estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2004-05-31

Mais perto do Céu

“Aceita um cafézinho?” A relações públicas, andar lento e seguro de quem calcorreia um corredor de um hotel de cinco estrelas à espera de alguma ocorrência ou eventualidade, surpreende-nos no 10º andar, em visita turística. Não pertencemos ali nem estamos propriamente alojados no local. Trata-se, convenhamos, de uma visita rápida e circunstancial a um edíficio respirando luxo e conforto.
“O nosso sistema de exaustão de ar é o melhor, os gases são retirados por um processo super-moderno”. Olhamos à nossa volta e não temos dúvida. Ali, no Memorial, tudo parece executado para que o descanso seja gozado com outro conforto. Pela disposição daqueles hóspedes tão especiais, encerrados em limpas, arejadas e acessíveis compartimentos envidraçados, dir-se-ia que estes são tratados com o máximo das comodidades.
De longe, visto de perfil, com os seus dez andares marcados por varandas, o Memorial só pode parecer um hotel a qualquer olhar incauto. À noite, iluminados os varandins, chamar-lhe-íamos o Santos Palace, tão imponente parece aquela hipotética estrutura hoteleira. A Memorial é na realidade um grande, elevado e muito moderno cemitério.
Como explica o texto promocional: “O livre arbítrio e sermos conscientes de que não somos eternos nesta vida são as razões que nos diferenciam das demais espécies que habitam o planeta. Esta consciência e este livre arbítrio permitem-nos hoje escolher o lugar de morada eterna que um dia, inexorável e inevitavelmente, devermos ocupar. Este lugar, hoje escolhido, pode ser aprazível, belo, de imensa paz”.
O cliente que nos acompanha quer saber como está o seu futuro habitáculo. “ Nós já comprámos o nosso lugar aqui, eu e minha esposa. Não tem lugar melhor. Viúva quer visitar cemitério, é assaltada. Aqui tem paz, tem higiene, segurança”. A relações públicas desce connosco de elevador enquanto vai elogiando novamente o sistema de ventilação e comprazendo-se com o facto de cada vez mais santistas estejam a aderir ao Memorial. “E concerto, tem tido concerto ultimamente?”
O jardim do rés-do-chão é palco de muito celestiais concertos, com coros enchendo os dez andares de música adequada à paz que se vive no local. “Já vim assistir a pelo menos, “assevera o entusiasta cliente e cicerone, “a um concerto. Cê não imagina a paz e o ambiente, cara, não tem maior tranquilidade”.
Encorajada pelo entusiasmo do cliente e pela presença lusitana, a relações públicas convida-nos a descer até à moderna secretaria. “E quanto a preços, minha senhora, tudo se mantem?”, pergunta o cliente. Ela já procura uma significativa e colorida brochura, onde a Memorial Necrópole Ecuménica é descrita num discurso digno do folheto de uma agência turística.
“Para o último adeus, dispõe de salas amplas com todo conforto necessário aos que ali comparecem”, lê-se junto a uma elucidativa fotografia a cores do salão dos velórios. À noção de edifício inteligente, a Memorial contrapõe a de cemitério inteligente: “Planejamento inteligente, atendendo a todas as normas de higiene, segurança e prevenção da natureza”.
O último momento é tão especial que merece um atendimento à prova de qualquer falha: “Serviços perfeitos de segurança e de informação, proporcionam os mais altos padrões possíveis de conforto e comodidade, tão necessários em momentos como este”.
Para fim de visita, fui convidado a visitar em primeira mão as obras dos dois novos crematórios, construídos, segundo as informações que recolhemos no local, com tudo o que há de melhor em nova tecnologia.
O sucesso do Memorial é tanto que, numa das extremidades do grande edifício crescem já mais andares acima do décimo, numa procura incessante de aproximação ao céu. Até uma poetisa, Maria Araújo Barros de Sá e Silva, dedicou o poema “Saudação ao Memorial” à obra que, devido à sua altura, está no Guiness Book como a necrópole mais alta do mundo: “Belo recanto que me faz sonhar/ banhado de sol, de luz do luar/ Pertinho do mar, jardins dando flores/ Romanticamente tocando a montanha/ Beleza tamanha e de mil primores”.


Memorial
Cemitério em altura
Santos
Brasil