estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2005-09-02

SOUTH TO LOUISIANNA

“Church Point” é provavelmente a cidade com mais músicos de cajun no mundo!”, comenta um eufórico e exuberante Rod Fuselier, disc-jockey na KSLO-KOGM, de Opelousas, Louisianna, plena pradaria do Cajun Country. “Muitas famílias foram sempre tendo tocadores de violino e acordeão em cada geração. Os pais passaram aos filhos”.
Rod está a cobrir nesse sábado quente e húmido, o Festival de Church Point onde a grande atracção, como não poderia deixar de ser, são as bandas de música tradicional da Louisianna, a Cajun, esse som diabólico produzido pela mistura dançável do acordeão e do violino e cantado no francês local, uma mistura de inglês e francês arcaico.
Por todo o lado, no recinto da festa, há homens de boné à banda e mulheres de camisolas sem manga, enquanto alguns rednecks da zona fazem questão de passear de lata de Budweiser na mão e t-shirt sulista. Numa das t-shirts, existe um X dos Confederados e uma legenda onde se lê “you wear your X, I wear mine” ( “tu vestes o teu X, eu visto o meu”) e noutra, mais sugestiva e explícita, lê-se: “General Lee surrendered, I didn´t” ( “O General Lee rendeu-se, eu não”.
Em redor da enorme tenda, que serve de pista de dança, uma pequena multidão de cajuns bebe insaciavelmente latas de Bud Light e conversa animadamente. Alguns, já cambaleiam embriagados mas ninguém briga, como se fizessem jus a essa máxima cajun: “Laissez le bon temps rouler!” Em frente ao palco, dezenas de casais rodopiam abraçados, dançando à moda da Louisianna: o homem e a mulher vão dando voltas à pista, acelerando à medida que o ritmo do acordeão se enferniza.
Os velhos demais para dançar, sentam-se em cadeiras de praia que trouxeram de casa e batem o pézinho, deliciados. Muitos são músicos amadores da região, atraídos nesse fim de semana a Church Point por causa do Festival. “Eu estou onde estiver a haver uma festa cajun, percebe. Se passar um fim de semana sem dançar, já não é fim de semana para mim”, explica Stanley Hebert, um técnico de semáforos que dedica os tempos livres a tocar e ensaiar com a sua banda, os “T-Star And His Cajun Band”. Stanley ainda se lembra do tempo em que o pai, Aldus Roger, o ensinou a tocar em festas de família, as famosas “house parties”. “Arredava-se os móveis e fazia-se a festa em casa de alguém que alugava a sala. Não havia bares nessa altura. A festa só terminava quando chegava a polícia”.
Rod Fuselier vê-nos ali e não perde tempo a pegar no microfone e a anunciar à audiência da KSLO-KOGM: “Eh pessoal, temos aqui pessoas de Portugal, Espanha, eles vieram precisamente de Portugal, Espanha para fazer uma reportagem aqui em Church Point sobre a música cajun! Digam-me: Que tal é o interesse do público pela música cajun lá em Portugal, Espanha?”
O show radiofónico de Fuselier, às terças-feiras à noite na KSLO-KOGM, chama-se “Yamland Fais-Do-Do”, remetendo para o facto de Opelousas ser a “capital of the world” do yam (batata doce) e utilizando o termo francês “fais do do”, que em França significa “fazer ó ó” e que ali, a milhares de quilometros de distância significa dança e diversão. “É tudo em francês”, explica Fuselier, que tem o show há seis anos. “Grande parte do programa é tradicional porque é o que os meus ouvintes gostam mais mas também passo um bocadinho de progressive cajun e uma canção de zydeco por hora”.
Church Point é uma pequenina cidade de moradias de madeira com extensos relvados e cadeiras de baloiço onde qualquer estranho que passeie de máquina fotográfica a tiracolo na Main Street é imediatamente detectado. “Você só pode ser o Nuno, de Portugal!”, saudou alegremente Francis Mouillé II, presidente da Acadian Music Heritage Association, uma associação que defende a preservação da cultura acadiana ou cajun.
