estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2004-05-06

Lost Highways III

Não me lembro bem quando comecei a viajar, se foi no dia em que o meu pai comprou o grande e espaçoso Opel Kadett e iniciou peregrinações rurais e de fim de semana de Aveiro ao Luso— obrigando-nos a contar as bicicletas para não o chatearmos—, se foi quando aos quatro anos o acompanhei e à minha mãe de carro até à Suécia profunda, se foi a brincar com o volante de plástico de um amigo ou se de cada vez que abria a janela da casa de banho e escutava o som do comboio a fazer “trec, trec, trec”, a apitar junto ao cemitério e a entrar no túnel pelo qual abandonaria gloriosamente Aveiro. Só tinha tempo de abrir a janela a correr e ver, no espesso negro da noite, as luzes enfileiradas e em movimento das carruagens iluminadas. Viajar e a ânsia de, é algo de tão despretensioso que cabe a todas as classes sociais e etárias. Lembro-me do rapazinho de “Viagens com o Charley” de Steinbeck, observando uma carripana que daria a volta aos Estados Unidos e onde ele nunca poderia ir; Lembro-me de Paul Simon a cantar “The sound of the train in the distance”, do formigueiro nos pés que cada vez que saíamos de Aveiro às três da manhã para poder atingir Lagos às 11h00 e fugir ao trânsito de Lisboa, atafulhados com todo o tipo de panelas, tachos e sacos-cama. Uma vez o carro— um Citroen GS azul que subiu os Apeninos e se desfez em fumarada num vale tão afortunado que tinha um restaurantezinho de estrada ali mesmo— começou a largar fumo perto da Mealhada e eu pulei por cima dos meus irmãos na fuga mais rápida de dentro de uma viatura. Descobri cedo que as melhores jornadas, são as perdidas e nunca programadas, aquelas em que nos achamos a milhares de quilometros de casa, sem eira nem beira, a procurar uma justificação madura para estarmos ali. O local de fixação transitória pode ser um lago gelado dos Pirinéus, o chão da estação ferroviária de Copenhaga, uma estrada infestada de bandidos “maconheiros” em pleno sertão do Pernambuco, uma viagem de 35 horas descendo os trópicos do sul da India ou uma tasca de uma aldeia desertificada na estrada da Beira, onde terminamos a beber uma Sagres e a falar de futebol com dois velhos que jogam dominó numa mesa. Viajar começa por ser um capricho, transforma-se num vício e termina em necessidade. Há por aí muitas estradas ocultas e perdidas, que o Sol de Deus parece nunca ter alumiado e que a minha mochila me pede que eu conheça, os pés em formigueiro. Como me perguntava uma vez a minha mulher, os dois deitados lado a lado: “Tu não estás aqui pois não? Estás aonde?”