estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2006-12-08

O FIM DA CAIXA DE JORNALISTAS

RETIRADO DA SIC ONLINE (obrigado ao Antonio Matos por me fazer chegar o texto)

Os privilégios dos jornalistas

Passava das dez da noite quando o pequeno avião pôde descolar da Portela. A SIC fretara o aparelho à Air Luxor para cinco jornalistas e muito material. Seguimos para os Açores, para a cobertura do acidente aéreo em S. Jorge, que matou 35 pessoas em Dezembro de 1999.

Pedro Coelho
Jornalista
opiniao@sic.pt

O jacto da SIC abanou a viagem inteira. Em Ponta Delgada saíram três passageiros, os outros dois seguiram para a Terceira. Terão sido os piores 40 minutos que tive em 40 anos. O piloto foi incapaz de evitar o impacto de uma nuvem carregada de água e o jacto perdeu o norte, tendo iniciada uma descida descontrolada. Parou a tempo de não termos nós a mesma má sorte dos 35 passageiros da SATA.

Sempre que volto a entrar num avião em dias de tempestade hesito; mas de que me serve hesitar?

Em Setembro de 1999, os estrangeiros que estavam em Timor-Leste a acompanhar a crise que se seguiu ao referendo da independência, saíram em bloco da ilha. As autoridades deixaram de conseguir protegê-los. Ficaram quatro jornalistas portugueses: Jorge Araújo, Luciano Alvarez, José Vegar e Hernâni Carvalho. Se não tivessem ficado, quantos dos mais frágeis teriam sobrado para contar o fim da história?

Em Abril de 2003, a 80 quilómetros de Bagdade, um despiste foi fatal para três dos ocupantes de uma viatura que seguia numa coluna em direcção à capital do Iraque. O único sobrevivente é português e chama-se Rui. O Rui do Ó é jornalista. Os dois mortos eram argentinos, igualmente jornalistas e amigos do repórter de imagem da SIC. Como se sobrevive a uma tragédia destas?

Em Novembro do mesmo ano, Rui do Ó regressa ao Iraque. Na mesma estrada, o carro onde seguia despertou a atenção de um grupo de guerrilheiros. Foram disparados tiros. Uma jornalista portuguesa, Maria João Ruela, também da SIC, foi atingida. Carlos Raleiras, da TSF, foi raptado. Rui do Ó gastou mais uma vida. Salvou-se.

Aurélio Faria e Luís Pinto, ambos da SIC, escaparam fisicamente ilesos a diversos disparos que lhes estavam destinados. No Afeganistão, em 2001.

Em 1997, no Zaire, Paulo Camacho e Renato Freitas, da SIC, filmaram uma troca de tiros e resistiram, para contar a história.

Cândida Pinto e José Maria Cyrne integraram-se num pelotão inglês no Iraque em 2003. Foram soldados, semanas a fio.

Esta lista, das sortes da guerra, deveria ser muito mais dilatada e ultrapassar muito mais o universo da SIC. Os factos apresentados servem para confirmar os "privilégios" dos jornalistas.

Estive na guerra em Junho de 91. Atravessei sozinho, de gravador e microfone, um país que não o era, a desmantelar-se. A Jugoslávia. Nunca mais tive ganas de voltar à guerra.

Por que vamos? Perguntarão muitos. E se não fôssemos? Quem contaria a história? Provavelmente, apenas os vencedores.

O conflito do Darfur matou milhares de pessoas, porque, sem jornalistas presentes, o mundo inteiro fechou os olhos à barbárie.

Quem conseguiu mobilizar a opinião pública norte-americana e acabar com o envolvimento dos EUA no Vietnam?

Quem conseguiu mudar a opinião pública norte-americana relativamente à guerra do Iraque?

Em situações limite, quando um jornalista morre, é ferido, preso ou raptado em "combate", seja dentro ou fora do país, Portugal, e o Governo, mobilizam-se.

Esquecemos, todos, a nossa imensa tribo incluída, os dramas e os esforços muito perto do irracional porque vamos passando no quotidiano.

E são tantas as vezes em que o quotidiano dos jornalistas se faz de situações-limite.

Temos família, amigos, afectos. Temos vida, que a realidade usurpa.

Para extinguir a Caixa dos Jornalistas, o Governo assume que o faz não por razões financeiras, mas porque não pode haver classes privilegiadas.

Os jornalistas devem ser solidários com a Segurança Social, mas a Segurança Social não pode, no entender do executivo, ser solidária com as especificidades da classe.

Numa lógica soviética integramos todos o pacote dos desprivilegiados. Lógica soviética, certamente: porque também na antiga URSS haveria sempre alguns que conseguiam escapar ao nivelamento por baixo. E infelizmente nós, em Portugal, sabemos quem eles são.

Pedro Coelho