Church Point está situada geográficamente bem no meio do Cajun Country ou Acadiana, a região a sudoeste de New Orleans onde se estabeleceram os francófonos da Acádia (actualmente Nova Escócia, no Canadá) depois de em 1755 o governo britânico os ter expulsado. Apesar de em 1916, o Estado da Louisianna ter banido a língua francesa das escolas, a cultura de ascendência francesa, tem-se mantido e passado de geração em geração. Os seus expoentes máximos ou, pelo menos, as pontas mais visíveis do iceberg, são a culinária e a música cajun.
Contrariando tudo o que se fizera em 1916 para apagar os traços da cultura de origem francesa, o Estado da Louisianna criou em 1968 o CODOFIL (Council For The Development Of French In Louisianna). Ao mesmo que o CODOFIL lançava uma batalha para preservar a língua francesa, ou melhor, a sua versão cajun, músicos como Dewey Balfa, Nathan Abshire, D.L. Menard., Michael Doucet ou Zachary Richard começavam a tornar a até aí obscura música cajun exposta do grande público. O mesmo se passava com a mais ritmada versão negra da cajun, o zydeco, com artistas como Clifton Chenier, Rockin’ Doopsie e Boo Zoo Chavis.
Hoje, visitar Church Point é mais ou menos como estar no epicentro da música Cajun, se bem que ela esteja disseminada em clubes, casas e restaurantes de Crowley, Lafayette, Opelousas, Eunice, Ville Platte. “Bem vindo à terra da cajun music!”, saúda alegremente Francis Mouillé, ainda vestido com o fato de macaco com que trabalha. Meia hora mais tarde, já estamos a beber uma cerveja no alpendre de Francis, enquanto ele saqueia a sua propria colecção de cassettes cajun: “Toma esta, é fantástica! E esta também! E mais esta! You’re gonna love it!”
Seja no alprendre com cadeira de balouço de Francis Mouillé, na pequena loja de discos de Lee Lavergne ou no supermercado de electrodomésticos onde trabalha o músico Mister “Bee”, parece que há tempo para tudo. Os habitantes rodam as grandes viaturas americanas pelas ruas bem delineadas e acabam no único estabelecimento de comida da terra, um edifício baixo onde negras grandes, gordas e suadas servem “fried chicken” enquanto adolescentes de boné ao contrário na cabeça saem das suas pick-up truck para se servirem de gelo e coca-cola na máquina dos fundos.
Mister “Bee” recebe-nos no escritório de um estabelecimento de electrodomésticos. São duas da tarde e numa pequenina cidade da Louisianna, a essa hora, é pouca a clientela e muitos os amigos conterrâneos que vêm até ali dar dois dedos de conversa com “Bee”. Enquanto esperamos por ele, vão chegando homens, que invariavelmente se apresentam como músicos.
“Yeah, eu também sou músico”, explica alegremente Major Handy, um negro vestindo uma farda azul de camionista onde se lê Southland Truck Center, “conhece o Rockin’ Dupsee? Pois eu toquei guitarra na banda dele durante muitos anos. Agora, só toco aos fins de semana. Hoje é sexta-feira, vou tocar num restaurante aqui perto. Mas espere aí, fique com o meu cartão!”
O trajecto musical da família de Mr “Bee” é exemplar de como a música tradicional da região se propaga de gerações em gerações, sem nunca se perder. “O meu avô era acordeonista, a minha avó também. A minha mãe cantava e ensinou-nos hinos religiosos. Eu toco violino e steel guitar nos “Church Point Playboys”, o meu filho tem uma banda em Alexandria, o meu neto também toca. Às vezes, temos três gerações de músicos a tocar, lá em casa”.
