estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2006-12-05

O MONSTRO (CLICAR)

Pessoalmente, tive uma experiência muito civilizada com o
administrador quando se tratou de rescindir. O facto de ele mostrar
uma face mansa, educada e civilizada quando se senta à mesa contigo,
não atenua barbaridades do género "acreditem que já fiz isto noutras
empresas e com sucesso" ou "eles vão ter mesmo que saír" ou ainda
"todos os anos queremos renovar o jornal em dez a 20 pessoas".
A sua aparente civilidade não atenua a verdadeira e muito pouco
democrática intenção de fazer um jornal com um núcleo duro de
apaniguados e uma mole acrítica e submissa de recibos verdes. Estive,
por exemplo, em várias festas do jornal e nunca vi uma festa de
aniversário tão sombria e tão sinistra como a do ano passado. A
maioria dos jornalistas não foi e a sala estava desolada e vazia. A um
canto, no entanto, lá estava o administrador e o director rodeados dos
mesmos apaniguados que vão ajudar a gerir e a dirigir o novo (não
entendo como pode uma mesma pessoa presidir a uma segunda refundação)
jornal.
Nesse sentido, existe na realidade uma monstruosidade, da qual a face
mais visível é o executor, o convidador a rescindir. Pessoalmente,
vejo o administrador como o braço frio e metálico de um monstro criado
há muitos anos. A estratégia está agora a chegar aos finalmentes e a
doer a sério mas vem sido planeada há anos pela pessoa que dirige o
jornal desde 99. Portanto, Diana, na minha opinião o monstro existe.
O que se passa é que qualquer estratégia como a que está a ser seguida
no jornal, chame-se-lhe neo-liberalismo, fascismo, seja de esquerda ou
de direita, começa por uma primeira fase em que todos são atirados
contra todos, em que todos desconfiam de todos, em que se instala o
salve-se quem puder, em que se criam dificuldades e se incomoda quem
incomoda o líder. Ostraciza-se, rebaixa-se, minimiza-se, brinca-se com
os que não são apaniguados do líder. Vai-se enxugando a toalha,
apertando aqui, apertando ali, espremendo a casa. A toalha, tu sabes,
vem sido apertada há muito tempo e sempre nas mesmas pontas. Pinga
quem está nas margens, quem critica, quem quer ser quem é, quem quer
afirmar e dizer sem ter que o fazer no círculo dos eleitos.
Agora, depois de anos a enxugar as pessoas que não interessam, as que
têm a memória do que foi fundado e de como foi fundado, das raízes,
dos pilares, passou-se a uma segunda fase. Agora, é preciso que
ninguém se sinta seguro, que todos temam pelo seu lugar de trabalho,
que percam todo e qualquer laço de solidariedade entre si que não seja
o de obediência ao líder supremo.
Nesta fase, já não há solidariedade, já não há ajudas. Agora são os
feriados, amanhã será outra coisa qualquer. Eu decidi-me vir embora no
dia em que vi três colegas a um canto da sala a rir do pânico que se
instalou naquela sexta-feira de Setembro em que recebemos os
telefonemas a convidar-nos para a reunião de rescisão. Colegas a rir
enquanto outros choravam. Isso chama-se insanidade. O monstro criou
monstrinhos. Quando lhe atirarem à cara "Seu monstro!", ele pode
rir-se e dizer "então mas você comportam-se uns com os outros como
monstros, andam a passar a perna uns aos outros..."
A obra- de alienação do património humano que fundou o jornal, de
apagamento da memória colectiva, de destruição dos laços afectivos que
nos faziam termos orgulho em trabalhar uns com os outros- está feita.
A partir de agora, o jornal pode manter o mesmo nome mas já não é o
jornal porque lutámos e pelo qual nos sacrificámos. É outra coisa. É
um monstro.

