estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2005-06-16

OS BLUES SEGUNDO SCORSESE


Posted by Hello
MARTIN SCORSESE APRESENTA OS BLUES (7 DVD's)

Já estava disponível na versão americana desde Outubro de 2003. Um ano mais tarde, passara a estar disponível na edição inglesa. Agora, esse monumento aos blues que são os sete DVDs, num total de 780 minutos, de “Martin Scorsese Apresenta Os Blues” foi lançado finalmente em versão nacional com legendas e texto em português.

Ao todo, “Martin Scorsese Apresenta os Blues”, produzido pelo realizador no contexto da celebração nos Estados Unidos de “2003 Ano dos Blues”, é constituído por sete filmes de sete realizadores diferentes: “De Regresso A Casa”, do próprio Scorsese; “A Alma de Um Homem”, de Wim Wenders; “A Caminho de Memphis”, de Richard Pearce; “Aquecido Pelo Fogo do Diabo”, de Charles Burnett; “Padrinhos e Filhos”, de Marc Levin; “Red, White & Blues”, de Mike Figgis; “Piano Blues”, de Clint Eastwwod.
Além dos filmes, há três horas de extras, que incluem entrevistas com os realizadores, biografias e filmografias mas também prestações ao vivo – num total de 27. A série não tem qualquer cariz enciclopédico nem preocupações históricas. Cada realizador foi convidado a expressar num filme documental a sua paixão pela música.
Clint Eastwood, por exemplo, deu asas ao amor pelo blues e jazz ao piano. Scorsese acompanhou o tradicionalista e cultor do blues acústico Corey Harris numa viagem até ao Mali e às raízes dos blues. Marc Levin mergulhou no mundo vivificante do blues de Chicago e da herança da lendária editora Chess Records. Charles Burnett ficcionou o ambiente do blues do Mississipi dos anos 50. Mike Figgis documentou os blues britânicos. Wenders prestou homenagem a três nomes dos blues: Blind Willie Johnson (1902-1947), mestre em misturar gospel e blues e em tocar a slide guitar, o melancólico bluesmen do Mississipi Skip James (1902-1969) e J. B. Lenoir (1929-1969), famoso pelos blues politizados da época do Civil Rights Movement . Richard Pearce acompanhou o regresso à famosa Beale Street, em Memphis, Tenessee, de alguns dos seus pioneiros: Rufus Thomas, B. B. King, Rosco Holcomb, Ike Turner.

DVD "Aquecido Pelo Fogo Do Diabo"

Dos sete, talvez o menos interessante seja “Aquecido Pelo Fogo Do Diabo”, que conta a história ficcionada de um rapaz de Los Angeles que visita, nos anos 50,no Mississipi, um tio boémio e amante dos blues.
A ficção gira em torno dos estereótipos do Delta Blues, o blues rural e acústico do Mississipi: mulheres, álcool, “juke joints” (bares de blues locais), o peso da religião, as inundações do Mississipi, a lenda do cruzamento onde um dos mais influentes, senão o mais influente nome dos blues de sempre, Robert Johnson, terá vendido a alma ao diabo.
Burnett cruza a história com imagens antigas de artistas da época, de Big Bill Broonzy a Sister Rosetta Tharpe, Mississipi John Hurt, a Willie Dixon, entre muitos outros – os trechos são inestimáveis mas curtos, quase sempre.

DVD "A Alma de Um Homem"

“A Alma de Um Homem”, de Wenders, também utiliza ficcção mas de forma diferente. O autor pretende homenagear Blind Willie Johnson, Skip James e J. B. Lenoir. Recorre à ficção nos trechos biográficos sobre os dois primeiros, mas ainda assim a ficção é enriquecida com os temas originais. A estes segue-se quase sempre a interpretação dos mesmos por músicos actuais. Grande parte da riqueza de “A Alma de Um Homem” está nas interpretações que estes autores actuais, como Lucinda Williams, Alvin Youngblood Hart, Bonnie Raitt, Jon Spencer Blues Explosion, Beck ou Lou Reed fazem de temas de Skip James, tais como “Devil got my woman” ou “I’m so glad”.
Mas o melhor momento é a homenagem que Wenders presta a um herói da sua juventude, o bluesman J. B. Lenoir. Para tal, recorre a imagens restauradas e a cores do cantor mas sobretudo a fantásticas filmagens inéditas feitas em 16 milímetros nos anos 60 pelo casal Steve Seaberg e Ronnog Seaberg. Temas como “I want to go”, “Round and round” ou “Vietnam Blues” são também interpretadas em estúdio por outros autores actuais: Nick Cave, Bonnie Raitt, Los Lobos, T-Bone Burnett, Cassandra Wilson e Garland Jeffreys.
Se tivermos em conta que ao filme se juntam cinco prestações extras e integrais de Lou Reed, Cassandra Wilson, Alvin Youngblood Hart, Marc Ribot e Chris Thomas King, pode dizer-se que do ponto de vista do amante dos blues é um festim.


