estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2005-09-05

Um dia de sábado a ouvir música no Avante 2005

São 15h30 de sábado e no grande Palco 25 de Abril, na Quinta da Atalaia, Seixal, Kaló, o vocalista e baterista da banda de Coimbra Bunnyranch canta um blues/ rock bastante decente para centenas de jovens que, na relva do recinto, resistem estoicamente ao calor e à falta de sombra. Muitos fazem-no à conta de grandes quantidades de cerveja, vinho e hashishe.
Na relva, há de tudo: jovens em tronco nú enviando água para cima uns dos outros, outros vestindo t-shirt de Che Guevara, raparigas de saias compridas e design oriental, trintões de lenço palestiniano na cabeça circulando de garrafa de vinho na mão e famílias, como aquela cujo pai embala, no auge do calor, a criança dentro do carrinho, em cima de uma grande bandeira comunista estendida na relva.
Os Bunnyranch parece terem bebido tanto da soul, funk, rithm and blues e country dos anos 60 e 70, que é um prazer viajar com eles no tempo. O som emanado do orgão de Filipe Costa parece saído de um daqueles discos gravados em Memphis pelos Booker T and The MG’s.
De qualidade de som e visão do que se passa em palco, é coisa de que não se pode queixar a plateia. O palco é enorme, as colunas de som potentes, e os ecrãs dão a quem chegue pela primeira vez ao perímetro relvado, total percepção do que ali se passa.
O público resiste estoicamente ao calor e a turba em frente ao palco aumenta quando tocam os multifacetados Primitive Reason. Uma bandeira de Cuba e duas grandes bandeiras de Che Guevara agitam-se em frente ao palco, de onde sai uma mescla de funk,hip hop, ao mesmo tempo que o vocalista grita à cantor de “death metal” e provoca as primeiras cenas de “mosh” (basicamente pulos e pontapés) na plateia mais atenta. No meio do delírio musical dos lusitanos Primitive Reason, até a “Internacional” é interpretada e distorcida em guitarra eléctrica.
“Pessoal”, grita o apresentador Cândido Mota, vestido com uma t-shirt com a cara de Che Guevara, “’tou a ver aqui muita gente de costas viradas para o palco. Vamos lá ouvir o som da Galiza!”
Quando os politizados Skárnio começam a tocar, uma bandeira dos nacionalistas galegos agitada entre a pequena multidão, percebe-se que de galego só a língua. Os Skárnio, tocam ska (vertente acelerada do reggae) entremeado por trechos de discursos de Fidel Castro e gritos de “viva Cuba independente” e “por uma Cuba independente e socialista. O ska dos Skárnio é tão repetitivo e monótono que a plateia agradece quando a banda se lança numa versão de “A message to you Rudy, a canção do jamaicano Lee “Scratch” Perry que os The Specials popularizaram em 1979.
O vocalista despediu-se a gritar que “a revolução faz-se na rua”, o dj colocou a voz saudosa e arrepiante de Zeca Afonso a cantar “Grândola Vila Morena”, muitos punhos ergueram-se em direcção ao palco.
A Brigada Vítor Jara e os seus convidados (Lena D’Agua, Janita Salomé, Tomás Pimentel, António Pinto e Cristina Branco) surgem na altura certa, quando o calor abranda e o Sol começa a baixar. Quando Janita Salomé homenageia Zeca Afonso com a “Ronda das Mafarricas”- “Estavam todas juntas, Quatrocentas bruxas, À espera À espera, À espera da lua cheia”- já um público mais velho se instala na relva e nas suas imediações.
A Brigada Vitor Jara dedica uma canção de embalar às crianças de Bagdad e às de New Orleans antes da voz de Cristina Branco nos afagar os ouvidos. É um fim de tarde melancólico, português quanto baste, o violino dialogando com a belíssima voz da fadista.
Depois de tanta melancolia lusitana, ninguém esperaria a autêntica homenagem indirecta a New Orleans prestada em palco pelo rithm and blues da enorme banda (dez elementos) que o guitarrista inglês Otis Grand trouxe ao Avante. Com ele, num magnífico banquete de soul, blues e boogie, estiveram o vocalista de Saint Louis Jimmy Johnson, a cantora blues de Chicago Deitra Farr e os fantásticos The Boston Horns. Pena foi que muita gente estivesse a jantar aquela hora ou, simplesmente à espera dos inevitáveis e incontornáveis Xutos e Pontapés. Otis Grand terminou com um boogie portentoso, ergueu a guitarra e beijou-a, tudo antes de surgir Cândido Mota e perguntar: “Quem é que nós queremos?” A multidão a uma só voz: “Os Xutos!”
A actuação acelerada dos Xutos & Pontapés juntou velhos e novos, crianças e idosas a cantar “Olá oh vida malvada” ou “Dá um mergulho no mar”numa multidão que extravasou o recinto. Alguma, pouca confusão, gerou-se à frente do palco, houve que socorrer alguns jovens algo maltratados mas, de resto, o rock dos Xutos tomou conta de todos. Quando se ouviram as estrofes de “a minha linda casinha” foi o delírio inter-geracional. Uma criança em cima de uma cadeira cantava a letra do princípio ao fim ao lado da avó, igualmente fã incondicional.
A noite fechou com os Clã. Muitos dos “xutomaníacos” debandaram, exaustos ou deixaram-se ficar a dormir na relva mas o recinto permaneceu cheio e entusiasta enquanto Manuela Azevedo cantava na noite morna sob uma luz azul de céu artificial que emanava dos ecrãs da Atalaia.
Nuno Ferreira

2 Comments:

  • At 11:48 da tarde, Blogger MDA said…

    Por falar em Bunnyranch... No resto da Europa, também há uns Wraygunn, um Legendary Tiger Man, uns bunnyranch e afins? Esta onda de revivalismo blues/soul também se vê no resto da Europa? É que se sim, gostava de conhecer essas bandas...

     
  • At 2:39 da tarde, Blogger NUNO FERREIRA said…

    força :)

     

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