AMOR E MENTIRAS
Recordar Cândida Branca Flor
Quando a cantora Cândida Branca Flor foi encontrada morta no seu apartamento de Massamá, no dia 11 de Julho de 2001, alcançou irónicamente a paz que procurou sempre até ao fim. Repousou, algures nas nuvens, em tranquilidade. O mesmo não se pode dizer de quem lhe fez mal em vida. "Uns abutres", diz um amigo, dos verdadeiros.
Aldeia de Pêro Negro (600 habitantes), Sobral de Monte Agraço, sábado, 7 de Julho de 2001. São já duas da manhã. Há cerca de hora e meia que Cândida Branca Flor, aliás Cândida Maria Coelho Soares, 51 anos, é esperada ansiosamente no pavilhão do clube local por cerca de 50 a 70 indefectíveis que combatem o sono e o cansaço, depois da actuação de outros quatro artistas. Cândida vem de Montoito, Alentejo, onde actuou nessa mesma noite.
"A maioria das pessoas queria ver a Cândida", explica Vitor Magalhães, presidente do Clube Desportivo e Recreativo de Pêro. Cândida chega sem dar mostras de cansaço, canta "Quero voltar a ser feliz" e termina a comer bifanas, a beber uma coca-cola e a contar anedotas no bar do clube, de onde sai por volta das 4h00 em direcção a casa, em Massamá.
No dia seguinte, às 9h00, Cândida está a pé, pronta para rumar ao Alentejo com os amigos Maria da Luz e Rui Amorim e e visitar a mãe adoptiva de 91 anos, num lar de Moura. “Era de uma energia inesgotável”, comentam.
Apesar de todos os problemas económicos e pessoais que a acompanhavam permanentemente e não lhe davam descanso, apesar de todo o desgaste, traições, roubos, fraudes, apesar dos que a traíram, dos "amigos" que depois da sua morte dizem que era "fraca" ou "tinha mais popularidade que qualidade" porque Cândida, simplesmente, não aceitou dormir com eles. Apesar dos que telefonam para a editora a cobrar dívidas, dos que se dizem agentes de espectáculos e parecem engajadores de mão de obra barata, apesar de tudo, Cândida Branca Flor, não falhava um espectáculo. Queria voltar a ser grande, queria os aplausos do público, as luzes da fama.
Debilitada, jogara tudo, jogara forte no renascimento, na volta por cima. Com os últimos dez mil contos que recebeu da partilha da casa onde viveu com o ex-marido, pagou algumas dívidas e investiu o resto numa operação plástica e no último disco, “Amor e Mentiras”, que pagou do seu bolso, ainda tendo ficado a dever 500 contos ao produtor. Cândida estava, como afirma Manuela Bravo, “a renascer das cinzas, a remar contra a maré”.
Tudo em vão. Deficientemente distribuído, o disco mal apareceu nos escaparates. “Foi uma tremenda desilusão”, confessa a sua última grande amiga, Maria da Luz, “ela até fez uma festa quando viu uma cassete do “Amor e Mentiras” numa estação de serviço, no Alentejo”. Fora a última, a derradeira de muitas e devastadoras desilusões numa carreira que começara a construir 25 anos antes conjuntamente com o então marido Emanuel Rosado, que conhecera em 68 e casara em 1970.
Recuemos no tempo. Estamos nos anos 70. Emanuel é controlador de qualidade de uma firma que fabrica munições e Cândida é recepcionista numa empresa de materiais de construção. A voz de Cândida levam-no a gravar numa bobine temas escritos por si e cantados por ela. Emanuel leva a gravação à editora Melodia, sem sucesso. É então que conhecem no bar “Lousianna”, em Cascais, Nuno Rodrigues e António Pinho, que precisavam de uma voz feminina para a Banda do Casaco. Em 1975, Cândida grava com a Banda do Casaco, como Cândida Soares, ao mesmo tempo que explora já a música ligeira com “Fungagá da Bicharada” e “Exitos de Beatriz Costa”.
Sem qualquer ligação ao meio musical, Emanuel e Cândida aprendem à sua custa e com a ajuda em especial de Gabriel Cardoso.“As primeiras noções de show foram dele e a primeira aparelhagem de som também”, explica Emanuel, que cedo mostrou habilidade para empresário: “Numa Feira de Viseu, ela cantou como Cândida Soares com a Banda do Casaco e ganhou 200 escudos. A seguir actuou sózinha como Cândida Branca Flor e recebeu dez contos”.
Na altura, não existia a figura do agente. Ele assume esse papel e decide também que ela deve cortar com os vestidos compridos e os penteados muito artísticos da época e assumir uma imagem mais jovem, com roupas mais justas e mais exuberantes.
A vida dos dois passa a ser de inteira dedicação à causa. Emanuel é o maestro, Cândida a intérprete. Ele escolhe temas, roupa, penteado, até o calçado, trabalha o som e a luz, monta e desmonta tudo. Ela canta.
Os primeiros anos são de grande entrega. Cândida, que só largará o lugar de recepcionista em 1980, tem dias de chegar a Lisboa de um show na província às 8h30 e pegar no emprego das 9h00 às 19h00. O casal viaja e dorme num Mini com a aparelhagem dentro do carro, os camarins improvisados em casa de pessoas da terra onde actuavam.
Nos anos de estrada, Cândida e Emanuel, evidentemente, convivem com o universo artístico da altura, em concertos que chegam a juntar 5 ou 6 ao mesmo tempo, em restaurantes. Junto com Cândida, povoam os palcos e as estradas secundárias e esburacadas do Portugal dos anos 80, nomes como José Cid, Marco Paulo, Alexandra ou Herman José.
Cândida adora Carlos Paião, gosta muito de Gabriel Cardoso, faz amizade duradoura com Alexandra ou Manuela Bravo. Uma mulher reservada, algo melancólica ou mesmo triste na intimidade, é um Sol de boa disposição na presença dos colegas e amigos.
As mais variadas pessoas que a conheceram em fases diferentes da sua vida, comungam da mesma opinião. “Era uma querida”, diz Fernando Santos, produtor. “Era extremamente alegre, muito positiva”, afirma Maria da Luz, a grande amiga dos últimos anos.
A personagem melancólica de Cândida transformava-se em palco. “Renascia, era outra”, conta Sónia. “Tinha uma alegria e energia extraordinárias em palco”, diz o colunista social Carlos Castro. “Fora do palco, era a mulher mais triste do mundo”.
Em 1981, Emanuel e Cândida encontram Carlos Paião numa festa. Entre os que povoaram e marcaram a vida de Cândida, poucos o terão feito como Paião, que compôs propositadamente para ela.“O Paião era uma pessoa muito generosa, uma humildade e uma simplicidade ímpares”, afirma o ex-marido.