DVD "Red, White & Blues"

“Red, White & Blues” de Mike Figgis é o documentário televisivo por excelência. Um rol de entrevistados notável – que inclui John Mayall, Eric Burdon, Mike Fleetwood, Steve Winwood, Van Morrison, Eric Clapton, Tom Jones – aborda de forma cronológica a influência do jazz e dos blues em Inglaterra para terminar com a influência que o blues britânico e bandas rock como os Rolling Stones exerceram nos EUA anos mais tarde.
John Mayall lembra que o primeiro bluesman a aparecer em Inglaterra foi Big Bill Broonzy, em 1950. Eric Clapton recorda quando tocou com o mago da harmónica Sonny Boy Williamson e fala da colecção brutal de discos de blues de Mayall. Chris Farlowe recorda quando, no tempo em que cantava no “Flamingo” em Londres um negro se aproximou para lhe falar e Chris descobriu que se tratava de Otis Reding.
Os músicos ingleses evocam o impacto das guitarras, dos discos importados, da roupa. E falam do reverso da medalha, quando passaram a ser eles a invadir os EUA. B.B. King, sem papas na língua, diz que foram os ingleses (Stones, Cream, Bluesbreakers) a tirar os blues do gueto nos Estados Unidos.
No âmbito do documentário, o autor gravou, em Março de 2002, várias actuações nos estúdios de Abbey Road. Destaque para Lulu (a Dusty Springfield escocesa) a cantar “Drown in my own tears” ou “Cry me a river”, Van Morrison a interpretar “Rambler Blues” e Tom Jones acompanhado por Jeff Beck em “Love letters” ou “Hard times”.


DVD "A Caminho de Memphis"


Em “A Caminho de Memphis”, Richard Pearce retrata o regresso à actual, turística e plastificada Beale Street de vários músicos que lhe deram vida no tempo em que a rua era uma ilha de música negra onde brancos como Elvis Presley foram beber influências.
Pearce aproveita a realização em Memphis dos anuais W.C. Handy Awards, os grammies dos blues, para juntar nomes que deram vida à Beale Street nos bons velhos tempos: B.B. King, Rosco Gordon, Rufus Thomas, Ike Turner, Little Milton, Hubert Sumlin, entre outros.
A maioria lamenta o facto de a Beale Street já não ser mais do que uma rua turística, B.B. King regressa à rádio onde um dia entrou a pedir trabalho pela primeira vez e Ike Turner visita Sam Phillips nos famosos Sun Studios, onde Elvis gravou pela primeira vez.
Pelo meio, em contraponto à história de sucesso de B.B. King, o realizador acompanha na estrada Bobby Rush,um “bluesman” excêntrico que nunca teve tanto sucesso e continua a ter de fazer uma média de 200 espectáculos por ano, viajando num velho autocarro.


DVD "Padrinhos e Filhos"

Em “Padrinhos e Filhos”, Marc Levin navega também por uma rua, hoje abandonada, que foi plena de significado para a história dos blues – a Maxwell Street – mas num meio completamente diferente, o dos blues de Chicago.
Levin mergulha no meio musical inovador da cidade pela mão de Marshall Chess, filho de Leonard Chess, o fundador da lendária editora Chess Records, que lançou Howlin Wolf, Muddy Waters, Willie Dixon. Marshall recebeu em tempos um e-mail de Chuck D, dos Public Enemy, que lhe afiançou que o seu disco preferido de Muddy Waters era “Electric Mud”, álbum psicadélico que Marshall convencera o “bluesman” a gravar em 1968. Resultado: Marshall junta em Chicago os músicos das sessões de “Electric Mud” para gravar em estúdio com Chuck D e com o rapper local Common.
A reunião é o pretexto para Marshall nos contar o passado fascinante da Chess Records através de múltiplas histórias: como Muddy Waters lhe dava conselhos acerca das mulheres, como os Rolling Stones lhe telefonaram a pedir para gravar no estúdio da Chess ou como perguntou ao pai em que consistia o seu trabalho na editora: “Your job? Your job is watching me, you stupid motherfucker!”
Enquanto Marshall mostra Chicago a Chuck D, vamos vendo os lugares míticos dos blues da “windy city”, observando artistas de blues da cidade como Koko Taylor, Magic Slim, Lonnie Brooks ou Sam Lay a tocar ao vivo.
O documentário apresenta também um naipe de fotografias a preto e branco notáveis que pertencem ao arquivo da Chess. A não perder o extra do grande, em toda a acepção da palavra, Howlin’ Wolf a cantar “Evil (is going on “.

