, estavamos todos numa amena cavaqueira. Melhor, eles falavam que se desunhavam e eu tentava em vão perceber alguma coisa. Fui perdendo a vergonha de pedir para repetir, dando à fala a entoação "à espanhola", cheia de hs soprados (mau para quem não lavou os dentes!) e fui conhecendo aos poucos o pessoal.
A Karen era a que falava menos, o que me dava tempo de lhe fazer perguntas. Tinha consigo um presente para o Bruce: Um CD da sua autoria, em que tocava temas do Boss em acordeão: “Nothing Man”, “Devils and Dust”, “Should I Fall Behind”, “My Hometown”, “The Rising”, 15 no total… espantoso! E assim passámos horas, felizes, ansiosos, divertidos, e na companhia do porteiro que reclamava connosco por estarmos a impedi-lo de trabalhar.
Lá para as duas da tarde, sai Jon Landau, “el manager, con su família”. Sem seguranças, sem ser importunado- excepto pelos dois italianos que tinhamos visto com uma faixa à entrada do Palácio de Deportes. Ainda os ouvi dizer a Landau: "Diga-lhe que ele nos conheceu em Bolonha, ele lembra-se de nós". Landau diz que sim com a cabeça e continua em frente.
A saída de Landau fazia adivinhar o grande momento. Havia, contudo, um problema: Existiam duas portas, a principal e a lateral (as lendas falam de mais 6 portas secretas mas decidimos não contar com essas!). Fãs perguntavam aos funcionários: "Ele va a Salir?” Uns diziam que sim, outros que não. Até que um diz: “Façam uma fila em frente à porta principal, e aguardem". Chamamos os que estavam na porta lateral. Reparo que os dois italianos, que sempre lá estiveram, não arredaram pé, e penso cá para mim que eles deviam estar a agir por experiência. Saberão algo que não sabemos?
Fizémos fila para Bruce poder passar e assinar à vez. Eu estava logo à frente. O desejado autógrafo parecia estar mais perto que nunca Era desta! Duas e meia da tarde, todos alinhados em frente ao portão principal quando ele sai, sim mas pela porta lateral. Enganados! Corre tudo para ele, que fica rodeado pela mesma multidão que momentos antes estava dedicada a ser uma multidão ordeira e respeitadora. Chuva de pedidos de autógrafos, fotos, até uma entrevista de jornalista e suspeito que alguns paparazzi também. E logo se esconde na furgoneta e arranca. Um dos italianos bate no vidro da furgoneta enquanto grita lá para dentro "Bruce, see you in Bologna! See You in Bologna!"
Alguns ainda correram atrás da furgoneta. Eu nem uma foto tirei - todo aquele ambiente e finalmente ver Bruce à luz do dia e a menos de 5 metros, deixou-me anestesiado. O meu estado de espírito contrastava com o da multidão. O Boss estava “gone” mais uma vez. Alguns fãs do grupo a que me tinha juntado também tinham desaparecido na confusão. Eu continuava sem o tal autógrafo que tinha passado a manhã a desejar e que parecia ter estado tão perto. Não tinha almoçado e pensava se artista algum acharia piada àquela fixação colectiva por um autógrafo, uma palavra, uma foto…