Em 79, Cândida concorre ao Festival da Canção com "Trocas e Baldrocas", de Paião e em 82, volta à carga com quatro temas de Paião. “Eu pedia-lhe coisas simples, “orelhudas” e ele fazia”, diz Emanuel. Em 83, concorre novamente e canta com Paião o tema “Vinho do Porto”.
A intensa dedicação à carreira que faz com que nunca gozem férias e Emanuel, alegadamente, não queira ter filhos, aliado ao profissionalismo do marido, co-produtor, agente, empresário, roadie, técnico de som e de luzes, começa a dar os seus frutos. Cândida faz uma média de 140 shows por ano, em Portugal e nas comunidades, com um pico de 35 concertos na época do Natal.
A voz de Cândida, no entanto, parece nunca ter explodido. A professora de canto Cristina de Castro, que ensinou a cantora durante dois anos, recorda: "Era uma voz muito bonita, com qualidades muito acima do tipo de canções que cantava. Tinha qualidades para enveredar pelo canto lírico". O produtor Fernando Santos concorda: "A nível de voz, ela estava no top mas era mal servida de reportório. Mesmo quando cantou na Banda do Casaco, era a meia-voz, sem explorar os agudos".
Em meados dos anos 80, o casal começa a sonhar em aplicar o dinheiro conseguido, primeiro num terreno onde construiriam vivendas geminadas com Paião, depois na Casa do Painho, nas Caldas da Rainha, que adquirem em 86. No Painho, recuperam uma casa antiga enorme e onde instalam ginásio, capela e anexos.
Quem privou com Cândida e Emanuel na casa do Painho, perto das Caldas da Rainha, recorda uma casa de sonho. “Era uma casa recheada de antiguidades, lindíssima, onde gastaram uma pequena fortuna”, recorda o radialista Rui Castelar. Cândida, diz agora Fernando Santos, produtor, nunca esqueceu as pessoas do Painho. "Falava muito delas, trazia-as no coração".
O ritmo intenso de shows provoca os primeiros desgastes. Em 88, Paião falece num absurdo desastre na estrada, a caminho de um espectáculo, o que afecta bastante Cândida. Os modos bruscos, exigentes e sem contemplações de Emanuel desgastam a relação, que piorou por não terem filhos. “Quando tive o meu filho mais novo, ela disse-me que gostava de ter filhos mas não dava por causa da carreira”, afirma Alexandra.
“Vivíamos a carreira a 100 por cento, 24 horas a dois, comíamos, dormíamos, viajávamos, tudo a dois. Era escravizante”, admite Emanuel Rosado.
Cândida começa lentamente a ressentir-se da asfixia a que parece estar sujeita. “Numa carreira profissional como era a dela", afirma Emanuel, " tem de existir disciplina, cumprimento rigoroso dos horários, entrega completa”. O casamento de 22 anos rebenta em Novembro de 1992 quando Cândida foge de casa em pijama, levando as jóias e queixando-se do que até ía omitira por amor próprio ou vergonha. Emanuel, afirmará Cândida até ao fim da sua vida, agredia-a física e psicologicamente e não a deixa ter filhos.
"Ela contava que ía para os shows toda negra", diz agora a cantora Maria Armanda. "Toda a gente do espectáculo sabia que ele lhe batia". Carlos Castro é da mesma opinião: “O marido perseguiu-a emocionalmente, ela queixava-se de maus tratos físicos e psicológicos”.
O ex-marido nega tudo: “Nunca ninguém viu uma nódoa negra, os amigos sabem que isso não é verdade, perguntem ao Carlos Ribeiro, ao António Sala, ao José Cid, ao Marco Paulo, a todos os que privaram connosco no Painho”.
O ex-marido conta que Cândida decidira outro rumo para a sua carreira, que esta foi influenciada a cantar jazz e que ele se opôs. “Tivemos uma violenta discussão, fui completamente radical sobre o jazz, propus-lhe fazermos férias pela primeira vez, ela não aceitou. Enviei-lhe flores, cartas, não quis saber”.
Quando sai de casa, Cândida é como um pássaro que sempre viveu numa gaiola posto de repente em liberdade. Inicia-se uma travessia no deserto. Cândida cantava e dominava um palco com energia e alegria mas não sabia fazer o resto: Conduzir, agenciar, tratar dos dinheiros, gerir, no fundo, uma carreira. “Ela nunca mais encontrou quem soubesse controlar a vida artística, foi sempre a caír”, diz Rui Castelar. Carlos Castro afirma que Emanuel minou a carreira de Cândida. “Ela queixava-se de que ele a perseguia e a boicotava”. Este nega tudo.
Enquanto se inicia um longo processo de divórcio litigioso de oito anos, seguido de um massacrante rol de processos e contra-processos, entrarão e sairão da vida de Cândida personagens cujo papel no descalabro emocional, profissional e financeiro da cantora, está longe de estar totalmente avaliado. Cândida passa a ser vista na companhia de um vidente, para mais tarde aparecer ligada por amizade a uma amiga, Ana Paula Reis, com quem viverá cerca de quatro anos e montará, inclusivamente, um ginásio na Ericeira, juntamente com um tal de Pedro.
A vivência na Ericeira marcará de forma definitiva Cândida Branca Flor. O Gimnocafé, "a menina dos seus olhos", onde inclusivamente é monitora, desabará, ao fim de uns anos, ao mesmo tempo que a sua vida pessoal. Pedro, o homem baixinho, careca e gordo, de quem ninguém se lembra agora do apelido, que chegava a apresentar como companheiro em múltiplas ocasiões, que vivia consigo e com Paula, desaparece, deixando um mar de dívidas.
Ana Paula engravida, tem problemas na gravidez e quer muito que Cândida partilhe com ela os momentos da maternidade. Cândida, por razões de foro íntimo, foge de Paula. A cantora Àgata recorda esse período: "Eu acho que ele era casado em Braga e tinha filhos. A Cândida vivia com ele e com a Paula. A Cândida ficou a dever dinheiro à Paula e desligava o telefone para não a ouvir. Tive muita pena da Paula, ficou sozinha com o bébé e queixava-se da ingratidão da outra".
Agata conta que esteve com elas num Natal em que encontrou Cândida deprimida. "A Paula teve de a ir buscar porque tinha bebido demais" e acrescenta: "A gente tem de perceber que não somos eternas...ela em termos de voz já lhe faltava qualquer coisa e queria mostrar um tipo de vida que já não podia ter. Até ficou a dever 900 contos numa boutique, na Ericeira. Coitada, veio por aí abaixo com uma pinta do caraças...".
Sem casa, devastada pela situação envolvendo Paula, pelo desaparecimento do sócio, pela perca do ginásio, assoberbada pelas dívidas dos leasings da carrinha de espectáculos e aparelhos do ginásio, Cândida procura alguém, mais uma vez, que a possa ajudar.
