estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2004-04-29

No fim da linha

É como se estivesse suspenso sobre o abismo. Lá em baixo, emparedado entre desfiladeiros, o rio serpenteia, resvala e ressalta em pequenas cachoeiras. Na linha ferroviária do Tua, não há trecho mais belo. Chamam-lhe as “fragas más”. Em 1885, operários dependurados em cordas e empoleirados em pranchas britaram o patamar à força de dinamite.
A automotora sai de Mirandela com tanta lentidão que no pequeno caminho de terra que acompanha o comboio poderia facilmente seguir alguém a correr à mesma velocidade. Os choupos que bordejam o Tua são violentamente sacudidos pelo vento.
Na nossa carruagem, viajam umas seis ou sete pessoas. Uma professora, preparando as aulas com as folhas no colo, alguns estudantes e um estremunhado trabalhador agrícola que dormirá sempre, insensível aos desfiladeiros.
Raramente há casas ou povoações. A paisagem forra-se com as folhas amarelecidas e acastanhadas dos plátanos e os cachões turbulentos do Tua, onde por momentos a água castanha das enxurradas se transforma em espuma. De repente, aleluia! Uma vivenda em construção, toda em tijolo! À porta, um carro de matrícula suiça.
O comboio contorna as chaminés tristonhas do Complexo do Cachão e em Ribeirinha avistamos as últimas personagens do cenário do Tua: uma família que, debruçada sob as oliveiras, apanha azeitonas.
Desaparecem os campos e as fragas entalam o rio. A linha férrea encolhe-se num patamar sobre o Tua. Embora viaje constantemente à beira da ravina, os transmontanos que comigo partilham a carruagem não parecem muito intimidados. Conversam ou dormitam.
Sucedem-se apeadeiros e estações fantasmas, como Abreiro, Brunheda ou S.Lourenço. Nesta última, os vidros das janelas estão partidos e as paredes riscadas. Alguém acendeu fogueiras lá dentro.
Uma curva mais acentuada permite descortinar a trajectória do comboio ao longo da encosta. É como se uma faca imaginária ali tivesse cortado uma saliência. Quase nada nos separa do precipício. Não resisto e abro a porta da carruagem. A vista é de cortar a respiração. O patamar acaba logo ali e o leito xistoso do Tua surge logo em baixo, a 20 ou 30 metros. O apito do comboio ecoa ao longo do desfiladeiro...Thank you Lord Up Above!