estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2005-11-04

CRIME NA COSTA

Costa da Caparica, manhã enevoada e chuvosa de quinta-feira, 3 de Novembro. Ali, naquele emaranhado de casas pequenas junto à estrada que liga a povoação à Fonte da Telha, quase não há vivalma. Um ou outro vizinho surge de dentro de um quintal ou de uma das muitas estradas de terra batida que ligam às hortas ou aos parques de campismo e comenta o triplo homicídio em casa dos Peralta."A gente aqui não deu por nada nem ouviu nada. Havia às vezes uma discussão ou outra, uma briga ou outra com o filho...", comenta uma de duas vizinhas. "Eu? Eu "tava a ver a bola, só quando apareceu a GNR é que me apercebi que se tinha passado alguma coisa", diz outro.
Os corpos de António Marques Peralta, 70 anos, Maria Rosa Pereira, 61 anos e Rosário Peralta, 39 anos, foram encontrados cerca das 20h de quarta-feira pela Tânia, a filha de 19 anos de Rosário, surpreendida por esta não ter ido buscar à escola a sua outra filha, de quatro anos.
As Terras da Costa formam uma planície fértil em hortas, espalmada entre a arriba fóssil e a estrada estreita que liga a Costa da Caparica à Fonte da Telha. António Marques Peralta, 70 anos, sempre ali viveu. Cultivava hortaliças, que a esposa Maria Rosa vendia no mercado. A morada de ambos é uma casa branca à beira da estrada, com um pequeno primeiro andar e dividida em duas. Do lado direito, acessível por uma porta de cortinas castanhas, vivia Rosário, 39 anos, a filha do casal Peralta, e a neta de quatro anos, fruto de uma relação conturbada com João, um morador na zona. Do lado esquerdo, vivia o casal. Por detrás da casa, uma longa estrada de terra batida liga aquela e outras casas baixas à extensa planície das Terras da Costa, que só termina na arriba. À frente, assinalada por uma placa, fica o parque de campismo da União Piedense. No Verão, aquela zona está apinhada de campistas. Agora é o vazio, a melancolia.
Nesta altura do ano são poucas as pessoas que vivem por perto e poucas as que se querem envolver na conturbada vida dos Peralta. De vez em quando, passa uma camioneta de caixa aberta carregando batatas ou hortaliças pela terra batida. Uma mulher vestida de preto passa por debaixo da fita amarela colocada no local do crime pela GNR, espreita pelos buracos abertos pelos vidros partidos na frente da casa e exclama: "Oh! É horrível, é horrível!"
De repente, pára um carro. Saem duas pessoas. "Somos da família mas não vivemos cá, não sabemos de nada, o senhor desculpe, não prestamos declarações." Passa mais uma meia hora. Desta vez, estaciona uma pequena camioneta de caixa aberta, de onde sai um homem de olhos lacrimejantes. É cunhado de António e traz consigo as versões que correm na Costa da Caparica.
"Ninguém acredita que o Dilinho [Idálio, o filho detido] fosse capaz de uma coisa destas. O Dilinho matar o pai? Então se ele era superamigo do pai e quem ameaçava o António Peralta era o genro..."
O "genro" é João, o pai da filha de quatro anos de Rosário. Os dois não viviam juntos, mas João aparecia com frequência e as discussões eram mais que muitas. O cunhado de António Peralta conta que dias atrás terá havido uma discussão, mais uma, entre João e os Peralta e que João os ameaçou de morte.
Chegam mais familiares dos Peralta. Um irmão de Maria Rosa já não tem tantas certezas: "Pode ter sido um dos dois, o Idálio ou o João. Ambos discutiam lá em casa. É verdade que o João os ameaçou há dias, mas o Adílio bebia e também discutia com a mãe e com o pai."
Os vizinhos que assistiram ao aparato policial e à intercepção de Idálio pela GNR também são uma fonte de interrogações. "Atão o Idálio mata os pais e a irmã, deixa a caçadeira e põe-se a andar de carro em frente à casa?", pergunta um. "E o João? Não viste como estava quando chegou a polícia? Estava descontraído..." As perguntas voam, duas mulheres encolhem os ombros. Uma delas diz: "Parece um sonho, não dá para acreditar..."