Esse alguém surge na pessoa de Fernando Santos, que produziu Lara Li, Midús e conhecia Cândida dos tempos da Polygram, quando entre outros trabalhos, tocava na banda Da Vinci.
Cândida encontra alguma tranquilidade na casa do produtor musical Fernando Santos mas, dormindo no quarto dos filhos do produtor, e repartindo fins de semana entre a Ericeira e a Buraca, decide procurar um apartamento. Fernando tenta que esta alugue um apartamento de três assoalhadas perto de si. A cantora aceita uma proposta mais barata de aluguer de um apartamento, perto do cemitério de Benfica, por parte de Irmão Caetano.
Quem é o Irmão Caetano? Uma figura imponente, grande cabeleira e vestindo de roxo, que se rodeia de incenso e imagens, o Irmão Caetano, 50 anos, está fixado em Benfica e criou em tempos a "Igreja Católica Cristã Nova Jerusalém".
Assume-se simultaneamente como "católico apostólico romano", como "vidente", cultor da Nossa Senhora dos Milagres e do Padre Sousa Martins e gosta de exibir as "chagas de Cristo" que lhe surgem todas as Quaresmas. Tentámos falar com o Irmão Caetano mas a "afilhada" disse-nos por duas vezes que ele "estava para fora" e "sem contacto".
Caetano parece ter conhecido Cândida Branca Flor num centro de estética. Propôs-lhe alugar um apartamento que tinha perto do cemitério de Benfica por uns módicos 50 contos e até lhe propõe trabalhar junto com ele num futuro lar para idosos da "Igreja".
No apartamento alugado a Caetano, onde havia uma divisão cheia de perfumes, orações e incensos, viver-se-ão alguns dos momentos mais difíceis de Cândida Branca Flor. “Eu achei que aquele não era o lugar certo para uma figura pública mas não pude fazer nada”, diz Fernando Santos.
A princípio, à cantora agrada a proximidade com o Centro Comercial Colombo, onde frequenta regularmente o ginásio e o centro de estética. As coisas pioram quando Cândida se apercebe das excentricidades do Irmão Caetano e mais tarde, quando esticando a sua resistência emocional, tem um novo envolvimento que fracassa.
Quando Emanuel se encontra com Cândida a 7 de Dezembro de 99, para assinarem o acordo judicial que põe termo à guerra jurídica de partilhas que os opôs a ambos, Cândida é uma mulher exausta, exangue. Aceita— era necessário o seu consentimento na justiça— a venda da Casa do Painho mas exige que esta seja feita por uma agência neutral e não por Emanuel. O ex-marido alega que tinha um potencial comprador que oferecia 40 mil contos mas que teve de aceitar a venda por 20 mil, metade para cada um.
Outro motivo de disputa é o recheio valioso em antiguidades da casa do Painho. No período conturbado de Novembro de 92 ao início de 94, Cândida acusa Emanuel Rosado de estar a retirar e a vender as peças mais valiosas da casa. Sabe-se que Cândida retirou parte e Emanuel outra parte e que o que resta, foi arrolado em tribunal em Fevereiro de 94 e finalmente dividido na justiça, por ambos, em Dezembro de 99.
Oficialmente uma senhora, figura pública alegre e muito elegante, é informalmente figura despretensiosa e simples. "Ela chegava sem maquilhagem", recorda uma esteticista,"e dizia: Não me tratem por Dona Cândida".
Era também “encantadora”, "simpática", "educada", “querida” e “generosa”: “A Cândida ajudou-me num momento difícil da minha vida”, afirma Carlos Castro. “Ajudou-me muito quando me separei, em 99, foi uma grande conselheira”, diz Manuela Bravo.
Interiormente, a cantora sofre horrivelmente. Um dia, teve uma crise de choro em plena perfumaria. “Olhou para mim e desatou a chorar”, conta uma esteticista, “fui buscar água, tentei acalmá-la e levei-a para o escritório para que ninguém a visse naquele estado”. Cândida desabafou. "Contou da violência doméstica, de quanto gostara do marido, das pessoas que se aproximaram dela. Perguntava-me como podia aguentar tanto sofrimento dentro dela, mantendo-se como figura pública, com um corpo fantástico”.
Totalmente desencantada com o meio artístico, Cândida procura pessoas desinteressadas e que não pertençam ao meio. É então que conhece a esteticista Maria da Luz, alguém que a ouve, que também vive sózinha e que, muito simplesmente, só quer a sua amizade.
Quando Cândida é posta fora do apartamento de Benfica, Mário Caetano diz a Maria da Luz: " Sou o diabo". Maria da Luz resgata a cantora, apresenta queixa na polícia para poder retirar os haveres de dentro do apartamento e leva-a para sua casa em Massamá. "Ela estava sem casa...", afirma Maria da Luz, sorrindo, , dois dias depois do funeral, "se você visse uma pessoa sem casa, não a levava para sua casa?"
Em Massamá, Cândida Branca Flor recupera. Maria da Luz cuida dela simultaneamente como uma filha e uma enfermeira. Sara-lhe as feridas, saem juntas, alegram-se, confidenciam. Quando Cândida decide fazer a plástica e no pós-operatório, precisa de ficar em casa, Maria da Luz cuida dela. Quando Luz tem uma gravidez atópica, Cândida fica muito preocupada. Cândida chama-lhe “sobrinha”, “Luzinha” e “bébé”, Maria da Luz trata-a por “tia”. A cumplicidade entre uma e outra é total. “Ainda nem sei onde está o meu cartão de crédito, acho que era ela que o tinha...”, diz Luz.
Estabelece-se uma relação quase de mãe e filha. “Dizia que ela era a filha que nunca pudera ter”, conta Rui Amorim, companheiro de Maria da Luz.“A Cândida foi a pessoa mais importante que conheci até hoje”, diz Maria da Luz.
Apesar de toda a ajuda prestimosa do "anjo" Luz, Cândida parece ferida de morte, uma montanha russa emocional. Fala a muitas pessoas em suicídio, em “timing de vida”, em ter “uma hora marcada”. À corista Sónia Henriques, com quem passou 15 dias nos Estados Unidos, em Fevereiro, Cândida confessa que estava farta de sofrer e que, mais tarde ou mais cedo, poria termo à vida.
No período em que vive em Massamá, os shows são poucos e Cândida sujeita-se a todo o tipo de agenciamentos, sem cachet fixo. A artista ressentia amargamente a nova vaga de cantores mais jovens, “sem valor algum”, que cilindraram comercialmente a sua geração.
