estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2007-12-31

A ÚLTIMA NOITE DO ANO DE 1990

Passam dez minutos da meia noite. Lá em baixo, no Cais de Alcântara, barcos e sirenes da Lisnave acabam de assinalar o ano de 1991. No bar da Brigada de Trânsito, as patrulhas que sairão daí a pouco, aproveitam para retirar de uma mesa comprida, pedaços de Bolo Rei. “As patrulhas fixas já saíram, agora a nossa missão é ir aonde for preciso”, explica o Cabo Vitor Pessoa. Ele chefia uma equipa de 18 pessoas que estão espalhados em patrulhas fixas um pouco por todo o distrito.
À meia noite e meia, já Pessoa e o conductor Caria estão em plena portagem da Ponte 25 de Abril. Uma família, a avó, os pais e uma criança segurando uma boneca, atravessam a estrada por entre buzinadelas. Vêem com cara de poucos amigos. O que é que se passa? “Não se passa nada”, afirma a mulher mais velha, toda ela um misto de aborrecimento e cansaço, “só queremos é ir para casa”. O Cabo Pessoa apercebe-se de que algo mais se passara. “Foi só 1,85”, explica-lhe sorridente o colega de serviço no local. Refere-se óbviamente à taxa de alcoolémia medida pelo balão, cujo limite é de 0,50. O pai de família deixa-se ficar, a boneca debaixo do braço, o olhar ensonado e alcoolizado. A miúda já dorme nos braços da mãe. Todos parecem dizer: “deixem-nos ir para casa”. Esperam um táxi que os há-de vir buscar porque o condutor não pode conduzir mais essa noite.
O exame de alcoolémia é implacável. Caso acusem uma taxa superior a 0, 50, os condutores não podem mais conduzir. “Mas daqui a duas horas, se acusar já uma taxa inferior, mandamo-lo embora”, explica o cabo Pessoa. Por vezes, há também casos de faróis partidos ou de excesso de lotação. É um nunca acabar de autuações. Um fiat castanho traz o banco traseiro cheio de mulheres. “ Estavamos ali em Miratejo a ver televisão e eu perguntei se queriam ir a Lisboa ver o show do Terreiro do Paço. Quando lá chegámos já aquilo estava a terminar. Caramba, nestes dias não deviam parar a gente assim”, lamenta o condutor.


“Bebi aquela garrafa de vinho verde”


“O que é que tu bebeste?”, pergunta-lhe o amigo. “Bebi aquela garrafa de vinho verde e a cerveja com os camarões. Tu sabes que é verdade”. Depois, esforça-se por nos convencer: “É que eu tenho uma úlcera no duodeno e não posso beber muito”. O amigo parece quase divertido. “Será que te vão passar a multa? Eu bem te disse para passares mais daquele lado. Tinha um pressentimento de que nos íam mandar parar. Bom, se te passarem a multa, dizes ao teu pai”.
O condutor, um rapaz novo e desanuviado, tenta adivinhar os propósitos do guarda que, dentro da pequena guarita, preenche uns papéis. “Só se for por levar uma pessoa a mais. Ainda por cima, ali atrás é tudo família: a minha mulher e as minhas três irmãs”. Uma rapariga aloirada observa a conversa por entre o vidro. O guarda chega com uma multa de cinco mil escudos por excesso de lotação. “Vês? Sabes quanto ganhas-te?”, grita o amigo à rapariga, batendo no vidro. “Ganhas-te 5 mil!”
São duas da manhã, os foliões parecem ainda não ter saído das festas. Tudo decorre em aparente normalidade. Descemos já a auto-estrada em direcção ao Estoril, quando um farol de nevoeiro no máximo encandeia o carro da Brigada de Trânsito. “Tem o vidro partido, vem a encandear as pessoas todas, desligue lá os máximos”. O condutor não parece ter ganho para o susto. No fim de uma mini-perseguição, a viatura da GNR de luzes ligadas, o azul da sirene batendo-lhe no vidro traseiro, o homem não sabe o que dizer.