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Marcos fala com o Boss

Restaurante Lucio, tarde de 3 de Junho

Logo após o Boss ter arrancado numa furgoneta do serviço de limpeza da câmara de Madrid- um facto que foi interpretado por alguns fãs ofendidos como um exemplo de baixeza, já que nenhum de nós, sempre atentos ao movimento das carrinhas, tinha desconfiado daquela - começaram logo a soar rumores acerca de onde o Bruce teria ido almoçar. Constava que um restaurante muito famoso de Madrid, o Lucio, estava encerrado, levando a suspeitar que tinha sido reservado para o Boss. Ora não foi preciso mais. Sem grande alarido, o grupo de que agora fazia parte estava em movimento em direcção ao Lucio. Pelo caminho, ía pensando no poder que a ânsia de estar com o Boss estava a exercer sobre nós. Já me estava a sentir um "stalker", eu que valorizo tanto a minha privacidade... Mas decididamente, não ia abandonar aquele grupo que exalava alegria e excitação de um modo quase inocente. Embora, ao mesmo tempo, a intenção de saltar à frente do Bruce onde quer que ele pudesse aparecer não me parecesse assim tão inocente.
A caminhada não foi muito longa e lá estava eu afinal a fazer turismo em Madrid. Chegámos ao restaurante e afinal, pelo som do pessoal que vinha de dentro, não parecia estar encerrado. As portas, pressionadas por uma espanhola para espreitar, não cederam. Continuámos na dúvida, e na dúvida fomos nós almoçar. De vez em quando alguém vinha espreitar à porta da taberna de onde se avistava o Lúcio para ver se havia movimento. Incrivelmente, outros fãs foram chegando. Os rumores correm depressa.
Após o almoço, fomos posicionar-nos em frente às portas do Lucio, do outro lado da rua, e alguns foram falar com o que pareciam ser dois seguranças, aspecto de homens-macaco, à porta do restaurante. Quem quer que fosse, estava alguém importante lá dentro. No primeiro andar, um empregado de mesa vestido a preceito espreitava-nos entre as portadas. Eu começava a sentir-me como um suspeito de crime! Ainda pensariam que trazia uma bomba na mochila. Os dois seguranças riam-se da situação e diziam "não temos aqui nenhum Bruce Springsteen, podem confiar", com um sorriso trocista que só atiçava mais a dúvida de todos.

Bem, de repente, percebi que não estava a gostar do meu papel no meio daquilo tudo. Estava a ficar claramente incomodado e o mais provavel seria pôr-me ao caminho para Lisboa. Despedi-me do pessoal todo e ala para o Hostal. Claro que passei primeiro pelo Hotel Palace, não fosse o (in)esperado acontecer.


Hotel Palace, 17h00 de 3 de Junho

A mini conversa com Bruce!

Aconteceu!


Ao passar pelo hotel, vejo quatro fãs apenas, encostados contra a parede do outro lado da rua. Meto conversa com eles, mostramos fotos para autografar, um tinha um quadro com uma foto de Bruce de 73, onde aparece tal como na foto da contracapa de “The Wild, The Innocent & The E Street Shuffle”. Não estava ali há mais de cinco minutos quando aparece uma carrinha e de lá sai o Boss!!
Nem queríamos acreditar! Desatámos os cinco a correr. O Boss pára em frente à porta lateral, vira-se para nós a sorrir e a ceder aos pedidos insistentes "una foto!", "una firma". Tira fotos com as três fãs ali presentes, com o braço sobre o ombro, enquanto diz "okaaay, okaaay, let's do it". Antes que se metesse porta a dentro, entrego-lhe a minha foto pedindo-lhe que a assine. E enquanto ele a assina pergunto:
"Well Bruce, when will portuguese fans be so lucky to see you perform in Portugal again?" Pareceu-me que, de repente, o facto de eu falar em inglês lhe captou a atenção. A maioria dos fãs apenas dizia frases chave em inglês.
"Well, it's hard to say, there's always so many places we want to go...", respondeu o Boss. "But it's only one more night and it's very close to Madrid", insisti. "Yeah I know, I remember well my concert in Lisbon during the Human Touch tour, it was nice. And in New Jersey, there's a small portuguese community that I know well, very nice people". Respondo eu: "Well think about it, we've heard from Sony Portugal that they want you there too." O Boss: "Yeah?"
The end. Nisto, outro espanhol aparece com o seu quadro do Bruce 1973 para autografar. O Boss distrai-se com um pedido de um marcador porque a caneta que estava a usar não iria agarrar no vidro do quadro (tal como não agarrou bem na minha foto) . Um macaco-segurança sacou de um marcador, o Bruce assinou, com dedicatória e tudo e logo em seguida despediu-se e desapareceu no interior do hotel. O meu pedido por uma foto perdeu-se no ar.
Ficámos à espera que o nosso ritmo cardíaco acalmasse, sorriso de orelha a orelha, excitados, a comentar os autógrafos e dedicatórias dos mesmos, quando passados cinco minutos regressa o meu grupo. Quando souberam que perderam o Boss por cinco minutos, bradaram aos céus de desespero divertido, porque se há coisa que nunca deixaram de fazer foi de se divertirem com todas as situações em que nos vimos. Entretanto, também eles traziam notícias. Constava que afinal o Boss tinha ido almoçar a Toledo. O Lucio tinha sido falso alarme.

