estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2004-06-20

"Eu não fiz nada"

Não vou falar com a mãe, nem pensar. E o pai, será aquele homem grande e negro a chorar sentado em cima da cama? E toda aquela gente? Serão primos, amigos, tios, vizinhos? A porta daquele rés-do-chão da Damaia está escancarada, toda a gente pode entrar e saír.Um coro, uma ladainha sai porta fora e agride mais do que um velório normal. Uma jovem negra- seria a namorada do Teti?- chora a morte do rapaz como só os africanos, aos pulos, os braços no ar, numa espécie de transe que me obriga a encolher junto à escada do prédio. Apelo ao pudor que me resta e explico que não entro, que gostaria que alguém viesse falar comigo ao corredor. Mas mesmo ali, é difícil encontrar um equilíbrio. Uma cabo-verdeana forte e zangada discute com outra. "Não mata, polícia não tem de matar, tinha de meter o rapaz no colégio!" A grande e gorda não gosta: "Mas qual colégio, ele não fez nada, ele não fez nada e mataram ele como um cão!" Surge Agostinha, a tia, uma mulher calma, demasiado calma. "Bateram nele, bateram com a cabeça na parede, soco, pontapé, levaram ele para Monsanto, deram -lhe uma sova no mato". Só falta dizer: Meu amigo, esse rapaz já tinha destino traçado, nasceu negro, morre negro. "Ele só dizia, eu não fiz nada, eu não fiz nada..."
A polícia já anunciou um inquérito ao que se passou na esquadra da Reboleira, para onde "Teti" foi levado quarta-feira à noite. Mas...a sova não foi dada à frente de todos, em frente ao Centro Social do Bairro 6 de Maio? E o inquérito ao que se terá passado na mata de Monsanto? Meu amigo, nasce black, morre black, não tem como fugir, teu destino em terra de branco estava traçado...