Uma tarde na esquadra
Braços estendidos no rebordo da janela do guichet da esquadra, um homem desespera. A fé na justiça portuguesa já teve melhores dias. “Seguimento? Isso tem sempre, desde que sejam encontrados suspeitos. Parado é que não fica. Há-de chegar uma altura em que por falta de provas ou de suspeitos, a investigação chega ao fim”, explica-lhe o sub-chefe. Mesmo por trás, sentado numa mesa com três telefones à frente, um guarda pergunta: “O quê? Foi furtado? Já apresentou queixa?”
Ao contrário de outras esquadras, onde existe muita vida nocturna, as noites na dos Olivais costumam ser mais ou menos calmas. “É um dormitório, depois das 2h00, o atendimento morre”, explica o sub-chefe, um molhe de impressos à sua frente a preencher detalhadamente de cada vez que alguém se abeira, de rosto angustiado, da janelinha do guichet.
“Isto aqui é imprevisível. Estive de serviço na noite de Natal e não apareceu ninguém”. Naquele preciso momento, lida com o que poderíamos designar de pequenas queixas: um furto no interior de um veículo e o roubo de um telemóvel de um operador de câmara da televisão.
Surge do nada um homem forte, encorpado, respirando auto-confiança. Ergue um cartão à janela do guichet e dispara: “Boas tardes, sou sargento da força-aérea!” Os agentes entreolham-se, como se perguntassem um ao outro: “E daí?”
O homem está indignado com o que alguém anda a fazer a uma vistosa viatura estacionada algures junto a uma bomba de gasolina da Encarnação. “Mas é que o carro está a ser descascado completamente. Mete pena, está a ver? Provavelmente foi roubado e deixaram-no ali”. Pergunta o subchefe: “E já sabe se nós sabemos se o carro foi roubado?” Um guarda de cabelos aloirados, que segue toda a conversa, mostra conhecer bem o que se passa: “Já sei que carro é. Não consta para apreensão”. O homem não se demove: “É pena, está a ver, um carro quase novo que ‘tá ali e mete pena, de dia para dia a descascar”. O guarda esforça-se por mostrar que compreende a situação: “Certo. Simplesmente já fizemos diligências e o carro não consta para apreensão...” O sub-chefe levanta-se da cadeira, abre os braços e questiona, a menos de um metro do sargento da força-aérea: “Se o proprietário não se importa, a polícia vai-se importar? Temos os nossos parques cheios...temos a apodrecer carros melhores que aquele...”
O rádio da polícia, ligado permanentemente aos carros-patrulha, anuncia que uma residência da Avenida Gago Coutinho foi assaltada. Uma mulher loira, de nariz levemente esmurrado e casaco peludo, interrompe a conversa: “Desculpe lá. Não se esqueceu de mim, pois não?” É a dona de um café na Encarnação que foi vítima de agressão no interior do estabelecimento. “Foi um guarda ao local? Ah sim? Então, temos aqui a ocorrência. Vão procurar o registo da ocorrência, na segunda-feira às 12h00”, pede o sub-chefe. “O rapaz fugiu mas o pai e o meio irmão ficaram lá...” O rapaz? Isso significa que ele é menor? “Tem 14 anos... mas é forte, deu-me um soco no nariz e atingiu-me aqui” A mulher mostra o queixo levemente vermelho. “Já fui duas vezes ao hospital”.
O sub-chefe abana a cabeça. O rapaz pode ser forte, ter todo o corpo do mundo mas é menor. “Ele vai ter de ir para o tribunal de menores. A lei considera que ele ainda não é consciente do que faz”, explica. A dona do café discorda, sabe que ele faz aquilo com toda a consciência alicerçada nos ombros largos de delinquente: “Não vai à escola, passa a vida a fazer distúrbios, vai para a porta das escolas roubar e meter-se com os estudantes”. Paciência, nada a fazer, espere pelos 18 anos.
“O quê?”, pergunta o guarda de serviço aos telefones, “estão a chamar-lhe nomes e a dar-lhe pontapés na porta? Ok, ok, vou mandar já um carro passar aí, tenha calma!”
Uma mãe e filha, irrompem com o susto estampado nos rostos. Querem apresentar queixa por causa de uma tentativa de roubo e agressão à porta de casa. A filha foi a vítima mas a mãe parece bem mais perturbada. “Lá na nossa rua, assaltaram dois carros e acho que tem tudo a ver”. O sub-chefe quer que a jovem lhe descreva o assaltante. “Era um rapazito, atacou-me com uma navalha, agarrou-se-me à mala, eu agarrei-me a ela...” Viu bem a cara dele? “Vi”, diz a rapariga, de ar determinado. Bom, pista já existe mas a acumulação de queixosos no hall da esquadra começa a atrasar o trabalho de atendimento do sub-chefe.