Madrid, Hotel Palace, 19h00


"O Boss entrou, agora tem de sair"


Depois de ter ido guardar religiosamente a minha foto autografada, para que a tinta, que não agarrou, não saísse toda, reencontrei em frente ao Planet Holywood a Karen / Kate Winslet, que tinha desparecido durante a confusão antes do almoço. Ainda não tinha conseguido oferecer o seu cd de versões em acordeão ao Boss.
A conversa com a Karen era complicada mas muito divertida: Eu mal a percebia em castelhano e ela não me percebia em português. Eu entendia-a em inglês mas ela tinha dificuldade em se expressar... As nossas conversas podiam começar em espanhol, passar para o inglês e meter um pouco de português pelo meio. Víamo-nos obrigados a repetir duas ou três vezes qualquer coisa. E ainda aprendi a dizer “obrigado” em basco!
Disse-lhe que estava sem dormida (já tinha desistido de partir para Lisboa nessa tarde) e ela ofereceu-se para ir comigo ao hotel dela para ver se tinham um quarto para mim. Ela ficou no hotel enquanto eu fui à procura noutro sítio- a maioria dos hoteis estava lotada. Quando já estava com um quarto reservado noutra hostal perto das Puertas Del Sol voltei para o Palace. Novo plantão de espera se formava. O Boss haveria de sair para jantar e os fãs faziam questão de estar presentes. Desta vez, já ninguém tinha fé na porta principal, que o Boss nunca parecia usar.
Cerca das 19h00, depois do manager Jon Landau ter sido visto a abandonar o hotel, uma carrinha cinza pára em frente à porta lateral. Um homem de barbicha, de cara de muitos poucos amigos que e que parecia tratar os fãs como um mal difícil de suportar e que já tinhamos visto sempre que o Boss estava para sair, sai cá para fora e ordena que todos se mantenham bem longe da porta e da carrinha.
Do meu grupo, um fã amigo de Marcos coloca-nos todos em fila, alinhadinhos e promete que ninguém passará daquela linha. O guarda-costas responde: "That's good! Stay there. If Bruce wants to go to you, he will. If not, he will just enter the van directly and you'll stay there".
No meio da confusão, duas senhoras nos seus cinquenta perguntam em inglês o que se passa ali. Eu explico-lhes: “ Bruce Springsteen is coming out of this door”. Não queriam acreditar: “You're kidding?!? THE Bruce Springsteen?? No way!! He's staying in our hotel?? Oh my gawd!" Eram duas escocesas, com um sotaque delicioso, uma delas fã, e que se juntaram a nós para ver o Boss.
O Bruce apareceu, mas não parou. Acenou e entrou na carrinha. Os fãs bem estenderam os braços a segurar capas, fotos, livros, mas desta vez nada. A carrinha arranca e Tante, o motoqueiro, arranca na sua mota atrás.
Parece que desta vez introduzimos um espião!
Eu estava boquiaberto com as coisas que o pessoal fazia!

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Bruce Springsteen e o famigerado homem da barbicha

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Aí vai ele, nada a fazer...

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"Bruce, por favor..."


