estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2004-05-10

Melancolia pura ser lisboeta

É melancolia pura ser lisboeta, mesmo que por adopção como é o meu caso. Das ruelas estreitas atravessadas pelos eléctricos amarelos, soa de vez em quando um fadinho, a voz de uma mulher que estende a roupa e diz: "Oh António! oh António! Raios me partam o miúdo que nunca mais aparece!" E ouve-se a voz da vizinha das águas furtadas, lá em cima: "O António só te dá dores de cabeça, Maria. Mais valia entregá-lo de vez à mãe, ela que o crie!" A Maria segura uma mola da roupa entre os dentes, retira a mola e coloca-a no lençol branco. Só depois responde: "Mete-te na tua vida, Adelaide. Olha, o teu Anselmo está na taberna desde as 10h00 da manhã..." A vizinha das águas furtadas fecha a janela com estrondo. Ouve-se uma guitarrada ao fundo da calçada. Um velho dá três bengaladas secas na porta de ferro da entrada do eléctrico. Tudo em vão. "Ti Chico, já sabe que a entrada é lá em baixo, não posso apanhar clientes a meio do caminho!", diz o condutor, as mãos atentas à manivela. O eléctrico sobe, a rua cala-se, um canário agita-se numa pequena gaiola à passagem do carro. Uma nuvem escura em forma de abóboda esconde o sol que há segundos alumiara a calçada. Maria prescruta os ares, franze o nariz e a testa e pergunta-se se terá valido a pena estender o lençol. "Merda de tempo, sempre a mudar, tanto faz sol como faz chuva". Um vento frio, enregelado e húmido sobe lá de baixo do Tejo, ventilado pelo corredor formado pelas casas enfileiradas na colina. Ali perto, no miradouro de Santa Catarina, dois jovens amantes enrolam os corpos mais um pouco um no outro. Ela puxa o cachecol para a esquerda do pescoço e pergunta ao namorado, as bordas do casaco puxadas para cima: "Oh Manel, e se fossemos embora? Tá tanto frio..." Ele não responde. Sabe que a nuvem é passageira como aquele momento frágil e único que o mantem ali com a ex-namorada do melhor amigo. Mais um cacilheiro deixa o ancoradouro de Cacilhas e faz-se a Lisboa. Uma ponta de Sol lambe, timidamente o Cristo-Rei, lá na outra banda. Aos poucos, a luz estende-se, uma mancha de azeite morna e primaveril, sobre a margem sul, o elevador de Almada, a torre da Margueira. Não tarda nada iluminará aquele cacilheiro. "Vês", diz ele, "era uma nuvem, já passou...olha ali , o Sol já está ali nos telhados do bairro da Bica". Ela não parece muito impressionada. Olha Manel olhos nos olhos, inquieta, o cachecol encobrindo-lhe os lábios, as mãos enfiadas no casaco: "Tens a certeza de não estamos a fazer nada de errado? Estou com tanta pena do Vasco. E se ele sabe que eu ando contigo?" Um raio gordo de sol ilumina por fim o rosto de Manuel, que ri. Falta-lhe um dente da frente. Passa a mão direita pelos cabelos pretos e emaranhados. "O Vasco? Já está com outra nesta altura do campeonato. Vá, dá-me um beijo".
De uma janela de uma moradia vizinha, uma idosa espreita por entre o cortinado acinzentado. É a Dona Vitória, tem 78 anos e é viúva do senhor Marcelino, que tinha aquela mercearia nos fundos da Rua do Poços dos Negros. O Marcelino morreu há dez anos de uma estúpida queda nos degraus da moradia. A Dona Vitória vive só. Quiseram oferecer-lhe um gato mas ela não gosta do cheiro dos gatos. Fecha a cortina e liga a televisão. Um cantor de cabelo abrilhantado a gel, canta: "Lisboa, Lisboa, Lisboa mulher, Lisboa fadista..."
Oh Lisboa, Lisboa é pura melancolia…