“Ainda não têm o radiador quente”


“Eu não bebo”, balbucia, “ sou hipertenso, só bebi um bocadito de champanhe. À refeição bebi àguas, de maneiras que...”. O problema principal é o farol. “Eu prometo que amanhã o mando já arranjar.” O Cabo Pessoa envereda por um tom paternalista: “Venha cá senhor Francisco, que idade é que o senhor tem? Setenta e quatro? Devia evitar guiar à noite. Já tem uma carta velhinha.” Quando se prepara para preencher uma ficha estatística, Francisco, reformado da marinha mercante, julga que lhe vai passar uma multa. “Eu só tenho é de pedir desculpa”. Não quer acreditar que não leva multa. “Mas senhor guarda, não há mesmo novidade nenhuma?” Pessoa não perde nunca a paciência: “Não, pode seguir.” Francisco relembra que à refeição só bebeu àgua. “Pode seguir...”
Às 2h30 da manhã, o trânsito da Marginal assemelha-se ao de uma Segunda-feira às 20 h00. Mas curiosamente, não se notam grandes manobras perigosas. “A rapaziada ainda não tem o radiador quente”, comenta Caria, com o seu indesmentível sotaque beirão. “Hoje, vêem todos devagarinho, estão cheios de medo”, diz Pessoa, quase desapontado.
Na estrada junto ao Alcoitão, vários guardas batem com as botas no chão enlameado para afugentar o frio das três da manhã. Desde há uns dez minutos que o Cabo Pessoa ergue aquilo que parece ser uma pistola em direcção aos automobilistas. É o radar, que retirou cuidadosamente de uma mala preta. “Aquele colega que vem ali vai caír, e se não caír vem a mais de 80”, diz Pessoa, de radar apontado. O mostrador marca 106.


“Mas eles vão aos beijinhos”


“Vai meter a boquilha na boca, sopra forte e prolongado”, explica mais tarde ao condutor. Quando termina o teste, pergunta: “Para onde é que você vai?” “Vou para o Alcoitão”, explica. “Ía para o Alcoitão, o teste marca 1,05, vai ter que deixar aqui o carro”.
A recta é propícia a excessos de velocidade e alcoolémia. “Eu já ando aqui há dez anos, uma vez cheguei a apanhar um a 150”, explica um sorridente Cabo Pessoa, “há ali uma boite e eles vêm por aqui para fugir ao nosso controlo na Marginal”.
Por vezes, o mostrador do balão mantem-se teimosamente no zero quando tudo parecia indicar o contrário. “Não, não bebi nada”, diz um rapazinho muito sério, que não parece ter os 18 anos que afirma ter. Alguns automobilistas reverenciam muito os agentes quando se chega à conclusão que não infringiram nada. “Mas está mesmo tudo em ordem?”, pergunta um, “então Bom ano, sim, bom ano.”
À nossa frente, segue agora um Citroen Visa muito devagarinho, que ora oscila para a esquerda, ora para a direita. É uma mulher que vai a conduzir. De repente, a luz dos faróis ilumina o vidro traseiro. “Oh”, exclama Caria, “mas eles vão aos beijinhos!” Vemos os dois ocupantes da viatura encostarem-se um ao outro e beijarem-se. Lá vai o carro em direcção à berma. “Ai a minha vida”, exclama Caria.
Quando finalmente são mandados parar, é uma jovem loira, alta, salto alto, mini saia realçando-lhe o traseiro, que responde às perguntas do Cabo Pessoa. “Não deu conta de que andava de um lado ao outro da estrada?”, inquire com alguma malícia. Ele parece algo ciumento, blusão de cabedal , o corpo franzino. “Olhe que ela não gosta de fotografias”, diz ao fotógrafo. Vinham de uma festa. O adiantado da hora— quatro da manhã- parece indicar que muitos começaram agora a abandonar os reveillons.


“Não vinha ninguém em cima de mim”


Mais adiante, já na estrada de Sintra, é uma carrinha Peugeot 504 que ziguezagueia. “Vêm abraçados”, desespera Pessoa, “é sempre a mesma coisa”. Um rapazinho imberbe, pullover verde, engravatado, explica que só bebeu um bocadinho de champanhe. Mas o problema não é esse.
“Sabe porque é que eu o mandei parar?”, pergunta Pessoa. “Não”. Pessoa: “é que pela luz refletida no vidro traseiro só se via uma cabeça”. “Só uma cabeça?”, pergunta o rapazinho, sorriso amarelado. “Sim, só uma”. “Ah”, responde, “é que ela vinha encostada ao assento com sono”. Pessoa não desarma: “a mim parece-me que ela vinha era encostada a si”. O rapazinho inquieta-se: “não, garanto-lhe que não”. Começa a mostrar-se aborrecido. Ela, pequenina, uma carinha de boneca, o casaquinho encarnado mal servindo de agasalho, tirita de frio. “Acha que eu conseguia guiar com alguém no meu colo?”, contra-ataca o rapaz, “garanto-lhe (enveredando agora por uma tom enfatuado) que não vinha ninguém em cima de mim”.
À medida que a hora avança, os rostos que nos observam das outras viaturas, espelham não só receio mas também muito cansaço. “Vêm todos de cabeça no ar, já lhes vai a dar o sono”, comenta o cabo da Brigada de Trânsito. Por vezes, tem de intervir perante a indisciplina de alguns. “Diga lá aos seus amigos do banco de trás para adormecerem e deixarem de o chatear”, aconselha a um jovem de 18 anos, de Setúbal, que confessara ter bebido “um Whisky”, “só um”.