Paradoxalmente, o público, parece não lhe regatear aplausos nos últimos concertos. “Estive em shows com ela em que o público sabia as letras todas e nos Estados Unidos, foi aplaudida de pé”, conta Luís Portela, cantor de Setúbal. “O público adorava-a”, diz Sónia Henriques, corista de Portela. Cândida, no entanto, parece já demasiado fragilizada. “Dizia que o público já não gostava dela”. Uma das coisas que a perturba são as mensagens obscenas que recebe com regularidade. O dinheiro esse, esvoaça. Já este ano, é obrigada a vender o carro e deixa quatro rendas do apartamento por pagar.
Apesar de amparada diáriamente por Luz, Cândida queixa-se de solidão. “Telefonava-lhe: Cândida, onde estás? E ela: Estou em casa, estou sózinha”, conta Portela. Sónia conta que Cândida falava que só tinha as plantas para conversar e que tinha de arranjar um animal de estimação.
Porque é que, tão mal financeira e psicologicamente, Cândida não pede ajuda aos amigos do mundo artístico, os verdadeiros? "Ela quando estava em baixo, isolava-se", comenta Alexandra no seu camarim do Teatro Politeama, em Lisboa. Há cerca de três anos, Alexandra e o marido, o empresário José Gaspar, encontraram-se com Cândida para a ajudar a reactivar a carreira. "Entusiasmou-se a princípio e de repente, afastou-se".
Hoje, várias pessoas sentem-se culpadas por não a ter ajudado. “Fomos amigos distraídos que não a ajudámos. Não foi suficientemente amada por nós”, afirma Aristides Teixeira, ex-apresentador de televisão, de quem Cândida foi madrinha de casamento. “O caso dela personifica o drama de outras pessoas do meio artístico que neste momento estão a passar o que ela passou. Há muita gente a sofrer, neste meio”.
Profundamente desiludida com muitas pessoas que a rodearam, Cândida não fuma, continua a ir ao ginásio e só recorre à bebida quando se encontra só, em casa. Bebe whisky ou gin e apenas usa calmantes para poder dormir. "Transportei a Cândida várias vezes para os espectáculos e privei com ela, nunca a vi apanhar uma bebedeira", afirma Luís Fernandes."Connosco", diz Sónia Henriques, uma corista que viajou com ela recentemente, "bebia água, quase sempre".Vários depoimentos confirmam também que Cândida era muito religiosa e “que pedia a Deus frequentemente”.
Os testemunhos sobre o que se passou na terça-feira, dia 10, são contraditórios. Rui e Maria da Luz dizem que estava previsto jantarem todos nesse dia com um empresário de Torres Vedras para este ajudar a relançar a carreira de Cândida e que este telefonou a desmarcar. Luís Portela, o cantor de Setúbal, diz que fazia anos nesse dia e que Cândida terá ficado desiludida por não ter sido convidada.
De concreto, só se sabe que misturou comprimidos e alcool e que foi encontrada morta no dia seguinte, por Maria da Luz. Todos os que lidaram de perto com Cândida ultimamente, não acreditam em suicídio. “Foi um acidente”, afirma Luz. “Tenho a certeza que foi um acidente, o coração não aguentou. Ela costumava tomar comprimidos e misturar com alcool, outras vezes. Quando mostrava intenção de se suicidar, telefonava”, diz Sónia. “Ela disse-me a mim que tinha uma data marcada para se matar e que só faria depois de deixar a Maria da Luz bem, ela adorava a Maria da Luz”.
A notícia abate-se sobre os artistas amigos como uma onda de choque. Alexandra soube antes de entrar em palco no Teatro Politeama para encarnar a “solidão” de Amália. Manuela Bravo estava na Ilha de São Jorge, nos Açores, a preparar-se para embarcar para a Ilha Graciosa. “Vou ter que a substituir dia 11 de Agosto, em Casa Branca e não sei como vou conseguir…”
Cândida faleceu no anonimato suburbano. O apartamento de Massamá onde finalmente atingiu a paz fica numa praceta, os rés-do-chão cobertos de grafittis, os edifícios de seis andares na monotonia do branco e castanho. A única nota de que a cantora ali viveu vem de um ramo de flores que alguém prendeu na janela de sua casa.
A princípio, o velório e o funeral prometem transformar-se num último exercício de solidão. Quase ninguém sabe que Rui Amorim e Maria da Luz estão a organizar tudo. A Agência Lusa noticia que o corpo está no Instituto de Medicina Legal e ninguém o quer. No IML, além de Rui e Maria da Luz, aparece Ana Paula Reis, a quem Rui explica que Cândida não desejava a sua presença e Lenita Gentil, que soube da notícia da Lusa.
Em frente à Igreja de São João de Deus, onde se realizará o velório, Madi, do ex-duo Sérgio e Madi, é o primeiro a chegar. Espera três horas pela amiga, flores brancas na mão: “São flores brancas, o nome dela diz tudo, aquilo era um anjo”.
Povoado de amigos, curiosos, jornalistas e simples oportunistas, o velório e funeral de Cândida transformam-se mais tarde num desagradável folclore. De todos os cantos, surgem "amigos". Um homem apresenta-se como “afilhado de baptismo”, uma rapariga como “filha”, um agente distribui cartões e diz "saber muitas coisas", o ex-marido é convidado a saír do velório por Rui Amorim. "Era a vontade da Cândida que ele e a Paula não estivessem presentes", explica Rui.
No dia seguinte, Emanuel Rosado afirma ter recebido duas chamadas ameaçando-o se fosse ao funeral. “Alguém dizia que me enchiam de pancada se lá fosse”. O funeral, uma feira de vaidades, esvazia por volta das 16h00. “Deixei que toda a gente saísse e por volta das cinco perguntei ao guarda onde era o talhão dos artistas e fui lá”, diz Emanuel.
Para Maria da Luz, o inferno dos últimos dias parece não ter fim. Todas as noites depois do funeral, o telemóvel toca, ela atende, ouve primeiro a cantora a cantar e depois uma voz a imitar Cândida como esta fazia todas as noites: “Bébé, boa noite”.
Cândida, essa, atinge finalmente em morte a paz que sempre procurou em vida. Quem sabia os pormenores da destruição de Cândida e não procurou ajudá-la, ainda vive. "Há pessoas do meio artístico que sabiam desta podridão toda e não a ajudaram. Como é que se levantam de manhã? De consciência tranquila? Devem precisar de comprimidos, como a Cândida", diz Aristides Teixeira. Quem lhe estragou a vida ainda vive. "Hão-de morrer com o que fizeram atravessado na garganta toda a vida. Ela está em paz, eles não estão", diz Fernando Santos.
Quando a cantora Cândida Branca Flor foi encontrada morta no seu apartamento de Massamá, no dia 11 de Julho de 2001, alcançou irónicamente a paz que procurou sempre até ao fim. Repousou, algures nas nuvens, em tranquilidade. O mesmo não se pode dizer de quem lhe fez mal em vida. "Uns abutres", diz um amigo, dos verdadeiros.
