O Ataíde
Desde que o Ataíde morreu que o Claudino deixou de servir copos de vinho. "Não, já não sirvo disso desde que o Ataíde morreu, desde que o mataram ou se matou, sei lá..." No dia em que o Ataíde foi atropelado, espreitei pela vidraça e pressenti que tinha chegado a hora. Era já noite, havia luzes de uma ambulância a faiscar de encontro às paredes da tasca do galego. Um mole de gente, os do costume, o Fernando do "Remo", o Jorge, o próprio galego a justificar-se que se limitara a servir-lhe mais um copo e o corpo mirrado e miserável do Ataíde esborrachado no asfalto. Coitado do Ataíde. "Eu dizia-lhe para ele comer qualquer coisa, um pão, qualquer coisa mas ele só queria vinho, só queria vinho", justificava o galego, esfregando as mãos no avental como a escorraçar o sentimento de culpa. Lembro-me do Ataíde, pequenino, velho, entre a careca e o cabelo branco, os lábios encortiçados, a andar vagarosamente, vergado para a frente, puxando o cão sarnento por um cordel. Lembro quando o Ataíde ofereceu uns rebuçados ao meu filho mais novo e ele desconfiado: "E se têm droga?" O Ataíde, no seu jeito periclitante de maquineta enferrujada a desfazer-se, era uma figura da Avenida do Mar. Quando o Claudino lhe servia relutante um copo de vinho, o Ataíde dizia: "Se tenho que morrer, morro assim, aos bocadinhos..." E nós a vê-lo morrer, devagarinho, até ao dia, até ao novo atropelamento. Naquela noite, o andar trôpego do Ataíde cruzou na meia escuridão da passadeira em frente à tasca do galego com a brutalidade de um reboque que o espetou a metros de distância. "Não o vi, vi lá o homenzinho", explicava o jovem condutor do reboque. Não era um homenzinho, meu animal, era o Ataíde, apetecia gritar. A última vez que o vi jazia inerte, de borco, o rosto colado ao alcatrão, uma pequena poça de sangue ao lado. Hoje o Claudino não serve mais vinho a ninguém, em homenagem ao Ataíde, o que foi morrendo aos bocadinhos, à nossa frente, todos os dias, um cão rafeiro e esquálido mas fiel seguindo-lhe os passos.
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