Madrid, ao caír da noite, dia 3 de Junho


Um bilhete para Bruce Springsteen

O nosso fã infiltrado seguiu a carrinha até à zona do Lucio, antes de a perder de vista. O pessoal meteu-se novamente a caminho. Quando chegávamos à rua do restaurante, as nossas suspeitas pareciam confirmar-se: Avistámos a carrinha cinza estacionada. Instalámo-nos descontraídamente num bar com vista para o Lucio e preocupámo-nos em beber e comer, embora sempre falando do Boss. Eu conseguia perceber muito pouco do que diziam mas não tardei a perceber que um "cunning plan" se formava nas mentes do pessoal. A Sónia tinha ido ao restaurante confirmar se o Boss estava mesmo lá. Falou com uma funcionária que... simplesmente não fazia ideia quem era Bruce Springsteen. Em desespero, perguntou a uma mais nova que respondeu: "Ah, eu bem me parecia ser ele mas um senhor de barbicha disse que não, que era só alguém que se parecia com ele...". O homem estava sempre em serviço!
O plano era este: escrever um bilhete ao Boss a pedir que no final do jantar ele nos permitisse tirar uma foto com ele, dentro do restaurante (longe dos olhares indiscretos), e pedir à empregada que o entregasse em mão a Bruce. Descobrimos, entretanto, que o motorista do Boss estava na nossa taberna! Poderíamos pedir-lhe que levasse o bilhete.
Naturalmente, não fiquei muito optimista quanto à viabilidade do plano. Obviamente, o barbicha iria fazer tudo para enxotar os fãs, quem quer que fossem. Mas também não se perdia nada em tentar. Ofereci-me para escrever o bilhete, enquanto todos íamos sugerindo o que dizer. O bilhete ficou mais ou menos assim:

"Dear Bruce,

We have been following you all day. We're sorry for that.
We don't want to disturb you but we really want to take a picture with you.
There are 9 of us (which means 9 flashes - we are doubly sorry!).

We would like to propose that we go and meet you in the restaurant in pairs,
so that it will be the least of an harassment for you.

As a proof of our good will we are returning you your driver in exchange for our
9 pictures! Thank you!

Your blood brothers"
E se querem um final anticlimático: Apenas entendi que o bilhete foi interceptado pelo barbicha e que nunca terá chegado ao Bruce, claro…

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O grupo que seguiu Bruce Springsteen, da esquerda para a direita: Desconhecido, Mikel, Nayara, Marcos, Rui Laureano (autor do texto), Karen, Cris, Mónica, Sónia e Carlos

Run to Bruce

À saída do restaurante, Bruce encontrou-nos, claro, à sua espera. Disse que seguia para o Hotel, para o esperarmos lá. A carrinha arrancou e arrancaram também os fãs todos!
Desatámos a correr na direcção do Palace, uma corrida de 10 minutos sem parar. Os meus pulmões pareciam rebentar, mas se parasse provavelmente ficaria sem saber como voltar para o Hotel. Uma fã, a Sónia, corria em sandálias, e nem olhava para os sinais de trânsito. Atravessava de qualquer forma. Mais tarde, comentou: "Uma coisa é divertir-me à procura do Boss, outra é arriscar a minha vida por isso. Hoje fui longe demais!".
Eu e outro fã, Mikel, irmão de Marcos, fomos ficando para trás. Quando chegámos ao Hotel já lá estava a carrinha, o Boss à porta, e só quatro fãs do nosso grupo que, cá para mim, se tinham teletransportado para ali! Karen, a basca, estava entre eles. Quando eu chegava, Karen conseguia o seu poster “Devils & Dust” autografado (para juntar à sua colecção) e oferecia a Bruce o cd, gravado a tocar temas em acordeão. "Yeah? wow - thanks!", respondeu o Boss. No fim, a cereja no topo do bolo: A foto com o Bruce, que um segurança se ofereceu para tirar.... Claro que ninguém, nem mesmo Karen, foi capaz de jurar que o Boss alguma vez viesse a ouvir aquele cd.
De repente, estava a outra fã, Sónia, a tirar uma foto com o Bruce quando saltam caídos do céu paparazzi de jornais madrilenos munidos de câmaras fotográficas com tele-objectivas a desatar às flashadas e a gritar “Bruce aqui!” Sem hesitar, o Boss desaparece. “Thanks a lot for ruining our moment...”, dizíamos nós, de várias maneiras. Eu voltei a ficar sem a minha foto com o Boss. Os paparazzi desapareceram, tal como tinham aparecido, sem darmos por eles...