“Ouça, o problema é que neste momento a queixa vai demorar uma hora e meia porque está mais gente à espera. Não pode cá vir à noite?”
Ao contrário de outras esquadras, onde existe muita vida nocturna, as noites na dos Olivais costumam ser mais ou menos calmas. “É um dormitório, depois das 2h00, o atendimento morre”, explica o sub-chefe, um molhe de impressos à sua frente a preencher detalhadamente de cada vez que alguém se abeira, de rosto angustiado, da janelinha do guichet.
“Isto aqui é imprevisível. Estive de serviço na noite de Natal e não apareceu ninguém”. Naquele preciso momento, lida com o que poderíamos designar de pequenas queixas: um furto no interior de um veículo e o roubo de um telemóvel de um operador de câmara da televisão.
Surge do nada um homem forte, encorpado, respirando auto-confiança. Ergue um cartão à janela do guichet e dispara: “Boas tardes, sou sargento da força-aérea!” Os agentes entreolham-se, como se perguntassem um ao outro: “E daí?”
O homem está indignado com o que alguém anda a fazer a uma vistosa viatura estacionada algures junto a uma bomba de gasolina da Encarnação. “Mas é que o carro está a ser descascado completamente. Mete pena, está a ver? Provavelmente foi roubado e deixaram-no ali”. Pergunta o subchefe: “E já sabe se nós sabemos se o carro foi roubado?” Um guarda de cabelos aloirados, que segue toda a conversa, mostra conhecer bem o que se passa: “Já sei que carro é. Não consta para apreensão”. O homem não se demove: “É pena, está a ver, um carro quase novo que ‘tá ali e mete pena, de dia para dia a descascar”. O guarda esforça-se por mostrar que compreende a situação: “Certo. Simplesmente já fizemos diligências e o carro não consta para apreensão...” O sub-chefe levanta-se da cadeira, abre os braços e questiona, a menos de um metro do sargento da força-aérea: “Se o proprietário não se importa, a polícia vai-se importar? Temos os nossos parques cheios...temos a apodrecer carros melhores que aquele...”
O rádio da polícia, ligado permanentemente aos carros-patrulha, anuncia que uma residência da Avenida Gago Coutinho foi assaltada. Uma mulher loira, de nariz levemente esmurrado e casaco peludo, interrompe a conversa: “Desculpe lá. Não se esqueceu de mim, pois não?” É a dona de um café na Encarnação que foi vítima de agressão no interior do estabelecimento. “Foi um guarda ao local? Ah sim? Então, temos aqui a ocorrência. Vão procurar o registo da ocorrência, na segunda-feira às 12h00”, pede o sub-chefe. “O rapaz fugiu mas o pai e o meio irmão ficaram lá...” O rapaz? Isso significa que ele é menor? “Tem 14 anos... mas é forte, deu-me um soco no nariz e atingiu-me aqui” A mulher mostra o queixo levemente vermelho. “Já fui duas vezes ao hospital”.
O sub-chefe abana a cabeça. O rapaz pode ser forte, ter todo o corpo do mundo mas é menor. “Ele vai ter de ir para o tribunal de menores. A lei considera que ele ainda não é consciente do que faz”, explica. A dona do café discorda, sabe que ele faz aquilo com toda a consciência alicerçada nos ombros largos de delinquente: “Não vai à escola, passa a vida a fazer distúrbios, vai para a porta das escolas roubar e meter-se com os estudantes”. Paciência, nada a fazer, espere pelos 18 anos.
“O quê?”, pergunta o guarda de serviço aos telefones, “estão a chamar-lhe nomes e a dar-lhe pontapés na porta? Ok, ok, vou mandar já um carro passar aí, tenha calma!”
Uma mãe e filha, irrompem com o susto estampado nos rostos. Querem apresentar queixa por causa de uma tentativa de roubo e agressão à porta de casa. A filha foi a vítima mas a mãe parece bem mais perturbada. “Lá na nossa rua, assaltaram dois carros e acho que tem tudo a ver”. O sub-chefe quer que a jovem lhe descreva o assaltante. “Era um rapazito, atacou-me com uma navalha, agarrou-se-me à mala, eu agarrei-me a ela...” Viu bem a cara dele? “Vi”, diz a rapariga, de ar determinado. Bom, pista já existe mas a acumulação de queixosos no hall da esquadra começa a atrasar o trabalho de atendimento do sub-chefe.
“Ouça, o problema é que neste momento a queixa vai demorar uma hora e meia porque está mais gente à espera. Não pode cá vir à noite?”
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