estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2004-09-24

Ben Harper às 8h00 da manhã

A primeira vez que eu sentira algo de especial no Ben Harper fora em Novembro passado, no Pavilhão Atlântico. Tinha passado por mim um daqueles dias de neura enevoada no cérebro, irritação na espinha dorsal e dor na nuca que nem um passeio cinzento à beira mar aliviara. Alguém me pedira para escrever sobre o concerto dele nessa noite e eu aceitei entre a relutância e a satisfação de ter algo com que cortar o tédio de um sábado monótono. Fui para o Pavilhão Atlântico sem expectativas. Nunca assistira a um concerto dele e o disco duplo ao vivo que guardara na prateleira, em casa, não fora suficiente para me prender nem ao homem nem à mensagem. Nessa noite, foi diferente. Não é todas as noites que se sente uma ambiência especial num pavilhão lotado, qualquer coisa que nos faz dizer que as pessoas à nossa volta estão felizes, agradadas. No fim do concerto, não era difícil perceber porquê. O Ben Harper e a sua slide guitar transportam consigo uma tranquilidade que só pode estar próxima de Deus. Seria exaustivo e idiota tentar descrever a aura que, me parece, ele traz consigo e dá aos outros. Cada qual é livre de interpretar as coisas à sua maneira.
Esta manhã, calhou-me na rifa mais uma tarefa relutante: Falar pelo telefone, às 8h00 da manhã, com um Ben Harper cansado e pouco dado a entrevistas, sentado, suponho, algures em Los Angeles à meia-noite local. Disse-lhe que estava ensonado e que acordara há pouco tempo. Ele disse-me "Okay, então vamos ter uma conversa lenta". Depois, procurei o que sabia complicado, falar com ele da religião que exala por todos os poros do último álbum "There Will Be a Light" sem que o incomodasse. E então, ele explicou que não estava a dar entrevistas a ninguém sobre o tema e que fizera essa excepção com Portugal, porque mantinha uma relação especial com o nosso país. "Não estou a dar entrevistas sobre este disco, imagina ter de explicar dez vezes ao dia o que lhe estou a explicar a si..."
E o que me explicou é que escreve sobre Deus ou sobre Jesus ("Picture of Jesus") sem querer impingir Deus a ninguém. "O disco foi feito num contexto cristão porque foi gravado com os Blind Boys Of Alabama mas procurei ser muito cuidadoso com ele. Procurei fazer um gospel que não excluísse nenhuma cultura ou nenhuma religião e quando falo de Jesus, falo da imagem que tenho dele, não estou a dizer às pessoas que o sigam".
O que mais impressiona, no entanto, é a tranquilidade e a educação- "obrigado por tirar um bocado do seu tempo para falar comigo"- que transparece do outro lado da linha. Mais uma vez, tal como naquele dia enevoado e frio de Novembro passado, no Pavilhão Atlântico, senti algo de muito reconfortante e amigo a emanar daquela voz pausada. Se o homem e a sua slide não estão próximas da luz divina, parecem estar ou querer estar. Quem dera poder ser como o Ben Harper ou escrever como ele escreve, extirpar todo o ódio, ressentimento, rancor e inveja que nos tolda a visão e nos envenena o coração. Resta a consolação de que no fim, existe alguém para nos perdoar todos os passos em falso, os disparates, as ofensas, os defeitos, a caricatura idiota em que por vezes nos transformamos. "Where could I go but to the Lord?" (Ben Harper, no álbum "There Will Be A Light".