Outro curioso mistério ainda estava para surgir.


O fantasma na foto

Com o Boss "arrumado" na sua suíte, fomos beber um copo a um bar de jazz e flamengo. A conversa continuou tão animada como nesse mesmo longo dia, às 11h00 da manhã, sempre acerca do mesmo tema: Bruce Springsteen. Era impossível ficar-se sem assunto porque quando se esgotava um, tornava-se a repetir outro qualquer. Curioso e impressionado com a dinâmica e a paixão deste grupo de fãs, perguntei onde se tinham todos conhecido. A resposta ainda me conseguiu espantar: Tinham-se conhecido há mais de 11 anos num concerto do Boss, e já faziam estas "perseguições" há anos...
Fomos passando as máquinas digitais e mostrando uns aos outros as fotos tiradas. De repente, houve uma que despertou a atenção e a diversão de todos: "Quem é esta? Alguém viu esta mulher no meio de nós?”
Numa das fotos tiradas no momento em que Karen entregava a Bruce o cd, via-se uma velhota, de cabelo branco apanhado formando uma bola sobre a cabeça, vestida de preto, a olhar para o Boss. "Certamente alguém que passava en la calle", disse Marcos. Ninguém se lembrava de ter visto a mulher! Eu tinha estado exactamente em frente a ela, a minha câmara fotográfica apontada para a Karen e para o Boss, pronto a disparar se eles ficassem a jeito. Tinha na objectiva a parede do hotel. Não me recordo de lá ver alguém. Agora, na foto, estava aquela velhinha! Bem, este mistério ficará sempre assim, um mistério.


Madrid, manhã de 4 de Junho de 05

A despedida


Já na madrugada de sábado, quatro de Junho, separámo-nos todos e fui dormir. Dormi mal, vá-se lá saber porquê. Acordei com a disposição de ir embora durante a manhã. Já tinha visto muito. Apesar da diversão e do sentimento de grupo, continuava a questionar, para mim, esta "vida de perseguição". Às 10:30, em frente ao Hotel Palace, o grupo já estava reunido para se despedir do Bruce quando ele o abandonasse para partir para Bolonha. Quando ele partiu, no entanto, eu já não estava com eles. Pelas fotos tiradas e que eu vi mais tarde, o Boss parou, ficou com eles uns minutos, tirou fotos com todos, assinou todos os autógrafos, recebeu prendas (colares e pulseiras) dos fãs e recebeu de Marcos uma carta a explicar a sua situação com as entradas confiscadas. Eu, se tivesse ficado, teria obtido a minha foto com o Bruce. Assim, guardo esse objectivo para a próxima, se ainda o desejar.
No entanto, depois desta experiência fantástica, deixei de sentir aquele autógrafo, ou aquela foto, como tão importantes. Vi, do meu lado, no meio daqueles fãs todos, a ânsia que parecia cega em estar com o Boss, idolatrá-lo, acarinhá-lo, sentir que ele repara em nós, querer ficar com essa prova escrita numa assinatura ou numa foto com ele... Mas vi também um homem a ser constantemente relembrado que não é uma pessoa comum, que não pode esquecer que para onde vá tem sempre uma mão cheia de desconhecidos a implorarem por atenção, a sacrificar-lhe a paz, numa relação estranha e frenética, onde se torna difícil o diálogo ponderado e de coração para coração.
Não era isso que eu desejava ter com o Boss. O ideal seria sentar numa mesa com o Bruce e outros fãs, calmamente, uma bebida à frente de cada um, deixando a conversa ganhar vida. Falar do que Bruce Springsteen é para cada um de nós e do que ele é realmente para o próprio Bruce Springsteen. Falar de onde vem aquela Magia que se forma num palco onde Bruce Springsteen-o-Homem entra. Falar do quanto Bruce-o-Músico nos dá e saber se Bruce-o-Homem recebe tanto ou mais quando nós recebemos. Eu certamente espero que sim.





