A vertigem bárbara dos suevos
Numa versão século XXI do cronista Fernão Lopes, EPC deixou-nos hoje em crónica uma visão desapaixonada da tribo do futebol. Percebe-se, entre as imagens do costume, a ternura que nutre pelos protagonistas: "Os portugueses pegaram nas bandeiras e nos cachecóis e vieram para a rua buzinar".
Repare-se, logo aqui, que não vieram ler poesia nem citar Gilles Deleuze, vieram buzinar. E depois continua: "Havia famílias inteiras, com a avó resignada no banco traseiro e a filha mais velha sentada no tejadilho, com calças que revelam a mais ampla concepção do umbigo que se pode imaginar".
O povo é assim. Os umbigos populares são sempre generosos, exibidos, sem vergonha, despudorados. O pormenor da "filha mais velha" dá-nos a entender que o autor terá falado ou pelo menos abordado a família em causa e que haveria pelo menos mais uma filha, mais nova, dentro do carro. A imagem da avó resignada no banco traseiro fez-nos pensar como pareceria o EPC no banco traseiro de um carro guiado por dois jovens. Um avô resignado, debruçado sobre um livro da Gallimard?
Continuemos: "Algumas tias velhas ensaiavam passos de dança nas paragens de autocarro". Tias de quem? De Cascais, do Eduardo, do António Arnaut?
Adiante: "Outros arregaçavam as mangas e mostravam tatuagens de guerra, com negros de facas nos dentes trespassados pela chuva de balas".
Aqui, o autor deixa-se ficar a observar a barbárie ao ponto de ver o momento preciso em que outros, ou seja, mais do que um adepto, arregaçam as mangas para mostrar tatuagens de guerra. Não se percebe se este arregaçar de mangas foi executado propositadamente para o cronista, num ritual de assumido exibicionismo, quantos eram os "outros" ou se o cronista se apercebe do gesto inadvertidamente.
"Havia aqueles que tinham bandeiras a dizer "Portugal ultras", e que pareciam directamente saídos de um filme sobre a extrema-direita europeia".
Cá está, em todo o seu esplendor, a direita, o aproveitamento político da bandeira pelas franjas mais reaccionárias. Se não aparecesse, não era uma crónica de EPC.
Mas há uma questão essencial e aí o Fernão Lopes do Século XXI transmuta-se em pensador: "A questão essencial é: esta gente veio para a rua festejar a vitória de Portugal ou a vitória de Portugal é apenas um pretexto para terem vindo para a rua?"
Logo aqui, lê-se, descobre-se, adivinha-se nas entrelinhas a tremenda ternura e afecto do autor pelas pessoas que festejaram nas ruas a vitória de Portugal sobre a Rússia.
Vamos em frente: "E ainda: esta gente que varre as ruas com vagas de violência é violenta porque se sente empolgada pelos seus clubes e países, ou utiliza clubes e selecções nacionais para poder dar largas a esse gosto da violência? Não tenho resposta a dar".
Aqui, o leitor interroga-se: Violência? Onde? Quando? No umbigo amplo da jovem em cima do tejadilho? Na forma como toda uma família relegou a avó para o banco traseiro a quem só resta a resignação e a impotência do velho Portugal, o que não colocava bandeiras nas janelas nem buzinava nas ruas? Nas tatuagens de guerra? Nas bandeiras reaccionárias dos ultras?
Aqui, o cronista não nos deixa muitas pistas, se bem que a crónica termine com testemunhos de violência verbal: "Perto dos Restauradores, três raparigas dançavam, sendo uma delas bastante elegante."
Esta foi aprovada pelo autor, que viu nela uma luz no negrume da barbárie. Mas eis que o único toque de elegância na noite dos grunhos ululantes é também ele violado por um jovem, do qual não ficamos a saber se trazia tatuagem guerreira ou cachecol dos ultras ou sequer um poster do Paulo Portas no carro. Tudo aquilo com o que o cronista-pensador-repórter nos deixa é esta breve pincelada: "Um dos jovens, que vinha apoiado nas janelas de um carro, berrou: "Ó boas, não digam que os portugueses não têm gajas boas!" E um coro de ruídos roedores e gritos primitivos veio sublinhar a felicidade da asserção. Só o futebol permite estas coisas-estes momentos de êxtase."
Aqui e para finalizar, o autor parece-nos exibir a revolta perante o tratamento dado ao único elemento elegante da noite, o objecto do desejo. De repente, na Praça da Figueira, ela ali está, qual Anna Karina num filme de Godard. O cronista emociona-se, vê nela a salvação numa noite de roedores primitivos. Mas em segundos, a doce ilusão Kariniana dissipa-se quando uma horda de suevos iletrados surge dentro de um carro, com ruídos que roem os ouvidos do cronista e gritam, mas não gritam de qualquer forma, emitem-nos de forma primitiva, rude e boçal.