Aldeia de Pêro Negro (600 habitantes), Sobral de Monte Agraço, sábado, 7 de Julho de 2001. São já duas da manhã. Há cerca de hora e meia que Cândida Branca Flor, aliás Cândida Maria Coelho Soares, 51 anos, é esperada ansiosamente no pavilhão do clube local por cerca de 50 a 70 indefectíveis que combatem o sono e o cansaço, depois da actuação de outros quatro artistas. Cândida vem de Montoito, Alentejo, onde actuou nessa mesma noite.
"A maioria das pessoas queria ver a Cândida", explica Vitor Magalhães, presidente do Clube Desportivo e Recreativo de Pêro. Cândida chega sem dar mostras de cansaço, canta "Quero voltar a ser feliz" e termina a comer bifanas, a beber uma coca-cola e a contar anedotas no bar do clube, de onde sai por volta das 4h00 em direcção a casa, em Massamá.
No dia seguinte, às 9h00, Cândida está a pé, pronta para rumar ao Alentejo com os amigos Maria da Luz e Rui Amorim e e visitar a mãe adoptiva de 91 anos, num lar de Moura. “Era de uma energia inesgotável”, comentam.
Apesar de todos os problemas económicos e pessoais que a acompanhavam permanentemente e não lhe davam descanso, apesar de todo o desgaste, traições, roubos, fraudes, apesar dos que a traíram, dos "amigos" que depois da sua morte dizem que era "fraca" ou "tinha mais popularidade que qualidade" porque Cândida, simplesmente, não aceitou dormir com eles. Apesar dos que telefonam para a editora a cobrar dívidas, dos que se dizem agentes de espectáculos e parecem engajadores de mão de obra barata, apesar de tudo, Cândida Branca Flor, não falhava um espectáculo. Queria voltar a ser grande, queria os aplausos do público, as luzes da fama.
Debilitada, jogara tudo, jogara forte no renascimento, na volta por cima. Com os últimos dez mil contos que recebeu da partilha da casa onde viveu com o ex-marido, pagou algumas dívidas e investiu o resto numa operação plástica e no último disco, “Amor e Mentiras”, que pagou do seu bolso, ainda tendo ficado a dever 500 contos ao produtor. Cândida estava, como afirma Manuela Bravo, “a renascer das cinzas, a remar contra a maré”.
Tudo em vão. Deficientemente distribuído, o disco mal apareceu nos escaparates. “Foi uma tremenda desilusão”, confessa a sua última grande amiga, Maria da Luz, “ela até fez uma festa quando viu uma cassete do “Amor e Mentiras” numa estação de serviço, no Alentejo”. Fora a última, a derradeira de muitas e devastadoras desilusões numa carreira que começara a construir 25 anos antes conjuntamente com o então marido Emanuel Rosado, que conhecera em 68 e casara em 1970.
Recuemos no tempo. Estamos nos anos 70. Emanuel é controlador de qualidade de uma firma que fabrica munições e Cândida é recepcionista numa empresa de materiais de construção. A voz de Cândida levam-no a gravar numa bobine temas escritos por si e cantados por ela. Emanuel leva a gravação à editora Melodia, sem sucesso. É então que conhecem no bar “Lousianna”, em Cascais, Nuno Rodrigues e António Pinho, que precisavam de uma voz feminina para a Banda do Casaco. Em 1975, Cândida grava com a Banda do Casaco, como Cândida Soares, ao mesmo tempo que explora já a música ligeira com “Fungagá da Bicharada” e “Exitos de Beatriz Costa”.
Sem qualquer ligação ao meio musical, Emanuel e Cândida aprendem à sua custa e com a ajuda em especial de Gabriel Cardoso.“As primeiras noções de show foram dele e a primeira aparelhagem de som também”, explica Emanuel, que cedo mostrou habilidade para empresário: “Numa Feira de Viseu, ela cantou como Cândida Soares com a Banda do Casaco e ganhou 200 escudos. A seguir actuou sózinha como Cândida Branca Flor e recebeu dez contos”.
Na altura, não existia a figura do agente. Ele assume esse papel e decide também que ela deve cortar com os vestidos compridos e os penteados muito artísticos da época e assumir uma imagem mais jovem, com roupas mais justas e mais exuberantes.
A vida dos dois passa a ser de inteira dedicação à causa. Emanuel é o maestro, Cândida a intérprete. Ele escolhe temas, roupa, penteado, até o calçado, trabalha o som e a luz, monta e desmonta tudo. Ela canta.
Os primeiros anos são de grande entrega. Cândida, que só largará o lugar de recepcionista em 1980, tem dias de chegar a Lisboa de um show na província às 8h30 e pegar no emprego das 9h00 às 19h00. O casal viaja e dorme num Mini com a aparelhagem dentro do carro, os camarins improvisados em casa de pessoas da terra onde actuavam.
Nos anos de estrada, Cândida e Emanuel, evidentemente, convivem com o universo artístico da altura, em concertos que chegam a juntar 5 ou 6 ao mesmo tempo, em restaurantes. Junto com Cândida, povoam os palcos e as estradas secundárias e esburacadas do Portugal dos anos 80, nomes como José Cid, Marco Paulo, Alexandra ou Herman José.
Cândida adora Carlos Paião, gosta muito de Gabriel Cardoso, faz amizade duradoura com Alexandra ou Manuela Bravo. Uma mulher reservada, algo melancólica ou mesmo triste na intimidade, é um Sol de boa disposição na presença dos colegas e amigos.
As mais variadas pessoas que a conheceram em fases diferentes da sua vida, comungam da mesma opinião. “Era uma querida”, diz Fernando Santos, produtor. “Era extremamente alegre, muito positiva”, afirma Maria da Luz, a grande amiga dos últimos anos.
A personagem melancólica de Cândida transformava-se em palco. “Renascia, era outra”, conta Sónia. “Tinha uma alegria e energia extraordinárias em palco”, diz o colunista social Carlos Castro. “Fora do palco, era a mulher mais triste do mundo”.
Em 1981, Emanuel e Cândida encontram Carlos Paião numa festa. Entre os que povoaram e marcaram a vida de Cândida, poucos o terão feito como Paião, que compôs propositadamente para ela.“O Paião era uma pessoa muito generosa, uma humildade e uma simplicidade ímpares”, afirma o ex-marido.
Em 79, Cândida concorre ao Festival da Canção com "Trocas e Baldrocas", de Paião e em 82, volta à carga com quatro temas de Paião. “Eu pedia-lhe coisas simples, “orelhudas” e ele fazia”, diz Emanuel. Em 83, concorre novamente e canta com Paião o tema “Vinho do Porto”.