TEXTO que eu comentei:

"Comichão de Trabalhadores"

"A sindicalista deslumbrante não estava assim tão deslumbrante quando, a meio de um texto sobre projectos urbanísticos aprovados pela autarquia de Lisboa por cima do traçado da terceira travessia do Tejo e da linha de ferrovia de alta velocidade, o telefone tocou, perto da hora do jantar, e a extensão que apareceu naquele seu instrumento de trabalho de quem era quase gémea siamesa era a do presidente do conselho de administração.
Nada a fazer e isto que sirva de lição à sindicalista deslumbrante: eram tempos difíceis, se não fossem tempos tão bizarros, aliás, ela nunca teria sido eleita, onde é que já se viu, uma sindicalista de direita e, ainda por cima, deslumbrante, eram tempos tão conturbados que já não restavam para amostra, sequer, ou para exposição atrás de grades com sinais evocativos para não serem alimentados, sindicalistas com patilhas e fartos bigodes, e assim sendo, a sindicalista deslumbrante acabou o texto, ainda teve tempo para sonhar acordada com uma torre miradouro da antiga fábrica dos sabões que conhecera graças aos delírios do Sá Fernandes, e teve que ir a correr para uma reunião informal e muito tardia com o presidente do conselho de administração, infelizmente, com o cabelo em desalinho e a precisar de uma lavagem urgente, que tinha sido adiada, naquele dia, por motivos imputáveis à botija de gás light da BP, que, alheia à vontade da sindicalista deslumbrante, tinha decidido ir desta para melhor, a meio do duche matinal.
E lá se sentaram, os dois únicos representantes dos trabalhadores que não estavam de férias ou folga, numa mesa redonda, e enquanto ela, com o seu cabelo num estado aceitável para a classe, mas totalmente repreensível para o estatuto de sindicalista deslumbrante, negociava mais quatro mil euros de indemnização para uma trabalhadora a quem tinha saído a lotaria de Natal, com uma rescisão amigável do contrato de trabalho no sapatinho, absorvia, ao mesmo tempo, tudo ao seu redor, procurava sinais de que o presidente do conselho de administração era um ser humano, e para além de anotar tudo numa agenda – o economato continuava trancado para cortar custos –, conseguia também mascar pastilha e encontrou ainda as provas que procurava: lá estava, na prateleira, junto à colecção dos Lucky Lukes, a moldura de acrílico e o retrato dos três filhos do presidente, que, sabe-se lá porquê, lhes confidenciou que a mulher tinha optado por ser mãe a tempo inteiro (e ela suspirou, sem saber se de pena, ou de inveja).
A sindicalista deslumbrante estava nisto, a saborear a sua primeira vitória, afinal o primeiro feriado de Dezembro ainda ia ser pago a dobrar, afinal, tinha valido a pena ficar sem voz durante três dias consecutivos, as mebocaínas, os mini comícios nos fumódromos e nos corredores, a empresa já não impunha, negociava, era bom, quase se esqueceu do cabelo por lavar, de não estar tão deslumbrante quanto seria desejável, quando lhe deu uma crise de urticária.
Era a comichão de trabalhadores.
O monstro não era o presidente do conselho de administração, era triste, mas não era ele, apercebeu-se ela, naquele instante: ele despedira 55 colegas da sindicalista deslumbrante desde Janeiro, ela não sabia e tentava adivinhar como é que ele dormia com isso, mas naquele dia, mais três pessoas tinham assinarado um papel que resumia o seu percurso dos últimos dezoito anos de vida em troca de um cheque, e, nos corredores, os outros, os que ficaram, os eleitos, exigiam pré-avisos de greve apenas porque lhes iam retirar a merda dos pagamento dos feriados a dobrar.
A sindicalista deslumbrante ouviu coisas do arco da velha e era aquelas pessoas que ela representava: despeçam lá quantos quiserem, mas não se atrevam a cortar-me o feriado, ouviu ela, ou, os que foram despedidos estavam mesmo a pedi-las, coisas que nem ela, sindicalista de direita ousara pensar, nos seus delírios neo-liberais. Um departamento inteiro daquela empresa ia ser extinto nos próximos meses e só se ouvia falar de greve por causa do pagamento dos feriados, era tão triste, era a natureza humana, o que é que a sindicalista deslumbrante estava à espera, mas quem é que, afinal, são os monstros?"
Diana Ralha