Elton “Bee” Cornier, aliás “Mr Bee”, é uma das razões porque a música cajun se tem mantido tão forte junto dos jovens locais. “Nos anos 60, havia pouca gente a tocar acordeon, os donos dos estúdios diziam que a cajun estava a morrer e quem tocava eram os mais velhos, dos 45 anos para cima. Nessa altura, eu passei a tocar muito em bares. Um dia, um rapaz veio pedir-me que lhe ensinasse a tocar acordeon porque os antepassados dele também tocavam. Eu não fiz mais nada, levei-o comigo para o bar “Uncle Jake”, ele acabou por passar a tocar comigo. Os outros viram-no a tocar, vinham ter comigo para os ensinar a eles também e quando o primeiro teve de deixar a banda porque eu não tinha dinheiro para lhe pagar, arranjava sempre outro jovem para o substituir”.
Foi o “Mr Bee” que organizou pela primeira vez o “Cajun Music Day In The World” (O Dia da Cajun Music) e que criou o concurso de acordeon de Church Point. Logo da primeira vez, teve 15 jovens a concorrer. “Eu não os ensino ou não me limito a ensiná-los, eu levo-os comigo, ponho-os na minha banda, eles expoem-se ao público”. Uma vez, em Lewisburg, Mr Bee levou quatro rapazes com 18 anos a tocar na sua banda. “Não era suposto levar menores para um bar, tive de pedir autorização ao sherife local”.
Quando tentou gravar os seus jovens músicos, de maneira a que as rádios locais pudessem passar a sua música, nenhum dos quatro estúdios onde foi, os quis gravar. Disseram-lhe que a música cajun era coisa do passado. “Eu disse-lhes que estavam a cometer um grande erro. Montei um pequeno estúdio atrás de minha casa e é lá que gravo tudo”.
Quando visitamos o pequeno estúdio em madeira em pleno quintal da família Cornier, é com um ar embevecido que “Mr Bee” nos põe a ouvir uma cassete com a gravação de uma rapariga de oito anos que toca o acordeão quase como um adulto e canta com uma voz angelical. “Não tem uma voz fantástica?”
Lá fora, a balouçar com a nora numa enorme cadeira de balouço ao fim da tarde abafada da Louisianna, a esposa de “Mr Bee” conta-nos os seus progressos a acompanhar o marido com um triângulo de metal onde vai batendo sincopadamente com um ferrinho. “Tenho de treinar porque daqui a um mês, vamos todos tocar durante vários dias num cruzeiro pelas Caraíbas e tenho de estar preparada”.
A música está tão impregnada no modo de vida dos cajuns quanto a culinária, repleta de “crawfish” e caranguejo cozinhados com os mil e uns temperos da comida cajun. Aos sábados, em muitos bares do Cajun Country, que se estende como um círculo a partir de Lafayette, já se dança às 9h00 da manhã. Mas a música cajun traz à memória, também, recordações tristes e é muito usada em funerais.
“Um dia, a mulher de um amigo meu, que estava muito doente, chamou-me lá a casa”, conta “Mr Bee”, “Eu pensei que fosse algum problema com impostos e que quisessem que os ajudasse. Cheguei, ele estava deitado na cama a ouvir uma cassette. Perguntei-lhe: “Como é que estás?” Ele respondeu: “Estou bem, estou a morrer. Ouve, quero que tu vás tocar no meu funeral e vou-te dizer os músicos que eu quero que tu leves”. Eu disse-lhe: “Que disparate, tu não vais morrer...” Obrigou-me a prometer que não falhava e não falhei. Foi o primeiro funeral em que toquei”.
Uns cem metros do outro lado da Main Street de Church Point, a loja de Lee Lavergne é um pequeno estabelecimento de província, carregado de imensos singles de zydeco e cajun, fotos amarelecidas de bandas de cajun, velhos song books, guitarras penduradas na parede. Ali, dir-se-ia que o tempo parou. Uma negra entra na loja para saber se Lee tem uma ficha nova para o seu velho transístor. É numa pequena dependência atrás da loja que ficam os estúdios da Lanoir Records, uma salinha com um pequeno bar porque tocar zydeco ou cajun e não ter nada para beber não é possível. É ali que várias noites por semana Lee queima as pestanas a gravar inúmeras bandas regionais.
“Hoje em dia, já ninguém tem vergonha em dizer que gosta de cajun”, explica Lavergne, que sabe falar francês mas não consegue escrever nem ler. “Quando eu andava no liceu, uma rapariga não namorava comigo se soubesse que eu gostava de cajun. Era uma música conhecida como música dos pobres. Agora, a música cajun foi exposta e é vista como algo de grande pelos estudiosos. O mesmo aconteceu com os blues do delta do Mississipi”.