Belo, genuíno, invulgar, um Fernão Lopes para o século XXI.
Leitura obrigatória:
"The Soccer Tribe", Desmond Morris (1981), 320 páginas, ed.Jonathan Cape
Repare-se, logo aqui, que não vieram ler poesia nem citar Gilles Deleuze, vieram buzinar. E depois continua: "Havia famílias inteiras, com a avó resignada no banco traseiro e a filha mais velha sentada no tejadilho, com calças que revelam a mais ampla concepção do umbigo que se pode imaginar".
O povo é assim. Os umbigos populares são sempre generosos, exibidos, sem vergonha, despudorados. O pormenor da "filha mais velha" dá-nos a entender que o autor terá falado ou pelo menos abordado a família em causa e que haveria pelo menos mais uma filha, mais nova, dentro do carro. A imagem da avó resignada no banco traseiro fez-nos pensar como pareceria o EPC no banco traseiro de um carro guiado por dois jovens. Um avô resignado, debruçado sobre um livro da Gallimard?
Continuemos: "Algumas tias velhas ensaiavam passos de dança nas paragens de autocarro". Tias de quem? De Cascais, do Eduardo, do António Arnaut?
Adiante: "Outros arregaçavam as mangas e mostravam tatuagens de guerra, com negros de facas nos dentes trespassados pela chuva de balas".
Aqui, o autor deixa-se ficar a observar a barbárie ao ponto de ver o momento preciso em que outros, ou seja, mais do que um adepto, arregaçam as mangas para mostrar tatuagens de guerra. Não se percebe se este arregaçar de mangas foi executado propositadamente para o cronista, num ritual de assumido exibicionismo, quantos eram os "outros" ou se o cronista se apercebe do gesto inadvertidamente.
"Havia aqueles que tinham bandeiras a dizer "Portugal ultras", e que pareciam directamente saídos de um filme sobre a extrema-direita europeia".
Cá está, em todo o seu esplendor, a direita, o aproveitamento político da bandeira pelas franjas mais reaccionárias. Se não aparecesse, não era uma crónica de EPC.
Mas há uma questão essencial e aí o Fernão Lopes do Século XXI transmuta-se em pensador: "A questão essencial é: esta gente veio para a rua festejar a vitória de Portugal ou a vitória de Portugal é apenas um pretexto para terem vindo para a rua?"
Logo aqui, lê-se, descobre-se, adivinha-se nas entrelinhas a tremenda ternura e afecto do autor pelas pessoas que festejaram nas ruas a vitória de Portugal sobre a Rússia.
Vamos em frente: "E ainda: esta gente que varre as ruas com vagas de violência é violenta porque se sente empolgada pelos seus clubes e países, ou utiliza clubes e selecções nacionais para poder dar largas a esse gosto da violência? Não tenho resposta a dar".
Aqui, o leitor interroga-se: Violência? Onde? Quando? No umbigo amplo da jovem em cima do tejadilho? Na forma como toda uma família relegou a avó para o banco traseiro a quem só resta a resignação e a impotência do velho Portugal, o que não colocava bandeiras nas janelas nem buzinava nas ruas? Nas tatuagens de guerra? Nas bandeiras reaccionárias dos ultras?
Aqui, o cronista não nos deixa muitas pistas, se bem que a crónica termine com testemunhos de violência verbal: "Perto dos Restauradores, três raparigas dançavam, sendo uma delas bastante elegante."
Esta foi aprovada pelo autor, que viu nela uma luz no negrume da barbárie. Mas eis que o único toque de elegância na noite dos grunhos ululantes é também ele violado por um jovem, do qual não ficamos a saber se trazia tatuagem guerreira ou cachecol dos ultras ou sequer um poster do Paulo Portas no carro. Tudo aquilo com o que o cronista-pensador-repórter nos deixa é esta breve pincelada: "Um dos jovens, que vinha apoiado nas janelas de um carro, berrou: "Ó boas, não digam que os portugueses não têm gajas boas!" E um coro de ruídos roedores e gritos primitivos veio sublinhar a felicidade da asserção. Só o futebol permite estas coisas-estes momentos de êxtase."
Aqui e para finalizar, o autor parece-nos exibir a revolta perante o tratamento dado ao único elemento elegante da noite, o objecto do desejo. De repente, na Praça da Figueira, ela ali está, qual Anna Karina num filme de Godard. O cronista emociona-se, vê nela a salvação numa noite de roedores primitivos. Mas em segundos, a doce ilusão Kariniana dissipa-se quando uma horda de suevos iletrados surge dentro de um carro, com ruídos que roem os ouvidos do cronista e gritam, mas não gritam de qualquer forma, emitem-nos de forma primitiva, rude e boçal.
Belo, genuíno, invulgar, um Fernão Lopes para o século XXI.
Leitura obrigatória:
"The Soccer Tribe", Desmond Morris (1981), 320 páginas, ed.Jonathan Cape
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