estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2004-05-03

O minuto 87 e o golo que caíu do Céu

Aquele golo veio do nada, do Céu porventura. Quero dizer, estavamos todos a voltar a acreditar um bocadinho, é certo. O Tiago, muito debilitado, ainda tivera um fogacho efémero em frente à baliza do Ricardo, o Fernando Aguiar entrara pela grande aérea como um caterpillar aos ziguezagues e quase punha a bola lá dentro...Mas a malta desanimava. Um frio mais outonal que primaveril sacudia-nos as costas. Um homem, ao meu lado, ía até a uma zona gradeada a verde onde, sempre que o Sporting marcava um canto, se colocava aparentemente a observar o prédio em frente. Não queria ver. Eu vi tudo. Cada defesa do Moreira, cada arrepio, cada soluço. Quando o Moreira socou aquela bola para cima da trave, os rostos brancos à minha volta pareciam retirados de um frigorífico. Colocavam-se as mãos ao céu, batia-se com os pés nas cadeiras. Praguejava-se. No futebol pragueja-se muito: "Foda-se", " Vai caralho", " Filho de uma grand'a puta!", "foi falta, cabrão! Um membro da claque "Diabos Vermelhos" batia ruidosamente com o pau da bandeira no assento em frente. Poucos permaneciam sentados.
E de repente, foi uma luz, um relâmpago, foram segundos que mediaram entre o tédio e a euforia total. É difícil descrever o que um pontapé fulminante e de fora da rua pode fazer a umas duas mil pessoas vestidas de encarnado cercadas de verde por todo o lado. O golo foi demasiado bonito e arrebatador, um misto de pura arte e tiro certeiro. Quando terá durado aquele momento? Quando tempo mediou o simples movimento do Geovanni a preparar a chuteira e o pormenor delicioso da bola a entrar no canto direito, o Ricardo estirado inútilmente e sem glória? Não sei. Só sei que tudo o resto foi e é felicidade pura. Não se pensa, não se raciocina, pula-se, abraça-se quem está ao lado, há quem se atire para o chão, as goelas abertas, os braços em posição de Cristo: "Goooooooooolo!!!! Foi golo, caralho! Foi golo!" De repente, somos todos irmãos naquela bancada, todos da mesma família. Abraço um fulano de blusão de ganga mais alto do que eu uns 10 centímetros que nunca vira na vida. Há três homens engachados num abraço fraternal, bem ao meu lado, enquanto pulam como crianças. De repente, somos todos crianças. Os jogadores correm para festejar connosco, com a família, que sim, nós somos a sua família, o seu clã de indefectíveis, vestindo as suas cores e gritando o seu nome. Os olhos lacrimejam, vejam lá, por causa de uma bola, de uns segundos. E, tal como chegou, a euforia assenta feita poeira e olhamos os de lá, os de verde, a outra família. Há crianças com cara de quem lhes acabou de roubar o jogo de Game Boy, olhando para os pai que olha para o céu, triste e carrancudo. Há homens que se levantam e começam a abandonar o estádio. Homens e mulheres vestidos de verde e branco deixam-se ficar sentados, entre o pasmo e a assunção da realidade, impotentes perante a verdade, a crueldade do placard electrónico que marca: Sporting-O-Benfica-1.
Cá do nosso lado estamos felizes. Agradecemos. Afinal, o golo caíu-nos do Céu aos 87 minutos. Foste tu, Feher?