estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2005-11-07

EXPLOSÃO NOS SUBÚRBIOS

Artigo publicado hoje no jornal britânico The Guardian e traduzido pelo Estradas Perdidas )

Os confrontos que varrem a França são o resultado de anos de racismo, pobreza e brutalidade policial

Naima Bouteldja, jornalista francesa
e investigadora do Instituto Transnacional

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No final de 1991, depois de violentos confrontos entre jovens e a polícia nos subúrbios de Lyon, Alain Touraine, sociólogo francês, fez a previsão: “Daqui a uns anos vamos assistir em França a uma maciça explosão social como a experimentada pelos americanos”. As 11 noites de violência consecutiva que se seguiu à morte de dois jovens muçulmanos de origem africana num subúrbio de Paris mostram que a visão negra de Touraine de uma França pós-colonial e guetisada, está agora sob os nossos olhos.
Clichy-Sous-Bois, o empobrecido e segregado subúrbio do nordeste de Paris onde os dois jovens viviam e onde a reacção violenta às suas mortes começou, era uma bomba relógio. Metade dos seus habitantes têm menos de 20 anos, o desemprego atinge os 40 por cento e os controles de identificação e assédio policial são uma experiência diária. Neste sentido, o que está a acontecer é apenas uma onda recente do que se tornou comum na França suburbana das últimas duas décadas.
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Liderados por jovens cidadãos franceses nascidos em primeiras e segundas gerações de comunidades imigrantes das antigas colónias francesas do norte de África, estes ciclos de violência são quase sempre provocados pela morte de jovens negros às mãos da polícia e depois inflamados por uma resposta contemporizadora por parte do governo. Quatro dias depois das mortes em Clichy-Sous-Bois, quando os líderes da comunidade estavam a começar a acalmar a situação, as forças de segurança atearam ainda mais o fogo esvaziando granadas de gás lacrimogéneo dentro de uma mesquita. A justificação oficial para a acção policial: um carro mal estacionado em frente à mesquita.
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Mas a forma como a situação se está a espalhar a outros subúrbios franceses não tem precedentes. Para Laurent Levy, um activista anti-racista, a explosão social não traz surpresas. “Quando é negado qualquer tipo de respeito a grandes fatias da população, o direito ao trabalho, o direito a decente alojamento, o que surpreende não é que os carros ardam mas que existam tão poucos levantamentos”, afirma.
A violência policial e o racismo são factores fundamentais. Em Abril, um relatório da Amnistia Internacional critica a “impunidade geral” com que a polícia francesa operava durante operações de identificação a jovens de origem africana. Mas a razão para a extensão e intensidade dos actuais tumultos foi o comportamento provocador do ministro do interior,Nicolas Sarkozy. Chamou aos jovens “vermes”, culpou “agentes provocadores” de manipularem a “escumalha” e disse que os subúrbios precisavam de ser limpos com “Karsher” (um líquido industrial usado para limpar a lama dos tractores). A postura de defesa da lei e ordem de Sarkozy é uma estratégia deliberada para satisfazer o eleitorado de extrema-direita no contexto da sua rivalidade com o primeiro-ministro Dominique de Villepin, que também ambiciona ser presidente em 2007.
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Como é que a França pode saír desta corrida política? Certamente ajudaria os ministros se deixassem de se referir aos subúrbios como “escumalha” e se Sarkozy fosse demitido: As falsidades que ele espalhou acerca dos acontecimentos que rodearam as duas mortes e a forma como enviou uma presença policial desproporcionada nos primeiros dias dos tumultos mostrou mais uma vez a sua incapacidade para o cargo.
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Um simples gesto de desculpa poderia fazer muito para distender as tensões para já. Na manhã seguinte ao envio de gás para dentro da mesquita, uma jovem muçulmana comentava: “Nós só queremos que eles parem de mentir, que admitam que o fizeram e que peçam desculpa”. Pode não parecer muito mas na França actual, requeriria uma transformação política profunda e o reconhecimento destes eternos “imigrantes” como cidadãos a tempo inteiro da República.
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