estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2007-12-27

Pesadelo em Saint-Dennis

Nunca me senti tão estúpido. Porque é que não dei a morada do hotel ao motorista? Agora aqui estou eu ao gelo martirisante de Saint-Dennis, a perigosa, dois graus negativos a fazerem chorar os olhos e dou voltas e mais voltas e nada. Um rio, um neon, uma auto-estrada, carros cobertos de gelo. Viro uma esquina, duas, o Stade France aparece umas vezes à esquerda, outras à direita, como um gigantesco fantasma de metal, gelado, maligno. Quero o meu hotel! Na minha cabeça ainda ecoa "Because The Night" que o swing jazz do Caveau De La Huchette não apagou nem poderá apagar. O poder do gospel, do rock, da mensagem é mais forte e os decibeis também. O Sena parece um manto de água cinzenta gelada, cinzenta como as paredes destes viadutos, destas casas.
paris-cops
Un souvenir de Paris

De repente, dois carros da polícia. Seis polícias à minha volta. Tira tudo dos bolsos, dizem. Tenho que despejar os bolsos, a carteira com os cartões de crédito num banco de cimento. Quero tocar-lhe. "Ne touche pas!", grita um. Peço que me ajudem a encontrar o hotel. "Ça n'ai pas un taxi!" Mexem, remexem, conspurcam as minhas coisas. Eles são a lei, a ordem, La France de Sarkozy. Preparam-se para me abandonar como um cão, tudo espalhado pelo passeio quando peço a identificação a uma agente: "Tu veux quoi? Tu veux quoi? Je te donne la identication!" Empurra-me com a força de um animal enfurecido. As duas viaturas da polícia desaparecem na nuvem fria da noite e eu estupidamente estatelado no passeio. Vem-me à cabeça aquela canção dos The Clash ("Police On My Back") e o verso "what have I done?". Mas tenho de encontrar o hotel. O frio não dá tréguas. Choro de raiva, frio e frustração. De repente, um negro de bicicleta, finalmente alguém. Já pensava que em Saint-Dennis havia recolher obrigatório. "Ibis Stade de France Sud? C'est par la!" Continuo, ando nisto há mais de duas horas. De repente, um túnel, uma viatura escura, quatro homens lá dentro. Um deles, de cabelo grisalho, aponta-me uma lanterna à cara. "Por amor de Deus", explico, "vim de um concerto, só quero o meu hotel, ajudem-me a encontrar o hotel". É à direita, dizem. Desaparecem na madrugada negra do subúrbio com a mesma fúria repentina com que partiram. Devem ter pensado: "Porra, queríamos um magrebino ilegal e saíu-nos um turista português..."
Às 4h20 do dia 18 de Dezembro de 2007 chego finalmente à aquecida recepção do Ibis Stade de France Sud. Desabafo com o recepcionista, peço um cognac. "Saint-Dennis est chaud, savez pas?"