A intensa dedicação à carreira que faz com que nunca gozem férias e Emanuel, alegadamente, não queira ter filhos, aliado ao profissionalismo do marido, co-produtor, agente, empresário, roadie, técnico de som e de luzes, começa a dar os seus frutos. Cândida faz uma média de 140 shows por ano, em Portugal e nas comunidades, com um pico de 35 concertos na época do Natal.
A voz de Cândida, no entanto, parece nunca ter explodido. A professora de canto Cristina de Castro, que ensinou a cantora durante dois anos, recorda: "Era uma voz muito bonita, com qualidades muito acima do tipo de canções que cantava. Tinha qualidades para enveredar pelo canto lírico". O produtor Fernando Santos concorda: "A nível de voz, ela estava no top mas era mal servida de reportório. Mesmo quando cantou na Banda do Casaco, era a meia-voz, sem explorar os agudos".
Em meados dos anos 80, o casal começa a sonhar em aplicar o dinheiro conseguido, primeiro num terreno onde construiriam vivendas geminadas com Paião, depois na Casa do Painho, nas Caldas da Rainha, que adquirem em 86. No Painho, recuperam uma casa antiga enorme e onde instalam ginásio, capela e anexos.
Quem privou com Cândida e Emanuel na casa do Painho, perto das Caldas da Rainha, recorda uma casa de sonho. “Era uma casa recheada de antiguidades, lindíssima, onde gastaram uma pequena fortuna”, recorda o radialista Rui Castelar. Cândida, diz agora Fernando Santos, produtor, nunca esqueceu as pessoas do Painho. "Falava muito delas, trazia-as no coração".
O ritmo intenso de shows provoca os primeiros desgastes. Em 88, Paião falece num absurdo desastre na estrada, a caminho de um espectáculo, o que afecta bastante Cândida. Os modos bruscos, exigentes e sem contemplações de Emanuel desgastam a relação, que piorou por não terem filhos. “Quando tive o meu filho mais novo, ela disse-me que gostava de ter filhos mas não dava por causa da carreira”, afirma Alexandra.
“Vivíamos a carreira a 100 por cento, 24 horas a dois, comíamos, dormíamos, viajávamos, tudo a dois. Era escravizante”, admite Emanuel Rosado.
Cândida começa lentamente a ressentir-se da asfixia a que parece estar sujeita. “Numa carreira profissional como era a dela", afirma Emanuel, " tem de existir disciplina, cumprimento rigoroso dos horários, entrega completa”. O casamento de 22 anos rebenta em Novembro de 1992 quando Cândida foge de casa em pijama, levando as jóias e queixando-se do que até ía omitira por amor próprio ou vergonha. Emanuel, afirmará Cândida até ao fim da sua vida, agredia-a física e psicologicamente e não a deixa ter filhos.
"Ela contava que ía para os shows toda negra", diz agora a cantora Maria Armanda. "Toda a gente do espectáculo sabia que ele lhe batia". Carlos Castro é da mesma opinião: “O marido perseguiu-a emocionalmente, ela queixava-se de maus tratos físicos e psicológicos”.
O ex-marido nega tudo: “Nunca ninguém viu uma nódoa negra, os amigos sabem que isso não é verdade, perguntem ao Carlos Ribeiro, ao António Sala, ao José Cid, ao Marco Paulo, a todos os que privaram connosco no Painho”.
O ex-marido conta que Cândida decidira outro rumo para a sua carreira, que esta foi influenciada a cantar jazz e que ele se opôs. “Tivemos uma violenta discussão, fui completamente radical sobre o jazz, propus-lhe fazermos férias pela primeira vez, ela não aceitou. Enviei-lhe flores, cartas, não quis saber”.
Quando sai de casa, Cândida é como um pássaro que sempre viveu numa gaiola posto de repente em liberdade. Inicia-se uma travessia no deserto. Cândida cantava e dominava um palco com energia e alegria mas não sabia fazer o resto: Conduzir, agenciar, tratar dos dinheiros, gerir, no fundo, uma carreira. “Ela nunca mais encontrou quem soubesse controlar a vida artística, foi sempre a caír”, diz Rui Castelar. Carlos Castro afirma que Emanuel minou a carreira de Cândida. “Ela queixava-se de que ele a perseguia e a boicotava”. Este nega tudo.
Enquanto se inicia um longo processo de divórcio litigioso de oito anos, seguido de um massacrante rol de processos e contra-processos, entrarão e sairão da vida de Cândida personagens cujo papel no descalabro emocional, profissional e financeiro da cantora, está longe de estar totalmente avaliado. Cândida passa a ser vista na companhia de um vidente, para mais tarde aparecer ligada por amizade a uma amiga, Ana Paula Reis, com quem viverá cerca de quatro anos e montará, inclusivamente, um ginásio na Ericeira, juntamente com um tal de Pedro.
A vivência na Ericeira marcará de forma definitiva Cândida Branca Flor. O Gimnocafé, "a menina dos seus olhos", onde inclusivamente é monitora, desabará, ao fim de uns anos, ao mesmo tempo que a sua vida pessoal. Pedro, o homem baixinho, careca e gordo, de quem ninguém se lembra agora do apelido, que chegava a apresentar como companheiro em múltiplas ocasiões, que vivia consigo e com Paula, desaparece, deixando um mar de dívidas.
Ana Paula engravida, tem problemas na gravidez e quer muito que Cândida partilhe com ela os momentos da maternidade. Cândida, por razões de foro íntimo, foge de Paula. A cantora Àgata recorda esse período: "Eu acho que ele era casado em Braga e tinha filhos. A Cândida vivia com ele e com a Paula. A Cândida ficou a dever dinheiro à Paula e desligava o telefone para não a ouvir. Tive muita pena da Paula, ficou sozinha com o bébé e queixava-se da ingratidão da outra".
Agata conta que esteve com elas num Natal em que encontrou Cândida deprimida. "A Paula teve de a ir buscar porque tinha bebido demais" e acrescenta: "A gente tem de perceber que não somos eternas...ela em termos de voz já lhe faltava qualquer coisa e queria mostrar um tipo de vida que já não podia ter. Até ficou a dever 900 contos numa boutique, na Ericeira. Coitada, veio por aí abaixo com uma pinta do caraças...".
Sem casa, devastada pela situação envolvendo Paula, pelo desaparecimento do sócio, pela perca do ginásio, assoberbada pelas dívidas dos leasings da carrinha de espectáculos e aparelhos do ginásio, Cândida procura alguém, mais uma vez, que a possa ajudar.
Esse alguém surge na pessoa de Fernando Santos, que produziu Lara Li, Midús e conhecia Cândida dos tempos da Polygram, quando entre outros trabalhos, tocava na banda Da Vinci.
