O FIM DA CAIXA DE JORNALISTAS
RETIRADO DA SIC ONLINE (obrigado ao Antonio Matos por me fazer chegar o texto)
Os privilégios dos jornalistas
Passava das dez da noite quando o pequeno avião pôde descolar da Portela. A SIC fretara o aparelho à Air Luxor para cinco jornalistas e muito material. Seguimos para os Açores, para a cobertura do acidente aéreo em S. Jorge, que matou 35 pessoas em Dezembro de 1999.
Pedro Coelho
Jornalista
opiniao@sic.pt
O jacto da SIC abanou a viagem inteira. Em Ponta Delgada saíram três passageiros, os outros dois seguiram para a Terceira. Terão sido os piores 40 minutos que tive em 40 anos. O piloto foi incapaz de evitar o impacto de uma nuvem carregada de água e o jacto perdeu o norte, tendo iniciada uma descida descontrolada. Parou a tempo de não termos nós a mesma má sorte dos 35 passageiros da SATA.
Sempre que volto a entrar num avião em dias de tempestade hesito; mas de que me serve hesitar?
Em Setembro de 1999, os estrangeiros que estavam em Timor-Leste a acompanhar a crise que se seguiu ao referendo da independência, saíram em bloco da ilha. As autoridades deixaram de conseguir protegê-los. Ficaram quatro jornalistas portugueses: Jorge Araújo, Luciano Alvarez, José Vegar e Hernâni Carvalho. Se não tivessem ficado, quantos dos mais frágeis teriam sobrado para contar o fim da história?
Em Abril de 2003, a 80 quilómetros de Bagdade, um despiste foi fatal para três dos ocupantes de uma viatura que seguia numa coluna em direcção à capital do Iraque. O único sobrevivente é português e chama-se Rui. O Rui do Ó é jornalista. Os dois mortos eram argentinos, igualmente jornalistas e amigos do repórter de imagem da SIC. Como se sobrevive a uma tragédia destas?
Em Novembro do mesmo ano, Rui do Ó regressa ao Iraque. Na mesma estrada, o carro onde seguia despertou a atenção de um grupo de guerrilheiros. Foram disparados tiros. Uma jornalista portuguesa, Maria João Ruela, também da SIC, foi atingida. Carlos Raleiras, da TSF, foi raptado. Rui do Ó gastou mais uma vida. Salvou-se.
Aurélio Faria e Luís Pinto, ambos da SIC, escaparam fisicamente ilesos a diversos disparos que lhes estavam destinados. No Afeganistão, em 2001.
Em 1997, no Zaire, Paulo Camacho e Renato Freitas, da SIC, filmaram uma troca de tiros e resistiram, para contar a história.
Cândida Pinto e José Maria Cyrne integraram-se num pelotão inglês no Iraque em 2003. Foram soldados, semanas a fio.
Esta lista, das sortes da guerra, deveria ser muito mais dilatada e ultrapassar muito mais o universo da SIC. Os factos apresentados servem para confirmar os "privilégios" dos jornalistas.
Estive na guerra em Junho de 91. Atravessei sozinho, de gravador e microfone, um país que não o era, a desmantelar-se. A Jugoslávia. Nunca mais tive ganas de voltar à guerra.
Por que vamos? Perguntarão muitos. E se não fôssemos? Quem contaria a história? Provavelmente, apenas os vencedores.
O conflito do Darfur matou milhares de pessoas, porque, sem jornalistas presentes, o mundo inteiro fechou os olhos à barbárie.
Quem conseguiu mobilizar a opinião pública norte-americana e acabar com o envolvimento dos EUA no Vietnam?
Quem conseguiu mudar a opinião pública norte-americana relativamente à guerra do Iraque?
Em situações limite, quando um jornalista morre, é ferido, preso ou raptado em "combate", seja dentro ou fora do país, Portugal, e o Governo, mobilizam-se.
Esquecemos, todos, a nossa imensa tribo incluída, os dramas e os esforços muito perto do irracional porque vamos passando no quotidiano.
E são tantas as vezes em que o quotidiano dos jornalistas se faz de situações-limite.
Temos família, amigos, afectos. Temos vida, que a realidade usurpa.
Para extinguir a Caixa dos Jornalistas, o Governo assume que o faz não por razões financeiras, mas porque não pode haver classes privilegiadas.
Os jornalistas devem ser solidários com a Segurança Social, mas a Segurança Social não pode, no entender do executivo, ser solidária com as especificidades da classe.
Numa lógica soviética integramos todos o pacote dos desprivilegiados. Lógica soviética, certamente: porque também na antiga URSS haveria sempre alguns que conseguiam escapar ao nivelamento por baixo. E infelizmente nós, em Portugal, sabemos quem eles são.