DVD "De Regresso A Casa"

Em “De Regresso A Casa”, Scorsese investe no blues do Delta do Mississipi e nas suas ligações a África. Utiliza, para tal, muitas imagens de arquivo e acompanha a viagem do músico Corey Harris às raízes do seu blues acústico.
Depois de entrevistar, no Mississipi, músicos locais como Sam Carr, Willie King ou Taj Mahal, Corey viaja até ao Mali, onde encontra Salif Keita, Habib Koité e Ali Farka Touré, com quem troca ideias e partilha a universalidade da música de raiz africana.
Alguns dos melhores momentos estão nos extras, onde podemos ver, sem interrupções, prestações de Taj Mahal, Corey Harris, Willie King, Keb’ Mo, Otha Turner e Salif Keita.

A não perder: Imagens de arquivo da investigação de Alan Lomax no Sul nos anos 4O
Entrevista de arquivo de Son House
Encontro em Niafunké, às margens do Rio Níger, no Mali, entre Corey Harris e Ali Farka Touré. Scorsese junta o som da guitarra de John Lee Hooker e a de Ali Farka Touré com imagens do rio.
Jam session de Ali Farka Touré e Corey Harris debaixo de uma árvore

DVD "Piano Blues"


“Piano Blues” de Eastwood, é provavelmente o melhor de todos os sete documentários. A fórmula é simples e didáctica: Clint senta-se com Ray Charles, o pianista de New Orleans Dr John ou cantora de blues de Austin, Texas, Marcia Ball ao piano ou junto a ele e discorre sobre as suas influências ou limita-se a ouvi-los tocar.
O conhecimento e o fascínio do realizador pelo instrumento e pela música são evidentes. O encadeamento com que usa imagens de arquivo – seja da geração do boogie woogie (Meade Lux Lewis, Pete Johnson), seja do rythm and blues de Big Joe Turner ou do jazz de Art Tatum – é perfeito.
“Piano Blues” é como a melhor das aulas sobre um tema apaixonante, daquelas onde todos estão felizes. Ray Charles toca com paixão o blues que mais o influenciou e os olhos de Marcia Ball brilham ao tocar um dos seus temas preferidos. No final, Clint Eastwood deixa os artistas tocar e junta pedaços enebriantes, como se de uma gigantesca jam session de piano blues se tratasse. Presenteia também os espectadores com uma montagem magnífica de imagens de arquivo e imagens actuais juntando pianistas falecidos com pianistas vivos.

Martin Scorsese Apresenta os Blues
7 DVDs, 780 minutos
distri. Lusomundo
Preço: 70 euros

6 Comments:

  • At 1:38 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    Tu queres-me levar
    à falência =)

     
  • At 4:51 da tarde, Blogger NUNO FERREIRA said…

    São 70 euritos:)

     
  • At 2:12 da tarde, Blogger zero said…

    bom post! é sempre um prazer encontrar quem goste de blues. não era pior partir o post em várias partes. facilita a leitura ...

     
  • At 3:25 da tarde, Blogger NUNO FERREIRA said…

    É isso. Logo que puder, vou partir o texto e colocar mais imagens. Obrigado pela sugestão. Um abraço.

     
  • At 9:43 da tarde, Blogger a miúda said…

    Infelizmente são 70 euros, mas penso que vale o esforço de apertar os cordões à bolsa num mês (caso seja caso disso!).
    Eu só vi o "Do Mali ao Mississipi" (o do Scorcese), mas posso garantir que valeu de facto a pena por variádissimas razões, nomeadamente as apontadas pelo Nuno, mas pessoalmente adorei o Otha Turner com o seu pífaro (não sei se é este o nome do insrumento, mas como vi em frança, terão de me desculpar a tradução bera!! :)) ). Quanto aos outros, não tive ainda oportunidade de os ver mas posso dizer que a banda sonora do filme do Wim Wenders está muito porreira.
    Deixo por isso o meu apoio!

     
  • At 2:03 da tarde, Blogger NUNO FERREIRA said…

    É verdade, esqueci-me do Otha Turner e do seu "pipe and drums". Tb não sei muito bem como traduzir. O realizador utilizou o Otha Turner para fazer a ligação entre o Mississipi e o Mali.
    Um abraço

     

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