Epílogo

A luta de Marcos por recuperar as suas entradas obteve resultados inesperados. Bruce respondeu à carta que Marcos lhe escreveu telefonando-lhe pessoalmente a convidá-lo a todos os concertos que restam na Tour. O caso de Marcos teve tal impacto que já foi intrevistado pela TV3 Televisão Catalã, para além de um artigo no jornal El Mundo.

Quero terminar fazendo minhas as palavras do El Mundo de 8 de Junho:

“El cantante Bruce Springsteen ha dado muestras de su buen corazón con el que seguramente desde hoy sea su más ferviente seguidor español.”

Neste dia fantástico, no meio de um batalhão de fãs empenhados em seguir o Boss para onde ele fosse, questionei as nossas acções. Será que não fariam mais mal que bem à relação que Bruce tem com os seus fãs? Mas talvez seja uma questão desnecessária, depois de conhecer a reacção de Bruce à carta de Marcos, apenas mais um fã seu.

Quando se está à frente de Bruce, rodeado de outros fãs, é difícil, senão impossível, comunicar a Bruce-o-Músico o quanto ele significa para mim. Pela sua música que me acompanha há anos, pelas emoções puras que as suas actuações despertam e por algo simplesmente indefinível. Mas será que ele já não sabe?

4 Comments:

  • At 5:22 da tarde, Blogger Pedro F. Ferreira said…

    Devia ser proibido fazer inveja desta maneira. :) Um abraço.

     
  • At 12:06 da manhã, Anonymous Anónimo said…

    Bruce é Deus, o resto é conversa! Há uns 10 anos conheci um gajo da quinta do conde que era marado pelo Bruce e na altura já tinha visto mais de 20 concertos do Bruce!Perdi-lhe o rasto, mas o gajo era mesmo doente pelo Boss. Eu só vi um concerto dele em 1988 em Paris, e gostei imenso!Posso mesmo dizer que juntamente com U2 em Wembley foram os melhores concertos que vi até à presente data! Long Live The Boss!

    Manuel Madureira (Espinho)

     
  • At 4:44 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    Olá fofinho..

    Eu não tenho adoração pelo Bruce(apesar de gostar mt de o ouvir), mas uma coisa é certa..O Bruce é que perdeu mt em não conhecer alguém como tu! :D
    Ele tem o dom da voz e da interpretação.. mas tu tens sem duvida o dom da sensibilidade e da palavra no seu mail alto nivel e dimensão!
    Tenho um orgulho infindável em ser tua amiga!
    Adoro-te...
    Beijinhos

    Marlene.. sempre tua...

     
  • At 10:57 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    Estou emocionada!!!! vc. escreve muito bem e sei oque vc. sentiu, pois eu em 1988 Sao Paulo, me hospedei no Hilton para vê-lo bem de perto. È muito intrigante... dá medo, alegria, sei lá, muitos sentimentos se misturam, tudo oque se quer é ver, tocar, falar e ser fotografada por ele. Consegui fotografá-lo mas nao com ele, porém consegui dar um beijo no rosto dele. Ou isso, ou pedir um autógrafo, achei que seria mais fácil oque dependesse de mim( o beijo) do que tentar falar em ingles e pedir algo a ele. Só quem passa por isto tem noçao do que é estar perto DELE.

     

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