Pedro Coelho
Os privilégios dos jornalistas
Passava das dez da noite quando o pequeno avião pôde descolar da Portela. A SIC fretara o aparelho à Air Luxor para cinco jornalistas e muito material. Seguimos para os Açores, para a cobertura do acidente aéreo em S. Jorge, que matou 35 pessoas em Dezembro de 1999.
Pedro Coelho
Jornalista
opiniao@sic.pt
O jacto da SIC abanou a viagem inteira. Em Ponta Delgada saíram três passageiros, os outros dois seguiram para a Terceira. Terão sido os piores 40 minutos que tive em 40 anos. O piloto foi incapaz de evitar o impacto de uma nuvem carregada de água e o jacto perdeu o norte, tendo iniciada uma descida descontrolada. Parou a tempo de não termos nós a mesma má sorte dos 35 passageiros da SATA.
Sempre que volto a entrar num avião em dias de tempestade hesito; mas de que me serve hesitar?
Em Setembro de 1999, os estrangeiros que estavam em Timor-Leste a acompanhar a crise que se seguiu ao referendo da independência, saíram em bloco da ilha. As autoridades deixaram de conseguir protegê-los. Ficaram quatro jornalistas portugueses: Jorge Araújo, Luciano Alvarez, José Vegar e Hernâni Carvalho. Se não tivessem ficado, quantos dos mais frágeis teriam sobrado para contar o fim da história?
Em Abril de 2003, a 80 quilómetros de Bagdade, um despiste foi fatal para três dos ocupantes de uma viatura que seguia numa coluna em direcção à capital do Iraque. O único sobrevivente é português e chama-se Rui. O Rui do Ó é jornalista. Os dois mortos eram argentinos, igualmente jornalistas e amigos do repórter de imagem da SIC. Como se sobrevive a uma tragédia destas?
Em Novembro do mesmo ano, Rui do Ó regressa ao Iraque. Na mesma estrada, o carro onde seguia despertou a atenção de um grupo de guerrilheiros. Foram disparados tiros. Uma jornalista portuguesa, Maria João Ruela, também da SIC, foi atingida. Carlos Raleiras, da TSF, foi raptado. Rui do Ó gastou mais uma vida. Salvou-se.
Aurélio Faria e Luís Pinto, ambos da SIC, escaparam fisicamente ilesos a diversos disparos que lhes estavam destinados. No Afeganistão, em 2001.
Em 1997, no Zaire, Paulo Camacho e Renato Freitas, da SIC, filmaram uma troca de tiros e resistiram, para contar a história.
Cândida Pinto e José Maria Cyrne integraram-se num pelotão inglês no Iraque em 2003. Foram soldados, semanas a fio.
Esta lista, das sortes da guerra, deveria ser muito mais dilatada e ultrapassar muito mais o universo da SIC. Os factos apresentados servem para confirmar os "privilégios" dos jornalistas.
Estive na guerra em Junho de 91. Atravessei sozinho, de gravador e microfone, um país que não o era, a desmantelar-se. A Jugoslávia. Nunca mais tive ganas de voltar à guerra.
Por que vamos? Perguntarão muitos. E se não fôssemos? Quem contaria a história? Provavelmente, apenas os vencedores.
O conflito do Darfur matou milhares de pessoas, porque, sem jornalistas presentes, o mundo inteiro fechou os olhos à barbárie.
Quem conseguiu mobilizar a opinião pública norte-americana e acabar com o envolvimento dos EUA no Vietnam?
Quem conseguiu mudar a opinião pública norte-americana relativamente à guerra do Iraque?
Em situações limite, quando um jornalista morre, é ferido, preso ou raptado em "combate", seja dentro ou fora do país, Portugal, e o Governo, mobilizam-se.
Esquecemos, todos, a nossa imensa tribo incluída, os dramas e os esforços muito perto do irracional porque vamos passando no quotidiano.
E são tantas as vezes em que o quotidiano dos jornalistas se faz de situações-limite.
Temos família, amigos, afectos. Temos vida, que a realidade usurpa.
Para extinguir a Caixa dos Jornalistas, o Governo assume que o faz não por razões financeiras, mas porque não pode haver classes privilegiadas.
Os jornalistas devem ser solidários com a Segurança Social, mas a Segurança Social não pode, no entender do executivo, ser solidária com as especificidades da classe.
Numa lógica soviética integramos todos o pacote dos desprivilegiados. Lógica soviética, certamente: porque também na antiga URSS haveria sempre alguns que conseguiam escapar ao nivelamento por baixo. E infelizmente nós, em Portugal, sabemos quem eles são.
Pedro Coelho
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