A hora fatídica dos acidentes

O soldado Caria já sonha com uma bifana quente quando pelas 4h45 o rádio informa de um acidente em Alverca. Enquanto seguimos para lá, vão informando de outras ocorrências. “Agora é a hora deles, é o alcool, o sono, tudo combinado”, explica Pessoa. O GNR de serviço ao rádio informa que num acidente em Ílhavo, um condutor soprou 3, 95 no balão. “Tal era a borracheira daquele gajo!”
Em Alverca, um Ford equilibra-se em cima de um muro, a metade de trás quase a caír para o campo, a outra metade do lado da estrada. O Ford despistou-se, fez um pião e embateu na parte da frente de um táxi. O condutor estava alcoolizado. Resultado: cinco feridos, entre os quais o filho de dois anos do condutor, que fora cuspido com o embate. “‘Tava-lhe com uma vontade”, contava emocionado o guarda que tomou conta da ocorrência, “trazer uma criança daquela idade no banco da frente”.
Às 6h00 da manhã, predominam os grupos ensonados que vêm das festas. “Oh meu Deus”, comenta Caria, “aqueles levam cão e tudo”. Na ponte 25 de Abril, os guardas de serviço não parecem ter tido mãos a medir. “Passam-se dias quase sem autuações, hoje, era todos quantos mandassemos parar”. Um deles passou 25 multas.


“Eles hoje estão cheios de medo”


A última sessão da noite será junto à recta de Paço D’Arcos. “Meta o carro ali atrás da placa para eles dizerem que estamos escondidos”, aconselha o Cabo. Um automobilista para o carro junto à patrulha. “O senhor guarda é capaz de me dizer... aquele radar que têm ali adiante, qual é o limite?” Quando lhe dizem que é 100, respira de alívio. “Ah, ainda bem, eu ía a 80.”Mal ele se vai embora, o Cabo Pessoa não pode deixar de comentar: “Eles hoje estão cheios de medo”.
A luz do Sol ameaça já raiar sobre Paço de Arcos e o desapontamento é evidente entre os guardas. “Não pode ser”, comenta um, “eles vêm tão devagar hoje...” Outro pede ao Cabo: “Oh chefe, arranje lá um excesso de velocidade para mim”. Mas nada feito. O marcador do radar começa invariávelmente a descer mal os automobilistas se apercebem, ao dar a curva, que está ali a GNR. Alguns passam tão ridiculamente devagar que se tornam suspeitos. Surge uma carrinha norte-americana a pouco mais de 40 a hora. “Ele vem a balouçar, enche a estrada toda, manda-o parar”.
Sai lá de dentro um senhor em smoking, echarpe branca, tentando parecer sóbrio. Mas o balão atraiçoa-o: marca 1, 65. terá de ser o amigo corpulento, casaco com brasão, a guiar o carro. Mas fazem-lhe o teste e também acusa. Por fim, sai lá de dentro a esposa, uma senhora em traje de noite. Fazem-lhe o teste, é a última esperança dos dois homens. Terá de ir ela a conduzir. Mas também acusa. O cavalheiro não perde a calma. “Reconheço que vinha alcoolizado”, quase sussurra ao guarda, “mas apelo à sua flexibilidade. A minha mulher poderia conduzir...”
Já a luz de um novo dia irrompe sobre a praia de Santo Amaro quando regressamos ao quartel. Caria e Pessoa ainda terão de lavar a viatura. Já sonham com o pequeno almoço. “Hoje parece que o pessoal ouviu bem os conselhos”, comentava o nosso cabo.