estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2005-09-11

DEBAIXO DE ÁGUA


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I- Música de New Orleans: Cenário de Pesadelo

Quando a lenda do rithm and blues Fats Domino foi dado como desaparecido nas águas turbulentas que invadiram New Orleans, o mundo musical- fãs, músicos, compositores, jornalistas- acordaram para aquele que, de repente, se erguia como um cenário de pesadelo.
Não só uma cidade ícone da música popular norte-americana estava debaixo de água, juntamente com os seus clubes míticos e os seus estúdios de gravação, como se temia pela vida de muitos dos seus artistas. Nos dias terríveis que se seguiram à passagem do furacão "Katrina", uma enorme angústia apoderou-se dos amantes da música da "Crescent City".
A cidade que deu ao mundo nomes como Louis Armstrong, a cantora gospel Mahalia Jackson, o pioneiro do jazz Jelly Roll Morton ou, mais recentemente, o trompetista Wynton Marsalis, desvanecera-se nas águas, como na premonitória canção “Louisianna 1927” do cantor Randy Newman.
“Six feet of water in the streets of Evangeline/ The river rose all day/ The river rose all night/ Some people got lost in the flood /Some people got away alright / Louisiana, Louisiana/ They’re tryin’ to wash us away…”, canta Randy Newman, que todos associam a Los Angeles mas nasceu na “Big Easy”.
A primeira sensação, para muitos, foi de choque, de impotência. "Sinto-me completamente impotente", explicava Jon Foose, um dos autores do livro "Up From The Cradle of Jazz", uma obra que aborda o impacto da música da cidade após a IIª Guerra Mundial. "Continuo a pensar nos músicos, no Fats Domino, no Gatemouth Brown (blues), no Walter Washington (rithm and blues), tantos grandes nomes. Estarão seguros?"
New Orleans representa tanto para tanta gente pelo mundo fora que as cicatrizes da catástrofe irão, concerteza perdurar, durante muito tempo. Com os sons do jazz, o blues, o cajun ou o zydeco transpirando dos bares para as ruas quentes, húmidas e estreitas do French Quarter, confundindo-se com os cheiros enebriantes da comida creoula ou cajun dos restaurantes, New Orleans era uma festa.
Numa noite, na turística Bourbon Street, era possível escutar num bar a energética banda de cajun Mamou a espalhar alegria através dos seus violinos e acordeões, escutar o blues do músico cego Bryan Lee a cantar para meia dúzia de turistas e ouvir, noutro bar, um frenético zydeco, um dos músicos acentuando o ritmo frenético do acordeão esfregando uma colher na “washboard” ( tábua de lavar metálica).
Enquanto Chicago está definitivamente identificada com o jazz e o blues, Nashville com a música country ou Boston com a música folk, o que seduzia em New Orleans era a quantidade de géneros musicais diferentes, a mistura cultural de sons. A “Big Easy” produziu e produzia jazz, blues, cajun, zydeco, swamp pop, rithm and blues, tudo numa mescla inigualável em qualquer outra cidade norte-americana.
“Eu vivi em Nova Iorque, São Francisco, Austin e Atlanta. New Orleans, na minha opinião, a nível musical, está acima de todas elas e espero que um dia volte a ser o que foi”, afirma Mark Samuels, co-fundador da editora Basin Street Records, sediada na Canal Street.
Descia-se à Lousianna para, envolvidos no bafo quente e húmido do Golfo do México, ouvir a melhor música do mundo, conhecer alguns dos bares e clubes mais vivificantes do planeta e fazer amigos.
Fosse na Decatur Street ou na Jackson Square, por entre as portas abertas de bares e restaurantes, as ventoinhas sempre a rodar, por entre os pintores de rua, os leitores da mão, as brass bands ruidosas, New Orleans seduzia-nos, envolvia-nos, colava-se-nos ao corpo.
A cidade era amada e cantada como poucas. Fats Domino cantava as saudades de casa em “Walking to New Orleans”. A cantora Lucinda Williams celebrava o regresso à cidade onde vivera em “Crescent City”: “I can hardly wait until I can hear my zydeco and laissez le bon temp rouller and take rides in open cars/ my brother knows where the best bar are/ Let’s see how these blues’ll do in the town where the good times stay”.
Apesar de carregar sobre os ombros a carga nostálgica de ter sido o local onde o jazz nasceu, a New Orleans actual mantinha-se um centro cultural e musical exuberante. Os dez dias, no mês de Abril, do New Orleans Jazz & Heritage Festival exibiam ao mundo uma parte substancial do leque de que é feita a música popular americana.