Cândida encontra alguma tranquilidade na casa do produtor musical Fernando Santos mas, dormindo no quarto dos filhos do produtor, e repartindo fins de semana entre a Ericeira e a Buraca, decide procurar um apartamento. Fernando tenta que esta alugue um apartamento de três assoalhadas perto de si. A cantora aceita uma proposta mais barata de aluguer de um apartamento, perto do cemitério de Benfica, por parte de Irmão Caetano.
Quem é o Irmão Caetano? Uma figura imponente, grande cabeleira e vestindo de roxo, que se rodeia de incenso e imagens, o Irmão Caetano, 50 anos, está fixado em Benfica e criou em tempos a "Igreja Católica Cristã Nova Jerusalém".
Assume-se simultaneamente como "católico apostólico romano", como "vidente", cultor da Nossa Senhora dos Milagres e do Padre Sousa Martins e gosta de exibir as "chagas de Cristo" que lhe surgem todas as Quaresmas. Tentámos falar com o Irmão Caetano mas a "afilhada" disse-nos por duas vezes que ele "estava para fora" e "sem contacto".
Caetano parece ter conhecido Cândida Branca Flor num centro de estética. Propôs-lhe alugar um apartamento que tinha perto do cemitério de Benfica por uns módicos 50 contos e até lhe propõe trabalhar junto com ele num futuro lar para idosos da "Igreja".
No apartamento alugado a Caetano, onde havia uma divisão cheia de perfumes, orações e incensos, viver-se-ão alguns dos momentos mais difíceis de Cândida Branca Flor. “Eu achei que aquele não era o lugar certo para uma figura pública mas não pude fazer nada”, diz Fernando Santos.
A princípio, à cantora agrada a proximidade com o Centro Comercial Colombo, onde frequenta regularmente o ginásio e o centro de estética. As coisas pioram quando Cândida se apercebe das excentricidades do Irmão Caetano e mais tarde, quando esticando a sua resistência emocional, tem um novo envolvimento que fracassa.
Quando Emanuel se encontra com Cândida a 7 de Dezembro de 99, para assinarem o acordo judicial que põe termo à guerra jurídica de partilhas que os opôs a ambos, Cândida é uma mulher exausta, exangue. Aceita— era necessário o seu consentimento na justiça— a venda da Casa do Painho mas exige que esta seja feita por uma agência neutral e não por Emanuel. O ex-marido alega que tinha um potencial comprador que oferecia 40 mil contos mas que teve de aceitar a venda por 20 mil, metade para cada um.
Outro motivo de disputa é o recheio valioso em antiguidades da casa do Painho. No período conturbado de Novembro de 92 ao início de 94, Cândida acusa Emanuel Rosado de estar a retirar e a vender as peças mais valiosas da casa. Sabe-se que Cândida retirou parte e Emanuel outra parte e que o que resta, foi arrolado em tribunal em Fevereiro de 94 e finalmente dividido na justiça, por ambos, em Dezembro de 99.
Oficialmente uma senhora, figura pública alegre e muito elegante, é informalmente figura despretensiosa e simples. "Ela chegava sem maquilhagem", recorda uma esteticista,"e dizia: Não me tratem por Dona Cândida".
Era também “encantadora”, "simpática", "educada", “querida” e “generosa”: “A Cândida ajudou-me num momento difícil da minha vida”, afirma Carlos Castro. “Ajudou-me muito quando me separei, em 99, foi uma grande conselheira”, diz Manuela Bravo.
Interiormente, a cantora sofre horrivelmente. Um dia, teve uma crise de choro em plena perfumaria. “Olhou para mim e desatou a chorar”, conta uma esteticista, “fui buscar água, tentei acalmá-la e levei-a para o escritório para que ninguém a visse naquele estado”. Cândida desabafou. "Contou da violência doméstica, de quanto gostara do marido, das pessoas que se aproximaram dela. Perguntava-me como podia aguentar tanto sofrimento dentro dela, mantendo-se como figura pública, com um corpo fantástico”.
Totalmente desencantada com o meio artístico, Cândida procura pessoas desinteressadas e que não pertençam ao meio. É então que conhece a esteticista Maria da Luz, alguém que a ouve, que também vive sózinha e que, muito simplesmente, só quer a sua amizade.
Quando Cândida é posta fora do apartamento de Benfica, Mário Caetano diz a Maria da Luz: " Sou o diabo". Maria da Luz resgata a cantora, apresenta queixa na polícia para poder retirar os haveres de dentro do apartamento e leva-a para sua casa em Massamá. "Ela estava sem casa...", afirma Maria da Luz, sorrindo, , dois dias depois do funeral, "se você visse uma pessoa sem casa, não a levava para sua casa?"
Em Massamá, Cândida Branca Flor recupera. Maria da Luz cuida dela simultaneamente como uma filha e uma enfermeira. Sara-lhe as feridas, saem juntas, alegram-se, confidenciam. Quando Cândida decide fazer a plástica e no pós-operatório, precisa de ficar em casa, Maria da Luz cuida dela. Quando Luz tem uma gravidez atópica, Cândida fica muito preocupada. Cândida chama-lhe “sobrinha”, “Luzinha” e “bébé”, Maria da Luz trata-a por “tia”. A cumplicidade entre uma e outra é total. “Ainda nem sei onde está o meu cartão de crédito, acho que era ela que o tinha...”, diz Luz.
Estabelece-se uma relação quase de mãe e filha. “Dizia que ela era a filha que nunca pudera ter”, conta Rui Amorim, companheiro de Maria da Luz.“A Cândida foi a pessoa mais importante que conheci até hoje”, diz Maria da Luz.
Apesar de toda a ajuda prestimosa do "anjo" Luz, Cândida parece ferida de morte, uma montanha russa emocional. Fala a muitas pessoas em suicídio, em “timing de vida”, em ter “uma hora marcada”. À corista Sónia Henriques, com quem passou 15 dias nos Estados Unidos, em Fevereiro, Cândida confessa que estava farta de sofrer e que, mais tarde ou mais cedo, poria termo à vida.
No período em que vive em Massamá, os shows são poucos e Cândida sujeita-se a todo o tipo de agenciamentos, sem cachet fixo. A artista ressentia amargamente a nova vaga de cantores mais jovens, “sem valor algum”, que cilindraram comercialmente a sua geração.
Paradoxalmente, o público, parece não lhe regatear aplausos nos últimos concertos. “Estive em shows com ela em que o público sabia as letras todas e nos Estados Unidos, foi aplaudida de pé”, conta Luís Portela, cantor de Setúbal. “O público adorava-a”, diz Sónia Henriques, corista de Portela. Cândida, no entanto, parece já demasiado fragilizada. “Dizia que o público já não gostava dela”. Uma das coisas que a perturba são as mensagens obscenas que recebe com regularidade. O dinheiro esse, esvoaça. Já este ano, é obrigada a vender o carro e deixa quatro rendas do apartamento por pagar.