Agora, o som que Lee Lavergne se habituou a gravar tem vindo a mudar aos poucos. “Os jovens músicos, estão a mudar a música cajun, esta já não é tão tradicional. De tal modo, que hoje os velhos ouvem ainda a cajun tradicional e os novos ouvem a cajun mais moderna, que chamamos de “progressive cajun”. Eu gosto das duas, porque no fundo gosto de tudo o que seja criativo”.
Manter uma pequena editora discográfica especializada, como a Lanoir Records, não é fácil. “As multinacionais devoram tudo. Era mais fácil para mim quando comecei nos anos 60. Gravei muita coisa aqui no estúdio para outros. Agora, limito-me a fazer para a Lanoir Records e mesmo assim, dá muito trabalho. Já fiz um album em três horas mas na maior parte dos casos, levo umas dez horas a gravar e outras dez na mistura. Eu tento não ocupar mais de três noites por semana porque depois acaba por ser demais para os meus ouvidos.”
O que ajuda a rentabilizar um mercado tão pequeno e tão especializado, são os fãs que a cajun e o zydeco já conquistaram por todo o mundo. “Tenho um agente em Londres que distribui em Inglaterra, na Alemanha e na Holanda e depois, vendo para todo o mundo através de catálogo. Ainda há pouco tempo vendi muito material para o Japão”.
Andrew Jagneaux vive no fim da pequenina cidade, numa zona onde as moradias já se misturam com o campo a perder de vista e onde apenas uma placa dando as boas vindas à “buggy capital of the world” assinala o início e o fim da povoação.
Jagneaux, acordeonista auto-didacta dos “Church Point Playboys” é o único na cidade a construir os pequenos acordeons utilizados na música cajun. Na arrecadação, tem guardadas peças em madeira. “Estão à espera que o tempo esteja seco, para poder pintar”. Recebe-nos na mesa da cozinha, explicando à mulher: “Esta gente é das Honduras. Adoram a nossa música”. Pergunta a mulher: “Há muita música lá nas Honduras?”.
Meia hora de explicações geográficas mais tarde, relativamente esclarecido de onde fica Portugal, Jagneaux conta quando, em França, na IIª Guerra Mundial, o General lhe pediu que servisse de intérprete. “Eu não percebia nada, era como se fosse outra língua. O nosso francês é muito arcaico e tem muitas palavras inglesas misturadas”.
Passada a moradia de Andrew Jagneaux, fica o campo e a estrada leva-nos num pulo à I-10, onde camiões com a grelha da frente desenhada à maneira dos confederados provocam uma deslocação de ar à sua passagem. Para sul, ficam os bayous com os seus crocodilos e caçadores furtivos. Para oeste, em duas horas, está-se no Texas. Para leste, fica o Plantation Country de Baton Rouge, que uma auto-estrada sobre pilares erguidos por cima dos pantânos liga a New Orleans.
É fim de semana, deixamos a Louisianna em direcção a Beaumont, Texas e sintonizamos o rádio do Dodge Spirit à procura dos programas de cajun locais. Até que ouvimos um acordeon e uma voz cantar: “Oublie pas qu’on est Cadien/ Mais cher garçon, mais chére petit fille/ On était ici avant les Américains/ On sera ici après qu’ils sont partis/ Ton papa e ta maman étaient chassés de l’ Acadie/ Pour le grand craint d’ être Français/ Mais ils ont trouvé un beau pays/ Merci Bon Dieu pour la Louisiane”.

1 Comments:

  • At 10:50 da tarde, Anonymous Anónimo said…

    Great Blog! I also have a site about marinucci accordion
    . You can check it out at marinucci accordion


    Also, as a thank you for visiting my site, I'd like to tell you about a great site that is giving away a FREE DVD Camcorder! Just click the following link and enter your Zipcode to see if the promotion is available in your area!

    FREE DVD Camcorder

     

Enviar um comentário

<< Home