estradas perdidas

Atrás de casa, encoberta por tufos de erva daninha, silvas e bidões abandonados, o comboio de janelas iluminadas vinha das Quintãs e silvou depois do túnel em curva, em direcção a Aveiro. Ali ao lado há uma estrada, a minha primeira estrada. Mulheres e homens cruzam-na impelindo teimosamente os pedais das bicicletas. Junto à vitrine de um pronto-a-vestir lê-se "Modas Katita". De uma taberna, saem dois homens que se dirigem para duas Famel-Zundapp. Estrada perdida.

2004-06-22

LORETTA LYNN E O MEU DISCO PREFERIDO DE 2004 (so far...)

Finalmente, chegou a Portugal "Van Lear Rose" o disco do big comeback da Loretta Lynn. É complicado dizer o que funciona melhor no álbum: A sensação de ouvir de novo uma das vozes mais honestas, francas e puras da country, fresca como a água da nascente aos 70 anos de idade? O facto de pela primeira vez Loretta Lynn gravar 13 temas originais e todos com a força de uma jovem de 25 anos? O facto da produção de Jack White dos White Stripes conseguir, em poucos dias, pouquíssimos takes e numa sala velha de uma casa de East Nahsville recuperar a essência do velho som country? A quase perfeição com que Jack, um fã apaixonado pela ídolo de sempre, a leva a percorrer outros caminhos, seja no dueto rocker “Portland Oregon” ou no que poderíamos chamar “dub” country de “Little Red Shoes”?
Se exceptuarmos a letra demasiado fundamentalista de “God makes no mistakes”, podemos dizer que “Van Lear Rose” é um disco quase perfeito, da balada autobiográfica de “Van Lear Rose”, dedicada à mãe de Loretta à confissão final de “Story of my life”. Loretta Lynn consegue fazer o que sempre fez- falar das saudades do marido, das amantes, da vida nas montanhas, da mãe, do orgulho na vida que escolheu- ajudada pelos arranjos de Jack White. Em “Van lear rose” é a pedal steel que chora em fundo enquanto Loretta canta ao ritmo da batida. Em “Portland Oregon”, são os teclados e a percussão que fazem um intro magnífico para depois a bateria se calar, entrarem duas guitarras e recomeçar a bateria até ao clímax à Led Zepellin. Quando pensamos que nada mais é possível, surge o melhor, o diálogo das vozes de Loretta e Jack e a canção começa, finalmente: “well Portland Oregon and sloe gin fizz...” Por seu lado, “Trouble on the line” é um daqueles temas tão country, na pureza dos queixumes da mulher que diz ao marido que já não conseguem comunicar, que se ouve a voz de Loretta sobre um fundo de slide guitar e fica-se com pena genuína. “Family tree” é uma balada no estilo do que Loretta fazia nos anos 60 (a velha história da amante), valorizadíssima pelo violino bluegrass de Dirk Powell. “Have Mercy” é o rock’n roll que Elvis Presley nunca gravou. O bluegrass “High on mountain top” é pura alegria da simplicidade da vida numa cabana no topo do mundo, com um violino e um banjo por companhia. “Little Red Shoes” é um dub country em que Loretta vai contando a vida na pobreza do Kentucky dos anos 30 do século passado, sem dinheiro para comprar sapatos, sob o fundo da guitarra rítmica, da steel e da percussão, tudo muito, muito hipnótico. “God makes no mistakes” é a tal balada folk/ country cuja letra custa um pouco a aceitar no seu fundamentalismo cristão. “Women’s prison” parece uma balada de Johnny Cash produzida por Rick Rubin mas no feminino, a autora a confessar ter morto o marido infiel. “This old house” é uma balada country tradicional que vai subindo num crescendo de memórias e num crescendo musical. Jack escolheu uma slide hawaiana e uma batida guerreira para o intro do hilbilly rock imparável “Mrs.Leroy Brown” e até lá coloca um piano à Jerry Lee Lewis em fundo. “Miss Being Mrs” é a saudade em estado puro. Dedicada a “Doo”, cantada apenas com acompanhamento da guitarra acústica de Jack White é, no mínimo, de uma nostalgia cortante (quem puder, não deveria perder o vídeo em www.cmt.com). Por fim, “Story of my life” é a súmula de tudo, o balanço final num honky tonk delicioso.