Apesar de amparada diáriamente por Luz, Cândida queixa-se de solidão. “Telefonava-lhe: Cândida, onde estás? E ela: Estou em casa, estou sózinha”, conta Portela. Sónia conta que Cândida falava que só tinha as plantas para conversar e que tinha de arranjar um animal de estimação.
Porque é que, tão mal financeira e psicologicamente, Cândida não pede ajuda aos amigos do mundo artístico, os verdadeiros? "Ela quando estava em baixo, isolava-se", comenta Alexandra no seu camarim do Teatro Politeama, em Lisboa. Há cerca de três anos, Alexandra e o marido, o empresário José Gaspar, encontraram-se com Cândida para a ajudar a reactivar a carreira. "Entusiasmou-se a princípio e de repente, afastou-se".
Hoje, várias pessoas sentem-se culpadas por não a ter ajudado. “Fomos amigos distraídos que não a ajudámos. Não foi suficientemente amada por nós”, afirma Aristides Teixeira, ex-apresentador de televisão, de quem Cândida foi madrinha de casamento. “O caso dela personifica o drama de outras pessoas do meio artístico que neste momento estão a passar o que ela passou. Há muita gente a sofrer, neste meio”.
Profundamente desiludida com muitas pessoas que a rodearam, Cândida não fuma, continua a ir ao ginásio e só recorre à bebida quando se encontra só, em casa. Bebe whisky ou gin e apenas usa calmantes para poder dormir. "Transportei a Cândida várias vezes para os espectáculos e privei com ela, nunca a vi apanhar uma bebedeira", afirma Luís Fernandes."Connosco", diz Sónia Henriques, uma corista que viajou com ela recentemente, "bebia água, quase sempre".Vários depoimentos confirmam também que Cândida era muito religiosa e “que pedia a Deus frequentemente”.
Os testemunhos sobre o que se passou na terça-feira, dia 10, são contraditórios. Rui e Maria da Luz dizem que estava previsto jantarem todos nesse dia com um empresário de Torres Vedras para este ajudar a relançar a carreira de Cândida e que este telefonou a desmarcar. Luís Portela, o cantor de Setúbal, diz que fazia anos nesse dia e que Cândida terá ficado desiludida por não ter sido convidada.
De concreto, só se sabe que misturou comprimidos e alcool e que foi encontrada morta no dia seguinte, por Maria da Luz. Todos os que lidaram de perto com Cândida ultimamente, não acreditam em suicídio. “Foi um acidente”, afirma Luz. “Tenho a certeza que foi um acidente, o coração não aguentou. Ela costumava tomar comprimidos e misturar com alcool, outras vezes. Quando mostrava intenção de se suicidar, telefonava”, diz Sónia. “Ela disse-me a mim que tinha uma data marcada para se matar e que só faria depois de deixar a Maria da Luz bem, ela adorava a Maria da Luz”.
A notícia abate-se sobre os artistas amigos como uma onda de choque. Alexandra soube antes de entrar em palco no Teatro Politeama para encarnar a “solidão” de Amália. Manuela Bravo estava na Ilha de São Jorge, nos Açores, a preparar-se para embarcar para a Ilha Graciosa. “Vou ter que a substituir dia 11 de Agosto, em Casa Branca e não sei como vou conseguir…”
Cândida faleceu no anonimato suburbano. O apartamento de Massamá onde finalmente atingiu a paz fica numa praceta, os rés-do-chão cobertos de grafittis, os edifícios de seis andares na monotonia do branco e castanho. A única nota de que a cantora ali viveu vem de um ramo de flores que alguém prendeu na janela de sua casa.
A princípio, o velório e o funeral prometem transformar-se num último exercício de solidão. Quase ninguém sabe que Rui Amorim e Maria da Luz estão a organizar tudo. A Agência Lusa noticia que o corpo está no Instituto de Medicina Legal e ninguém o quer. No IML, além de Rui e Maria da Luz, aparece Ana Paula Reis, a quem Rui explica que Cândida não desejava a sua presença e Lenita Gentil, que soube da notícia da Lusa.
Em frente à Igreja de São João de Deus, onde se realizará o velório, Madi, do ex-duo Sérgio e Madi, é o primeiro a chegar. Espera três horas pela amiga, flores brancas na mão: “São flores brancas, o nome dela diz tudo, aquilo era um anjo”.
Povoado de amigos, curiosos, jornalistas e simples oportunistas, o velório e funeral de Cândida transformam-se mais tarde num desagradável folclore. De todos os cantos, surgem "amigos". Um homem apresenta-se como “afilhado de baptismo”, uma rapariga como “filha”, um agente distribui cartões e diz "saber muitas coisas", o ex-marido é convidado a saír do velório por Rui Amorim. "Era a vontade da Cândida que ele e a Paula não estivessem presentes", explica Rui.
No dia seguinte, Emanuel Rosado afirma ter recebido duas chamadas ameaçando-o se fosse ao funeral. “Alguém dizia que me enchiam de pancada se lá fosse”. O funeral, uma feira de vaidades, esvazia por volta das 16h00. “Deixei que toda a gente saísse e por volta das cinco perguntei ao guarda onde era o talhão dos artistas e fui lá”, diz Emanuel.
Para Maria da Luz, o inferno dos últimos dias parece não ter fim. Todas as noites depois do funeral, o telemóvel toca, ela atende, ouve primeiro a cantora a cantar e depois uma voz a imitar Cândida como esta fazia todas as noites: “Bébé, boa noite”.
Cândida, essa, atinge finalmente em morte a paz que sempre procurou em vida. Quem sabia os pormenores da destruição de Cândida e não procurou ajudá-la, ainda vive. "Há pessoas do meio artístico que sabiam desta podridão toda e não a ajudaram. Como é que se levantam de manhã? De consciência tranquila? Devem precisar de comprimidos, como a Cândida", diz Aristides Teixeira. Quem lhe estragou a vida ainda vive. "Hão-de morrer com o que fizeram atravessado na garganta toda a vida. Ela está em paz, eles não estão", diz Fernando Santos.
2 Comments:
At 1:44 da tarde, St. J. said…
Grande Nuno, aqui estou eu à espera do próximo post.
Não tenho comentários para este. Só creio que não devemos gastar muito tempo a 'restaurar' o passado..
Apetecia-me chamar-te umas quantas 'alarvidades', enquanto tomávamos umas bejecas e comiamos umas gambitas.
Vê lá se convidas para isso.. mas não.. nada.. sempre nas moitas, a passear o cão..!!
;))
Abraço Grande
At 1:21 da manhã, helena costa said…
bem que historia tao triste...
de facto os artistas sofrem muito, ha muitos que se suicidam... devia de haver um cuidado maior, ou uma entidade que os apoiasse.
beijinho para ti candida branca flor
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